Fiori Felippe: Patrimônio de afetação na incorporação imobiliária

A despeito do acalorado debate sobre sua real utilidade, é inegável que a análise econômica do Direito oferta interessante perspectiva acerca da efetividade dos instrumentos jurídicos existentes. Afinal, as figuras jurídicas são idealizadas para atingir determinado objetivo social, ao passo que a economia oferta um instrumental científico para medir tais resultados. Nesse âmbito, o presente artigo aborda, sem pretensão de exaurir complexo tema, como a eficiência da adoção do patrimônio de afetação na incorporação imobiliária pode ser comprovada sob a ótica da análise econômica do Direito.

Nos termos do artigo 28 da Lei nº 4.591/1964, “considera-se incorporação imobiliária a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas”, ao passo que o artigo 29 da mesma legislação estabelece que o “incorporador [é] a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial, ou que meramente aceite propostas para efetivação de tais transações, coordenando e levando a termo a incorporação e responsabilizando-se, conforme o caso, pela entrega, a certo prazo, preço e determinadas condições, das obras concluídas”.

O contrato de incorporação imobiliária, previsto da Lei nº 4.591/1964, é, nas palavras de Melhim Namem Chalhub, “negócio jurídico pelo qual o incorporador se obriga a realizar, por si ou por terceiros, a construção de unidades imobiliárias em edificação coletiva e, bem assim, a transmitir a propriedade dessas unidades aos respectivos adquirentes, firmando os respectivos contratos durante a construção; em contrapartida, obrigam-se os adquirentes a pagar o preço das unidades que se comprometeram a adquirir” [1].

Em síntese, pode-se dizer que a incorporação imobiliária é bem sucedida quando, finalizadas as obras, são entregues as unidades autônomas aos adquirentes, quitados os passivos com empregados, fornecedores, fisco e financiadores, e, por fim, gera lucro ao empresário.

Nesse sentido, é nítido o caráter coletivo do contrato de incorporação imobiliária, o qual dá o tom e condiciona sua funcionalidade econômica, pois, a despeito da individualidade dos contratos de comercialização das unidades, as obrigações e os direitos gerados por cada um deles são comuns a todos, de modo que a interdependência das relações e a exigência da coesão na implementação do contrato são de vital relevância, já que o inadimplemento repercute diretamente na coletividade [2].

Nesse âmbito, até 2004, um dos grandes problemas existentes era a utilização, pelo incorporador, dos recursos de um empreendimento para saldar débitos estranhos a ele, de modo que a consecução de um empreendimento era afetada pelas condições de outro ou, ainda, por questões particulares do empresário, alheias à atividade. Tal cenário gerava instabilidade no mercado imobiliário. Como solução ao problema, foi introduzida ao ordenamento a figura do patrimônio de afetação, inicialmente apresentada pela Medida Provisória nº 2.221/2001 e consolidada pela Lei nº 10.931/2004, por meio da inclusão dos artigos 31-A a 31-F à Lei nº 4.591/1964.

Os aludidos dispositivos autorizam a segregação de riscos por empreendimento ao permitir que o incorporador, por sua liberalidade, separe de seu patrimônio comum o terreno, as acessões e “os demais bens e direitos” vinculados a um determinado empreendimento, de modo a garantir que os seus recursos sejam empregados exclusivamente em seu propósito. Isso se justifica, pois “uma incorporação imobiliária depende geração de receitas mediante venda do seu ativo  os imóveis integrantes do empreendimento a construir  e da estabilidade do fluxo financeiro daí resultante e o êxito dessa atividade decorre da regular aplicação desses recursos na realização dos seus fins  execução da obra, entrega das unidades com registro dos títulos aquisitivos, liquidação do passivo e retorno do investimento” [3].

Percebe, pois, que ao fazer isto, a legislação criou um sistema especial de proteção aos adquirentes, cujo efeito é a garantia dos direitos dos demais credores da operação, ao custo da liberdade do incorporador e dos direitos creditórios dos demais credores. Para tanto, o objetivo final é resguardar o cumprimento do contrato de incorporação, de cunho coletivo.

Não sem motivo, o artigo 31-E estabelece as hipóteses de extinção do patrimônio de afetação, estando todas inseridas no âmbito do microssistema de proteção ao adquirente em incorporação imobiliária.

Para além das implicações cotidianas da tocada dos projetos afetados, a relevância de tais disposições são sentidas, sobretudo, nos momentos de crise do incorporador, trazendo consequências diretas para o direito da insolvência aplicado às empresas do setor. Isto, pois, apesar das divergentes interpretações, o Poder Judiciário tem, rigorosamente, observado a separação do patrimônio do patrimônio de afetação.

Na falência, a celeuma é menos problemática, pois a legislação é bastante clara. Conforme artigo 31-F da Lei de Incorporação Imobiliária, “[o]s efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem os patrimônios de afetação constituídos, não integrando a massa concursal o terreno, as acessões e demais bens, direitos creditórios, obrigações e encargos objeto da incorporação” e, em igual sentido, assevera o artigo 119, IX da Lei de Falência e Recuperação Judicial, inserido no capítulo destinado às falências, “os patrimônios de afetação, constituídos para cumprimento de destinação específica, obedecerão ao disposto na legislação respectiva, permanecendo seus bens, direitos e obrigações separados dos do falido até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento de sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer”.

Considerando a ausência de regulamentação específica, é mesmo no âmbito da recuperação judicial que a questão poderia vir a ficar conturbada. Veja-se que, com fundamento justamente nessa omissão legislativa, há autores que defendem a submissão dos direitos e obrigações de empreendimentos sujeitos ao patrimônio de afetação à recuperação judicial, destacando que seria “natural que, em prol da manutenção da atividade empresarial, os credores sacrifiquem interesses individuais, entre os quais não se poderiam excluir os credores do patrimônio de afetação” [4].

Todavia, não é esse o entendimento que prevalece na jurisprudência pátria. Transcreve-se trecho do REsp nº 1973180/SP, julgado em maio de 2022, em que foi negada a inclusão de SPEs com patrimônio de afetação na recuperação judicial da Incorporadora Esser: “a Lei de Incorporações criou um regime de incomunicabilidade que é incompatível com o da recuperação judicial. Os créditos oriundos dos contratos de alienação das unidades imobiliárias, assim como as obrigações decorrentes da atividade de construção e entrega dos referidos imóveis são insuscetíveis de novação. Ademais, o patrimônio de afetação não pode ser contaminado pelas outras relações jurídicas estabelecidas pelas sociedades do grupo”.

Entendimento similar foi aplicado às recuperações judicias da Construtora Atlântica, Grupo Viver e Construtora PDG, estando em consonância, ainda, com o Enunciado nº 628, da VIII Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, cuja redação estabelece que “os patrimônios de afetação não se submetem aos efeitos de recuperação judicial da sociedade instituidora e prosseguirão sua atividade com autonomia e incomunicáveis em relação ao seu patrimônio geral, aos demais patrimônios de afetação por ela constituídos e ao plano de recuperação até que extintos, nos termos da legislação respectiva, quando seu resultado patrimonial, positivo ou negativo, será incorporado ao patrimônio geral da sociedade instituidora”.

Portanto, verifica-se que, ao menos no plano de aplicação, tem sido dado efetividade ao comando normativo do patrimônio de afetação relativos às incorporações imobiliárias. Agora, cabe examinar se a separação do patrimônio de afetação se mostra uma medida eficiente à luz da análise econômica do direito, sob a perspectiva descritiva, também denominada como Direito e Economia Positivo.

A dimensão positiva do Direito e Economia “se ocupa das repercussões do Direito sobre o mundo real dos fatos” e, para tanto, assume-se que a “a Economia é uma poderosa ferramenta para analisar um vasto conjunto de temas” [5]. O principal benefício desse exercício é compreender como conceitos microeconômicos podem contribuir para a análise do direito.

