Fernandez e Olivier: Parto humanizado e direito ao próprio corpo

O Ministério Público Federal ajuizou, no dia 16 de outubro de 2023, uma ação civil pública (ACP nº 5106390-31.2023.4.02.5101) contra o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj), pedindo a suspensão integral e imediata da Resolução nº 348/2023, de 28 de agosto de 2023. Pediu, ainda, o julgamento antecipado do mérito, para que seja declarada a nulidade da resolução [1]. Esta dispõe sobre a proibição da participação do médico em partos domiciliares planejados, revelando um dos vários obstáculos que são sempre colocados à frente das mulheres para evitar que possam escolher e tomar decisões livres e autônomas sobre seu próprio corpo.

A resolução veda a participação do médico nas ações de partos domiciliares planejados, ficando excetuadas as situações de urgências/emergência obstétrica (artigo 1º). Assim, o médico, quando participa nas chamadas ações domiciliares relacionadas ao parto e assistência perinatal de urgência/emergência, deve comunicar imediatamente o diretor-técnico da maternidade e/ou plantonista por telefone para o qual pretende levar a gestante caso tenha intercorrência que necessite de suporte hospitalar (artigo 3º) [2].

Na exposição de motivos, é ressaltado que estudos tendem a mostrar maior risco de morbidades e mortalidade neonatais entre os nascidos de partos domiciliares, quando comparados a partos hospitalares, bem como que não há nenhum estudo no mundo que diga ser o parto domiciliar mais seguro, apesar de alguns apontarem que a vantagem do parto domiciliar é uma menor intervenção, visto que em casa não há o aparato tecnológico adequado para as intervenções eventualmente necessárias. Ademais, é reconhecida a autonomia da mulher, após devidamente esclarecida na escolha entre seu tipo de parto (cesariana ou vaginal), e se reconhece que, para aquela parcela que deseja o parto vaginal, o cenário englobando todos os atores é por vezes bastante dificultoso.

A principal discussão em relação ao parto em ambiente extra-hospitalar se refere à segurança materna e perinatal. Ressaltam os potenciais riscos do parto planejado fora do hospital e que, mesmo nas situações de risco habitual, podem surgir problemas emergenciais que demandam solução em ambiente hospitalar. Assim, as gestantes de risco habitual devem ser informadas que o parto vaginal é evento seguro. Entretanto, não há como prever a ocorrência de complicações, que podem pôr em risco a integridade física da mãe ou do feto/recém-nascido.

A mencionada resolução é a reedição da Resolução nº 265/2012 sobre a proibição da participação do médico em partos domiciliares, do próprio Cremerj. Esta já havia sido objeto de uma ação civil pública proposta pelo Conselho Regional de Enfermagem do Rio de Janeiro, com assistência da Defensoria Pública da União e do Município do Rio de Janeiro e intervenção do Ministério Público Federal (ACP nº 0041307-42.2012.4.02.5101), quando foi considerada ilegal e esgotados todos os recursos. Portanto, a edição de nova resolução similar é um desrespeito a decisão anterior, considerada “coisa julgada” (imutável). Na exposição de motivos da nova resolução, é frisado que é respeitada a decisão judicial que anulou a anterior, uma vez que na atual redação não há interferência nas ações de outras profissões no parto domiciliar (obstetrizes, parteiras, doulas).

Segundo o Ministério Público Federal, a Resolução nº 348/2023 contraria o princípio ético da autonomia, presente nos artigos 22 e 24 do Código de Ética Médica, editado pelo Conselho Federal de Medicina, pois impede a tomada de decisões pela gestante quanto à sua pessoa e a de seu bêbe, limitando a localidade onde quer programar o parto, e os princípios fundamentais VII e VIII, ao limitar a liberdade profissional do médico:

VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente; VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.

Mais, a resolução também viola o direito das gestantes a optarem pelo parto natural, humanizado e domiciliar, assegurado pela Lei nº 7.498/1986, que dispõe sobre a regulamentação do exercício da enfermagem, e o princípio da legalidade, previsto no artigo 5º, inciso II, da Constituição, ao criar direitos e deveres não previstos em lei.

Entretanto, a principal violação encontrada na resolução é ao direito personalíssimo ao próprio corpo, um dos corolários diretos do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto como fundamento da República no artigo 1º, inciso III, da Constituição e bem ressaltado pela ação civil pública ajuizada. No Brasil, o alto índice de cesáreas demonstra que a falta de autonomia da mulher sobre o parto e sobre seu próprio corpo é histórico [3].

O Brasil possui o segundo maior número de cesáreas no mundo, apesar dos riscos [4]. Os dados apontam que, de janeiro a outubro do ano passado (2022), foi registrado uma elevação de 57,6% no número de cesarianas feitas no país, segundo dado do Ministério da Saúde. Já a Organização Mundial da Saúde recomenda que somente 15% dos partos sejam não naturais. Além disso, a cesárea, quando bem indicada clinicamente, salva vidas. No entanto, sem indicação, aumenta o risco de morte. Um dado alarmante da “epidemia” de cesáreas no Brasil é o de que 86% dos partos no sistema privado de saúde são cesáreas.

O alto índice de cesáreas no Brasil demonstra a falta de autonomia feminina em relação aos direitos reprodutivos. Obviamente que esta é fundamental em situações de risco, mas o seu uso indiscriminado tem gerado problemas como prematuridade, mortalidade infantil e violência obstétrica [5].

A violência obstétrica é qualquer tipo de agressão ou abuso a uma mulher durante a gestação, no parto ou no período pós-parto. No Brasil, esta pode ocorrer quando a mulher é submetida a uma cesariana desnecessária, que pode levar à morte infantil e materna. A decisão de se submeter a uma cesárea desnecessária é, na maioria das vezes, imposta pelo próprio médico, o que pode ser considerado violência obstétrica, violando o direito à autonomia da mulher ao próprio corpo e causando uma violação do direito humano de gozar dos direitos e liberdades estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).

