Fernando Herren Aguillar: E agora, como ensinar Direito?

A crise do modelo tradicional de ensino do direito e as demandas das novas gerações

Um dos temas mais paradoxais envolvendo a educação jurídica no Brasil diz respeito à permanência do modelo tradicional de ensinar o Direito. Novas formas são tentadas, e é preciso reconhecer que várias boas escolas de Direito já estão à frente com programas inovadores de ensino. Mas, ainda assim, o velho método é amplamente prevalecente nos cursos de direito no Brasil. Os resultados na formação dos estudantes, porém, não nos autorizam a pensar que, globalmente, o que tem sido feito é satisfatório, a julgar pelos números do Exame da OAB, que revelam que a média de aprovação gira em torno de 20% a cada exame [1].

Muitos dizem que isso se deve à mentalidade conservadora dos juristas ou a vícios arraigados da velha academia, mas isso ainda é insuficiente para entender o problema em profundidade.

Quero buscar neste primeiro tópico de análise entender os motivos pelos quais essas reivindicadas mudanças ainda não se cristalizaram na pedagogia jurídica. As observações que farei são baseadas na minha experiência como professor universitário e gestor de cursos de Direito no Brasil ao longo dos últimos 30 anos.

Quase todos reconhecemos que um ensino baseado na voz da autoridade, emitido unilateralmente por um professor, dependente de uma repetição que leva tendencialmente à memorização dos conteúdos, é um método ultrapassado. Esse método, concebido nos primórdios da universidade medieval, a partir do final do século 11, dura mais de 900 anos, com algumas variações.

Mas é preciso reconhecer que o referido método possui alguma virtude, pois, do contrário, não teria sobrevivido por tantos séculos. Fenômenos que se perpetuam no tempo são sempre uma boa pista para entender a sociedade e os anseios de cada época. A sociedade mudou radicalmente desde que os glosadores de Bolonha criaram esse método que podemos chamar de autoritário, verticalizado e pautado em ameaças de sanções ou reprovações.

As novas gerações — com bons motivos — passaram a questionar hierarquias de toda espécie. Autoridades não se firmam mais porque se autodenominem como tal, como funcionava razoavelmente bem nos meus anos de estudante. Talvez até as novas gerações tenham criado novas hierarquias que sequer eventualmente percebamos, mas o fato é que ganhar o respeito dos estudantes não é mais automático. A abundância de fontes de informação acessível a todos e a horizontalização das comunicações contribuem para uma democratização das relações e o enfraquecimento das hierarquias.

Mas por que o método tradicional de ensino do Direito não é abandonado? Se eu não posso mais impor pelo temor reverencial ao estudante que derrube a biblioteca, passe horas e horas lendo textos técnicos e acórdãos, redigidos em linguagem especializada, isso não significa que se possa deixar o estudante livre para decidir se estudará ou não. Porque todos sabemos que, ausente a coerção do sistema tradicional, o estudante tende à inação. Sim, há exceções, mas a imensa e esmagadora maioria dos estudantes, deixados livres para escolher se estudam ou não, não têm qualquer hesitação em escolher não estudar. E isso não é um atributo geracional, diga-se de passagem.

É inútil utilizar a técnica de convencer os alunos a estudar pelo benefício que terão no futuro. Estudantes são jovens e o futuro é apenas uma névoa esvoaçante em suas mentes, sem contornos definidos. Estudantes jovens vivem o presente e gerações anteriores os invejam por isso!

Mas os professores são aqueles que se encarregam de trazer a realidade do Direito e o futuro profissional para os jovens. Para que possam tocar a alma do estudante e impeli-los na boa direção, fechada a porta da coerção, só lhes resta descobrir meios de motivá-los, porque se os estudantes não buscarem espontaneamente o conhecimento, ninguém pode mais fazê-lo por eles. A coerção é uma substituição de vontade. A vontade inexiste, mas eu forço a ação, impondo-a. Temos que pensar em como despertar a vontade de agir, que está inanimada, sem constrangimento.

Não escondo meu entusiasmo quando vejo as novas gerações sustentarem que aprender não deve ser uma questão de submissão à autoridade inquestionável. Mas isso impõe a necessidade de repensar as metodologias de ensino para o Direito.

A motivação do estudante, muito além da autoajuda

Vi recentemente uma dessas postagens de internet dizendo que “motivação é coisa para amadores”. E que o sucesso profissional exige firme determinação, foco, consistência e disciplina para se alcançar os resultados almejados. As duas afirmações me parecem bastante plausíveis no contexto de profissionais e tendo a concordar com elas. No entanto, quando se pensa no perfil do estudante universitário — e não no do profissional — há uma diferença fundamental. O problema é que jovens estudantes nem sempre estão dispostos a obter esses resultados mediante tanto foco, tanta disciplina, até porque esses atributos se enquadram melhor no contexto das anteriores gerações. E é bom ressalvar que hoje já se questiona o prejulgamento que os mais velhos costumam fazer ao atribuir às novas gerações falta de resiliência [2]. Acrescente-se a isso o fato de que a pandemia do Covid-19 teve forte impacto sobre a motivação dos estudantes [3].

Quando se fala em formação universitária, o problema reside num momento anterior ao da deliberação de buscar obstinadamente resultados profissionais. Quando falamos para um profissional que ele deve ser obstinado para alcançar resultados em sua carreira, estamos pressupondo (geralmente com razão) que esse objetivo é efetivamente buscado por ele. Já o professor universitário deve ser capaz de despertar outro atributo: ele deve induzir o aluno a fazer o que ele não quer fazer. Falando claramente, o aluno ainda está pouco disposto a estudar. Ele se divide entre as delícias da vida social universitária e a modorra das aulas dogmáticas, com grande prejuízo para estas últimas.

Num dado grupo de estudantes há sempre os que se destacam e são extremamente dedicados. Isso acontece hoje também e ressalvo que há diferenças de universidade para universidade. Mas permanece, para o gestor e para o professor universitário, a necessidade de envolver não apenas esse restrito grupo de alunos na formação profissional, mas o máximo possível de estudantes.

Dizer para uma turma de estudantes que o sucesso profissional somente se obtém mediante determinação, foco e disciplina pode cair como uma luva para uns poucos alunos. Mas, para a massa de estudantes, isso me parece tão inócuo quanto recomendações morais de que os alunos não devam frequentar os bares dos arredores da universidade, ou que acreditem em si mesmos a qualquer custo.

Em suma, o desafio do professor de Direito é o de levar seus estudantes a fazer o que não querem, na esperança de que, rompendo essa barreira, eles descubram o sabor e a graça de exercerem uma profissão tão fascinante e difícil quanto a nossa. Portanto a questão motivacional é sim muito importante e não é coisa de amadores quando falamos da graduação em Direito.

As novas metodologias pedagógicas

É por esse motivo que as chamadas metodologias ativas têm sido tão valorizadas ultimamente. Há vários formatos e variantes, mas podemos citar a sala de aula invertida, o aprendizado baseado em problemas (PBL), a aprendizagem colaborativa, a gamificação, o design thinking, entre outros. Essas técnicas pedagógicas buscam obter o engajamento dos estudantes no seu processo de aprendizado ao colocá-los como protagonistas e não como passivos receptores de informação dos professores ou dos livros. Ao discutirem problemas, pesquisarem alternativas, proporem soluções e tomarem decisões, os estudantes tendem a adquirir de forma mais eficiente os conhecimentos de que necessitam em sua formação.

Num relatório do The Chronicle of Higher Education, indaga-se sobre como as faculdades norte-americanas podem recrutar, ensinar e servir à Geração Z [4]: “Esta é uma geração acostumada a oscilar entre os mundos real e virtual. Os estudantes de hoje automaticamente recorrem ao YouTube para obter informação, embora não acreditem que a tecnologia tenha potencial ilimitado no ambiente acadêmico. Acima de tudo eles querem educação que eles possam aplicar. Eles valorizam o aprendizado baseado em projetos e pesquisas durante a graduação que lhes propicie habilidades cruciais e úteis em suas profissões, para o resto de suas vidas”.

Esse engajamento é consequência da aplicação de uma técnica motivacional que faz todo o sentido no estudo do Direito. Uma das principais dificuldades que todo estudante de Direito enfrenta é a de compreensão do sentido e alcance de conceitos jurídicos, por vezes muito abstratos. A vinculação da teoria à prática é sabidamente uma forma de se contornar essa dificuldade. Eu posso até saber de cor quais são as condições da ação, mas eu apenas as entendo de verdade quando vivencio ou visualizo sua consequência prática, ou seja, que sua ausência pode levar à inépcia da inicial.

Informações memorizadas são frágeis e perecíveis em nosso cérebro, tanto quanto a memória RAM. Passado o exame, o decorado desaparece da mesma forma que os dados da memória RAM ao se desligar o computador.

O retido pelo exercício é sólido e permanece em nosso cérebro como no disco rígido (ou na nuvem). E o retido permanentemente ajuda a desenvolver o domínio, ou o empoderamento do estudante. E tudo isso, em conjunto, ajuda o estudante a se sentir mais envolvido com o processo pedagógico.

Não há método inovador mágico: é preciso criar as condições para os novos métodos

Digamos que um curso de Direito tenha se convencido da minha argumentação até agora e queira inovar, introduzindo metodologias ativas em seus currículos. É preciso ressalvar que esse processo não deve ser um simples copiar e colar. Conheço experiências concretas de introdução de metodologias ativas que foram malsucedidas, que não engajaram os estudantes e que foram deixadas de lado.

As diversas técnicas de metodologias ativas precisam ser pensadas levando em consideração o perfil do estudante, as condições em que chegam à universidade e suas ambições particulares. Estamos diante de um grupo de alunos com deficiências na sua formação de base? Ou temos um grupo de elite intelectual? Como se relacionam com as habilidades indispensáveis para a formação do profissional? Há vocação generalizada para a advocacia ou para outra carreira, pública ou privada?

Aspectos e peculiaridades regionais também interferem na escolha da metodologia e na forma de implementá-la. Há instituições de ensino superior muito marcadas por uma tradição local ou um perfil específico do profissional que se forma, ditadas por necessidades regionais. Elas ajudam também a definir o modelo de ensino a ser adotado.

As próprias técnicas ativas de aprendizado têm suas peculiaridades e se prestam a diferentes arranjos pedagógicos, dependendo dos objetivos a serem alcançados pela IES. Dou um exemplo: as metodologias ativas, em geral, são voltadas a obter o engajamento dos alunos. Mas uma delas, além de engajar, satisfaz a um outro aspecto relevantíssimo das expectativas das novas gerações, que é a ansiedade por obter resultados imediatos. Essa técnica é a gamificação.

A gamificação abarca diversas estratégias de motivação do aluno, como a de atribuição de recompensas por resultados alcançados, a sensação de simular o papel de um profissional (RPG — role playing game), a criação de metas de curto, médio e longo prazos que passam a ser metrificadas e acompanhadas pelos estudantes. Em suma, o diferencial da gamificação é que ela promove uma redução no hiato entre as ambições dos alunos ao ingressar no curso de Direito e a sua concretização, ao lhes antecipar o sabor do exercício da profissão. Sobre o tema voltarei a falar em breve, pois ele tem um impacto direto em outro tema de especial relevo hoje: a diminuição da evasão escolar.

Em conclusão, gestores e professores do curso de Direito somente poderão acompanhar as novas gerações que estão frequentando os bancos universitários quando lhes oferecerem um estudo do Direito motivador, engajador, com propósitos que desbordem do horizonte profissional, mas que fundamentalmente faça sentido prático para suas futuras carreiras. Enquanto esse passo não for dado, haverá uma inconsistência entre as aspirações dos estudantes e a forma como a aprendizagem lhes é oferecida.

Fernando Herren Aguillar é doutor em Direito pela USP, mestre em Direito pela Académie Européenne de Théorie du Droit (Bruxelas), ex-diretor de faculdades de Direito em São Paulo e Brasília, professor do Curso de Gestão de Políticas Públicas da USP e criador do Law in Action (LIA).

Consultor Júridico

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