Tal contribuição se dá, preponderantemente, de duas maneiras complementares entre si: a) de forma explicativa, pois fornecem subsídios para, em maior ou menor grau, justificar as estruturas do direito. O Direito, tal como os demais objetos de análise da Economia, é resultado de decisões racionais que buscam maximizar resultados em um ambiente de escassez, para atingir um equilíbrio. Contudo, ante a influência de fatores históricos e culturais, tal premissa deve ser mitigada, razão pela qual Cooter afirma que “a economia explica o direito, mas não chega a uma explicação completa”, posto que ‘não capta toda a realidade subjacente”, o que leva Salama a concluir que “a Economia ilumina problemas e sugere hipóteses, mas se torna mais rica quando conjugada com outros ramos do conhecimento”; ou b) de forma antecipativa, já que tem potencial para prever os efeitos de determinada norma jurídica. Por se tratar de método lógico-científico, a Economia é capaz de identificar, com maior precisão, as consequências de determinada imposição legal. A utilidade de cada uma varia conforme a área do Direito, mas é certo que a análise econômica do direito vem tendo reconhecido sucesso.

Tome-se a hipótese de separação do patrimônio de afetação como exemplo. Como já explicado, juridicamente, fundamenta-se na proteção dos adquirentes, os quais possuem posição notoriamente enfraquecida em face do incorporador. Por outro lado, tal prerrogativa também pode ser justificada a partir de conceitos econômicos. Trata-se, em última análise, de medida que garante a redução dos custos de transação, já que retira a necessidade de maior fiscalização das atividades do incorporador para além daquele específico empreendimento, eliminando a corrida de credores naquele microssistema e fomentando a cooperação daqueles mais interessados no cumprimento do contrato de incorporação imobiliária. De igual forma, maximiza o valor dos ativos daquela operação, posto que atrelados ao projeto específico, é mais provável que possa vir a satisfazer aos interesses de seus credores quando confrontados com os demais, principalmente pelos estímulos que a legislação oferta.

Ainda sob a ótica do Direito e Economia, assumindo o conceito de eficiência como a maximização da riqueza e do bem estar, somada a minimização dos custos sociais, é possível afirmar que a separação do patrimônio de afetação do patrimônio geral do incorporador gera eficiência de Kaldor-Hicks. Para compreender a eficiência de Kaldor-Hicks, no entanto, é necessário assimilar primeiro o conceito de eficiência Paretiana.

Na perspectiva Paretiana, entende-se que há uma melhora de Pareto quando, dentre os vários cenários possíveis, é realizada uma alteração que com potencial para melhorar a situação de um indivíduo sem piorar a de nenhum outro. A eficiência será atingida quando não for possível realizar novas melhorias de Pareto. É facilmente perceptível a limitação de tal raciocínio, uma vez que em toda ação tem sua consequência, logo, onde há “ganhadores”, há “perdedores”, independente do mérito da alteração.

Complementando esta ideia, no critério de Kaldor-Hicks, para superar a restrição acima elencada, defende-se que para atingir a eficiência, basta que “os ganhadores possam compensar os perdedores, mesmo que efetivamente não o façam”. Isso demanda a ponderação do custo/benefício. Se as externalidades positivas forem superiores às externalidades negativas, a solução será efetiva.

No caso da separação do patrimônio de afetação, a prevenção dos riscos, a conveniência de se organizar a operação de modo autônomo, a blindagem do empreendimento contra riscos a ele estranhos, os benefícios tributários, a maior segurança conferida ao cumprimento do contrato de incorporação e, consequentemente, à satisfação dos interesses dos credores do projeto e a mitigação dos efeitos nefastos do inadimplemento, mostram-se proveitosos quando sopesados em face da limitação da liberdade de movimentação patrimonial do incorporador, os custos envolvidos para operacionalizar a separação do patrimônio e a limitação dos direitos creditórios não envolvidos na própria operação. Portanto, à luz do conceito de Kaldor-Hicks, pode-se atestar a eficiência do patrimônio de afetação da incorporação imobiliária.

Resta, portanto, demonstrado que a instituição do patrimônio de afetação na Lei de Incorporações Imobiliárias é justificável não só pelos critérios jurídicos aplicáveis, mas pode ser fundamentada a partir de instrumentos de análise econômicos, os quais, em consonância, concluem pela sua racionalidade e eficiência.

Pedro Henrique Fiori Felippe é advogado associado da Advocacia Felippe e Isfer atuando no setor de Contencioso Estratégico e Coordenando o setor de Privacidade e Proteção de Dados e especialista em Processo Civil pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacelar.

Consultor Júridico

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