Portanto, a Resolução nº 348/2023, ao impedir que médicos participem nos partos domiciliares planejados, dificulta a sua realização. Assim, tentar submeter a mulher a um parto hospitalizado e medicalizado, bem como a adoção de cesáreas, intervenções e procedimentos desnecessários, viola a autonomia ao corpo da gestante, o que pode caracterizar uma violência obstétrica e grave violação de direito humano. Ironicamente, a mencionada resolução dispõe que o seu intuito é evitar a morte das parturientes e a mortalidade infantil. Entretanto, procedimentos desnecessários, como cesáreas, colocam em risco as saúdes materna e infantil.

Sheila Kitzinger, escritora e pesquisadora inglesa, que promoveu uma grande mudança das atitudes em relação ao parto, ressalta a importância do parto concentrado na mulher e de partos em casa para gestações de baixo risco, pois esse momento deve ser encarado como um evento natural e até mesmo alegre. No popular A Experiência de Dar à Luz (1962), a autora faz um manifesto pela ideia de um parto centrado na mulher, encorajando as mães a terem autonomia em relação à gravidez e ao parto, bem como a resistirem à medicalização forçada e ao domínio dos médicos homens, sendo muito melhor para as mulheres e os filhos quando a concepção é escolhida livremente [6].

As mulheres devem ser incentivadas a se tornarem participantes ativas na concepção. Inclusive, Sheila Kitzinger questiona o relacionamento entre o médico e a mulher grávida, pois a gravidez envolve um esforço para mudança de identidade e esse esforço pode provocar depressão pós-parto, pois as mulheres não têm uma linguagem para expressar como se sentem ou se culpam por seus sentimentos:

“Quando as mulheres sofrem ao dar à luz – sentem-se humilhadas e rebaixadas pelas dores, sendo passivos instrumentos de processos físicos que não podiam compreender – não são somente elas as atingidas. Carregam pela vida afora a lembrança dessa experiência e, por sua atitude em relação ao ato de dar à luz, afetam outras mulheres e homens – não somente suas próprias filhas e filhos, senão também muito outros com quem têm contato” [7].

Frisa-se que, no Brasil, não há lei federal que defina violência obstétrica. Por isso, atos considerados como violações de direitos de gestantes e parturientes são enquadrados, por exemplo, como erro médico, lesão corporal e importunação sexual. Assim, mister se faz a edição de uma legislação que abarque essa problemática feminina.

A “Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher” (1979), promulgada no Brasil pelo Decreto nº 4.377/2002, aduz em seu artigo 3º que os Estados-partes tomarão, em todas as esferas, e em particular, nas esferas política, social, econômica e cultural, todas as medidas apropriadas, inclusive de caráter legislativo, para assegurar o pleno desenvolvimento e progresso da mulher, com o objetivo de garantir-lhe o exercício e o gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade de condições com o homem. Ora, mecanismos como a Resolução nº 348/2023 do Cremerj cria barreiras e restrições ao direito à autonomia da mulher em decisões sobre o próprio corpo, impossibilitando que a mesma possua o exercício e o gozo do referido direito humano e liberdade fundamental, prevista, inclusive, no artigo 5º, caput, da Constituição de 1988.  

 


[1] Ver notícia no Ministério Público Federal, disponível: https://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/noticias-rj/mpf-questiona-resolucao-do-cremerj-que-proibe-a-participacao-de-medicos-em-partos-domiciliares-planejados#:~:text=O%20Minist%C3%A9rio%20P%C3%BAblico%20Federal%20(MPF,de%20urg%C3%AAncia%20e%20emerg%C3%AAncia%20obst%C3%A9trica.

[2] Ver resolução nº. 348/2023 no Cremerj, disponível: https://www.cremerj.org.br/resolucoes/exibe/resolucao/1533;jsessionid=617FDCDBAAA8999259E9E7F9D20910D2#:~:text=Art.,ao%20CREMERJ%2C%20circunstanciando%20o%20evento.

[3] Ver notícia na Fiocruz, disponível: https://coc.fiocruz.br/index.php/pt/todas-as-noticias/1967-no-brasil-das-cesareas-a-falta-de-autonomia-da-mulher-sobre-o-parto-e-historica.html.

[4] Ver notícia no Jornal da USP, disponível: https://jornal.usp.br/atualidades/brasil-tem-o-segundo-maior-numero-de-cesareas-no-mundo-apesar-dos-riscos/#:~:text=tem%20uma%20indica%C3%A7%C3%A3o.-,Cerca%20de%20tr%C3%AAs%20milh%C3%B5es%20de%20partos%20acontecem%20anualmente%20no%20Brasil,sem%20uma%20verdadeira%20indica%C3%A7%C3%A3o%20cir%C3%BArgica.

[5] Ver notícia na Câmara dos Deputados, disponível: https://www.camara.leg.br/noticias/965334-especialistas-vinculam-partos-prematuros-e-mortalidade-infantil-a-violencia-obstetrica/.     

[6] KITZINGER, Sheila. A experiência da dar à luz. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

[7] KITZINGER, Sheila. A experiência da dar à luz. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 1.

Maria Laura Maciel Fernandez é mestranda em Direito Público pela Unisinos, especialista em advocacia cível pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP–RS) e advogada.

André Luiz Olivier da Silva é professor pesquisador de pós-graduação em direito da Unisinos, professor de graduação em direito e relações internacionais da Unisinos, doutor em Filosofia, mestre em Filosofia (2009) e advogado.

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn
plugins premium WordPress

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor