Fernando Aguillar: Ferramentas tecnológicas ao aprendizado do Direito

Há uma grande efervescência em torno das ferramentas tecnológicas, principalmente em função do grande desenvolvimento da inteligência artificial. Há pouco a IA era utilizada como usuários de produtos ou serviços que as embutem em suas tarefas rotineiras, sem que sequer soubéssemos disso. A novidade é que agora a IA começa a ser oferecida para os usuários, que passam a usar diretamente as ferramentas, como um serviço para o consumidor e não a serviço da agilização e ordenação do trabalho do fornecedor. São oferecidas hoje diversas ferramentas, como ChatGPT, MidJourney, GoogleBard, ChatSonic e o Ernie Bot.

Os aplicativos de IA são capazes de fascinar. Criam em segundos obras de arte mediante descrições que ditamos ao aplicativo, nos esclarecem tecnicamente sobre o que podemos fazer diante de qualquer situação, em qualquer domínio do conhecimento humano. Elas dialogam conosco sobre qualquer assunto em qualquer língua.

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Elas, porém, se encontram em estágio inicial de desenvolvimento e, por vezes, são interlocutores rápidos, esforçados, mas pouco confiáveis. Os problemas do homem e da sociedade são complexos e se alojam em camadas que se articulam entre si e com outras áreas do conhecimento, de forma que desafiam o conhecimento humano e também o de máquinas. Estamos treinando as máquinas para identificar essas camadas de conhecimento necessárias para tratar problemas com maior precisão. Mas o trânsito de uma camada para outra, ou de uma área de conhecimento para outra, é difícil para os aplicativos e pode levar a soluções inadequadas, ou respostas que não são tecnicamente corretas.

Mas esse processo está apenas começando a despontar ao grande público. Não devemos julgar agora as ferramentas que estão surgindo para decretar sua eficiência ou ineficiência. Ainda é cedo para diagnósticos definitivos. É de se supor que o seu desenvolvimento será rápido a partir de agora e queremos desfrutar dos benefícios que a tecnologia pode proporcionar tanto quanto temos que nos precaver dos riscos a que ela nos expõe.

Ainda não temos como aquilatar tudo o que as novas tecnologias podem nos proporcionar em termos positivos ou negativos. Muitas invenções foram originalmente concebidas para um determinado fim socialmente útil, mas foram desvirtuadas com o tempo. Não é diferente com a tecnologia digital. Recentemente se propôs até mesmo a suspensão dos avanços dos estudos, dados os riscos de uso para fins criminosos e políticos que os próprios desenvolvedores das ferramentas estão detectando.

Entre os próprios responsáveis pelo desenvolvimento das ferramentas de IA há controvérsias, havendo os que temem consequências desastrosas para a humanidade, enquanto outros refutam essa possibilidade [1]. Há também uma grande preocupação com o desemprego que a tecnologia pode causar nos diversos segmentos da economia. Mas este não é o objeto deste texto. Tampouco quero falar aqui das significativas mudanças no campo dos serviços jurídicos, com o crescimento exponencial das Legal Techs [2] e da Jurimetria [3]. Vamos tentar entender aqui algumas das possibilidades de uso de ferramentas tecnológicas para fins educacionais no direito.

O que as ferramentas digitais podem fazer para melhorar a educação jurídica

Recentemente vi um interessante gráfico feito por Fabiana Raulino e Reinaldo Ramos, com a demonstração de 30 formas de utilizar o ChatGPT em sala de aula [4]. Reagrupei essas 30 formas da seguinte maneira: cinco delas eram formas diferentes de realizar buscas; oito eram formas de auxiliar o trabalho do professor; dois eram atividades de avaliação, pelos alunos, das respostas dadas pelo robô; seis eram sugestões de interação dos alunos com o ChatGPT; e nove eram formas de criação de textos por parte da ferramenta.

Essas são algumas das formas de se promover o uso da IA para fins educacionais. Elas são sem dúvida muito interessantes e tendem a mobilizar os estudantes e criar um ambiente de maior engajamento. As 30 formas sugeridas têm como destinatário principal o professor em sala de aula. São recomendações para que o professor conduza atividades de pesquisa, avaliação e interação feitas pelos alunos com a ferramenta.

Mas há sem dúvida uma série de limitações para esse tipo de aprendizagem e é para esses pontos que quero chamar a atenção na sequência. Vamos deixar de lado a dificuldade principal que o tema apresenta, no atual estágio de desenvolvimento da ferramenta: suas respostas não são ainda confiáveis. Quero distinguir entre as ferramentas que ajudam na autonomização do conhecimento do aluno e as que não ajudam para esse fim.

Busca da autonomia do estudante e tecnologia pedagógica

Há um temor de que as ferramentas de IA sejam uma nova calculadora. Assim como se temia que o uso da calculadora automática prejudicaria o ensino da matemática, hoje se teme que a IA prejudique o aprendizado de outras disciplinas. Há também a preocupação de que o modo unilateral de ensinar, ativo por parte do professor e passivo pelos estudantes, tão criticado por seu conservadorismo, reviva com toda a força, apenas substituindo o mestre pelo robô.

Uma parte da crítica que se pode fazer hoje às ferramentas de IA, como o ChatGPT e outros como mecanismo de aprendizagem, está sendo feita na forma de proibições. A cidade de Nova York proibiu o acesso de professores e alunos da rede pública ao ChatGPT [5]: “Devido a preocupações com os impactos negativos no aprendizado dos estudantes, e com a segurança e exatidão dos conteúdos, o acesso ao ChatGPT fica proibido nas redes e equipamentos das escolas públicas da cidade de Nova York”, disse a porta-voz do Departamento de Educação, Jenna Lyle. “Embora a ferramenta possa ser capaz de oferecer respostas rápidas e fáceis a questões, ela não constrói o pensamento crítico e habilidades na resolução de problemas, que são essenciais para o sucesso acadêmico e para a vida.”

Está claro, porém, que a calculadora não matou o ensino da matemática. Mas, evidentemente, o uso da calculadora nem sempre é permitido nas atividades de avaliação escolar. Por isso, se os trabalhos de casa já não eram muito confiáveis há muito tempo  dado o “copia e cola” generalizado , agora se tornou praticamente inútil. Por esse motivo, cursos de Direito que hoje têm uma grande carga de horas extraclasse, como parte do processo de autonomização do estudante, têm que repensar integralmente seus modelos, se quiserem efetivamente melhorar sua qualificação pedagógica.

Diante da evolução do acesso aos dados, o que se cobra dos estudantes tem que se elevar a um novo patamar. Não basta saber localizar o artigo de lei aplicável, não basta saber se tal fato se subsume em tal norma. E esse novo nível de exigência é, para mim, a missão de resolver problemas jurídicos mais complexos, para os quais a IA ainda não oferece resposta fácil. Mas e se as ferramentas de IA começarem a resolver também esses problemas mais complexos? Por enquanto esse problema não existe. Mas há um princípio aqui: sempre que a ferramenta tecnológica tornar passivo o estudante, seus efeitos pedagógicos serão negativos.

Minha posição é a de que a proibição absoluta é não apenas contraproducente, como tendente ao fracasso, como qualquer outro banimento generalizado na história: de livros, de “colas”, de bebidas alcoólicas etc. Defendo que as ferramentas de IA sejam cada vez mais utilizadas pelos professores, para que extraiam delas as melhores formas de engajar os alunos ativamente na sua própria formação.

Ferramentas tecnológicas pedagógicas e não-pedagógicas

Nem tudo que é tecnológico é pedagógico. Algumas ferramentas digitais atuais são extraordinariamente úteis para seus fins, mas não têm vocação para ensinar as pessoas. O exemplo que eu mais gosto de indicar é o dos aplicativos de navegação, como o Waze, TomTomGoogle Maps. Sabe-se lá como sobrevivemos até hoje com mapas físicos para nos deslocarmos no trânsito! As ferramentas tecnológicas nos fascinam pela capacidade de reduzir nosso trabalho e ser úteis para nossa vida.

Entretanto, os aplicativos de navegação são um recurso que não foi pensado para ensinar. Eles se prestam a uma tarefa bem clara e definida: indicar a alguém o caminho a seguir para alcançar o seu destino. Em regra, se alguém o usa uma vez, não necessariamente aprende o caminho para ali retornar sozinho.

Para as ferramentas pedagógicas não basta indicar o caminho para se conseguir alcançar um destino (ou um resultado almejado). Elas precisam ser pensadas para o fim de capacitar o estudante a realizar as tarefas de maneira autônoma. Essa, aliás, uma grande deficiência que se aponta no ensino tradicional do direito: imposto de cima para baixo, memorizado, ele não dá ao estudante uma desejada autonomia. Mudadas as circunstâncias do problema jurídico, há maior dificuldade de se apresentar uma solução.

Há também, frequentemente, a confusão entre a autonomia e a falta de apoio ao estudante. Dar autonomia a ele não significa abandoná-lo à própria sorte. Se queremos educá-lo, essa autonomia deve ser assistida. Uma ferramenta é inútil como formadora se ela não proporciona ao estudante os meios para alcançar os fins. Essa é uma das principais críticas a certos modelos de Ensino a Distância (EaD) que são oferecidos hoje aos estudantes: as horas extraclasse, que são o pressuposto de um ensino autônomo, em que o aluno seria o protagonista, deixam a ele tarefas que deve desenvolver sem apoio de um professor ou da própria ferramenta.

E isso pode estar muito acima de sua capacidade de enfrentar a questão, o que é fonte de desestímulo para o seu estudo. Com as ferramentas tecnológicas disponíveis hoje, essas horas extraclasse passam a ter como requisito indispensável que não sejam substituídas por simples consultas ao oráculo de IA.

Metodologias ativas e a gamificação

Dentre as ferramentas que promovem o engajamento do estudante e o seu protagonismo no processo educacional, tenho especial apreço pela gamificação. Sugiro deixar de lado a falsa ideia de que gamificação significa tratar o estudante como criança. Estamos falando de uma tecnologia pedagógica que pode ou não ter uma abordagem infantil. A gamificação como metodologia de ensino é uma série de técnicas de captura do interesse do estudante, de engajamento e de fixação de metas de curto, médio e longo prazos mensuráveis.

Fui muito impactado por uma experiência que conduzi no curso de Direito de uma universidade de São Paulo há alguns anos. Promovi um Moot Court simulando um processo judicial do início ao fim. Era uma atividade facultativa, sem nenhum tipo de repercussão na nota dos estudantes. Fiquei surpreso com a inscrição de 25 equipes, que se enfrentavam em sistema de “mata-mata”, após sorteio de chaves.

Na primeira rodada, cada equipe tinha que fazer uma petição inicial e uma contestação a respeito de um caso jurídico, comparando-se sua pontuação com a do adversário sorteado. O vencedor prosseguia no torneio e o derrotado era eliminado. A partir da segunda rodada até a última, cada embate era feito mediante debates orais, sempre sobre o mesmo caso jurídico.

No segundo ano de Moot Courts nessa universidade, houve um fato que causou a todos uma grande surpresa: a equipe vencedora do torneio foi uma equipe de terceiro ano. Mas o tema que foi objeto da disputa daquela edição era uma disciplina ensinada apenas no quarto ano, Direitos reais. Ou seja, os alunos foram levados a buscar autonomamente as informações para enfrentarem seus adversários e, após cinco vitórias consecutivas, tiveram o melhor desempenho de todas as turmas.

Tive então a melhor prova de que a gamificação é uma metodologia ativa poderosa, mobilizadora dos estudantes, que comemoraram o título abraçados, pulando e gritando palavras de ordem, orgulhosos de um feito verdadeiramente extraordinário. Alguém já viu isso acontecer depois de uma aula de direitos reais?

E dentre as metodologias ativas, a gamificação se destaca por uma particularidade: além de promover o engajamento dos estudantes, reduz a enorme distância que há entre a expectativa do aluno que ingressa no curso de Direito e a sua realização. A gamificação, ao simular a profissão jurídica, empodera o estudante e o motiva a fazer o que normalmente não quer: estudar com afinco a matéria jurídica.

Conclusões

Então temos quatro elementos já delineados para entender como ferramentas tecnológicas podem ser úteis no processo pedagógico em Direito: 1) elas podem e devem servir como ferramentas auxiliares na organização, preparação e oferecimento de aulas pelos docentes; 2) elas devem servir ao propósito de conferir autonomia ao estudante, para que este seja capaz de, por conta própria, chegar à resolução de um dado problema jurídico e tornar-se progressivamente independente da escola que o formou.

As ferramentas de IA hoje disponíveis não foram pensadas para essa finalidade, mas há iniciativas baseadas em metodologias ativas que são aptas a motivar o estudante a resolver problemas autonomamente; 3) para que o estudante disponha dessa autonomia é essencial que a ferramenta o capacite por seu turno; 4) metodologias ativas são tecnologias pedagógicas (em formato digital ou não) estimulantes, engajadoras e que dão poder e autonomia ao estudante, se bem articuladas com outros fatores da organização e oferta da educação jurídica.

Em um próximo artigo falarei especificamente sobre a técnica pedagógica de gamificação e sua utilidade para o estudo do Direito.

Fernando Herren Aguillar é doutor em Direito pela USP, mestre em Direito pela Académie Européenne de Théorie du Droit (Bruxelas), ex-diretor de faculdades de Direito em São Paulo e Brasília, professor do Curso de Gestão de Políticas Públicas da USP e criador do Law in Action (LIA).

Consultor Júridico

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