Flávio Andrade: Resolução dos Temas 6, 793 e 1.234 do STF

Os Temas 6, 793 e 1234 (repercussão geral) [1] do Supremo Tribunal Federal são de extrema relevância, exigindo um enfrentamento racional, adequado e mais ligeiro diante da crescente judicialização da saúde no país.

No âmbito do Direito à Saúde, é imperioso resolver o grande embaraço que hoje envolve os assuntos (imbricados) da existência, ou não, da obrigação de fornecimento de prestações de saúde não padronizadas pelo poder público, da competência para processar e julgar as ações tendentes a obtê-los, da legitimidade passiva ad causam dos entes públicos, da responsabilidade solidária desses entes e do acesso à justiça (a Justiça Federal naturalmente não está presente na grande maioria das cidades do interior).

Partindo do pressuposto de que no Tema 6 (em que a tese infelizmente ainda não foi aprovada), o STF fixou a compreensão retratada, em linhas gerais, na proposta de tese do ministro Luís Roberto Barroso [2], seguem, de forma objetiva, direta, algumas ideias sobre como as questões cruciais de competência, legitimidade passiva, solidariedade da responsabilidade e acesso à justiça poderiam ser equacionadas.

Nas sugestões abaixo, busca-se garantir, dentro do possível, o respeito à repartição administrativa das competências/atribuições, à organização descentralizada do SUS (regionalizada e hierarquizada) e o acesso à justiça (localidades em que não há uma unidade da Justiça Federal). Sem embargo de aprimoramento, acredita-se que os impasses possam ser resolvidos mediante a adoção dos seguintes critérios:

a) pedido de fornecimento de prestação de saúde padronizada (que faz parte do protocolo oficial  Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas  PCDT): ressalvados os medicamentos do Grupo I, conforme dispõe a Portaria de Consolidação GM/MS nº 02/2017, Título IV, Capítulo I, artigo 49, a obrigação é do município ou do ente estadual, conforme as regras administrativas atuais de repartição de atribuições/competências materiais. Havendo omissão ou falha do ente municipal ou do estadual responsável, conforme o caso, ele deverá ser demandado perante a Justiça Estadual da comarca onde reside o cidadão. Nesses casos, em vista das responsabilidades dos entes públicos devidamente estabelecidas nos artigos 16, 17 e 18 da Lei nº 8.080/1990 e já tendo sido feitos os repasses pela União, não se justifica sua inclusão no polo passivo dessas demandas.

Nessas hipóteses, se o medicamento/material é registrado na Anvisa, foi aprovado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) e incorporado à lista Rename/Renases, deveria ter sido disponibilizado ao cidadão que dele necessita. Os problemas de licitação ou contratação ou mesmo a ignorância quanto à incorporação não podem obstar o acolhimento do pedido. Nesses casos em que a falha é de gestão, em regra não há razão para se demandar também contra a União. Talvez, em alguma situação específica, o Ministério da Saúde, responsável pela direção nacional do Sistema Único da Saúde (SUS), venha a falhar (exemplo: atraso no repasse de verbas), oportunidade em que, demonstrado isso nos autos e havendo chamamento do ente federal ao processo, o feito deverá ser remetido à Justiça Federal.

b) pedido de fornecimento de prestação de saúde padronizada prevista no supracitado Grupo 1 ou de medicamento para tratamento do câncer: a obrigação é da União, de maneira que, havendo falha ou omissão de tal ente, o cidadão deverá contra ela demandar perante a Justiça Federal. E, para viabilizar o acesso à justiça (artigo 5º, incisos XXXV e LXXIV, da CF/88) aos cidadãos que residem em cidades/comarcas onde não instalada a Justiça Federal, há de se aplicar, por analogia, a regra do artigo 109, §3º, da Constituição Federal (delegação de competência previdenciária), permitindo que possam demandar contra a União perante o Juízo Estadual da comarca onde moram, com possibilidade de recurso para o TRF (§4º do referido preceito constitucional); e

c) pedido de fornecimento de prestação de saúde não padronizada (que não faz parte do protocolo oficial): o ideal é que, antes de mais nada e se não houver situação de urgência, o cidadão, assistido pela Defensoria Pública ou por seu advogado (ou o Ministério Público, agindo no interesse de determinado indivíduo), peça à Conitec a incorporação ao SUS daquele medicamento, material ou outra prestação de saúde, incumbindo a tal conselho decidir em até 90 dias. Se houver contexto de urgência, se ocorrer a negativa ou houver demora demasiada para a decisão ou, ainda, se o pleito de incorporação já foi apreciado e rejeitado pela Conitec, o cidadão, inconformado, poderá propor a ação judicial em face dos três entes públicos (União, Estado e Município) perante a Justiça Federal, se residir em município onde instalada uma unidade da Justiça Federal. Se na sua cidade não houver uma vara federal, deverá, a partir da aplicação analógica da regra do artigo 109, §3º, da Constituição Federal (delegação de competência previdenciária), dirigir a ação ao Juízo Estadual da comarca onde mora, com possibilidade de recurso para o TRF (§4º do referido preceito constitucional).

Nesses casos de prestações de saúde não padronizadas, parece que não há como evitar a formação do litisconsórcio passivo necessário entre os três entes públicos, haja vista a competência constitucional comum de cuidar da saúde (artigo 23, II, e 196, ambos da CF/1988). Esses casos são os mais complexos. A União/Ministério da Saúde, órgão central do sistema e a quem está ligada a Conitec, precisa ter a chance de defender as razões pelas quais entende indevida a incorporação (considerações de eficácia, segurança ou de custo-efetividade?), os motivos pelos quais acredita não ser o caso de fornecer tal prestação de saúde ao autor da demanda (cidadão assistido pela Defensoria Pública ou Ministério Público). Não se pode admitir que o autor da ação continue livremente a escolher contra quem litigar, permitindo-se que exclua a União da discussão e de sua responsabilidade constitucional. Também não se pode aceitar que o Estado-membro e/ou o município sejam obrigados a sozinhos arcarem com tal custo, quando for o caso (STA 175 e Tema 106 do STJ [3]  indispensabilidade da prestação no caso concreto), ficando a União isenta de responsabilidade.

Se a prestação pleiteada não foi incorporada ao SUS e se a responsabilidade é comum/solidária, não se mostra correto impor apenas a um ou alguns dos entes o ônus de custeá-la, quando preenchidos os requisitos. E o ponto crucial da discussão é: como distribuir o encargo financeiro pelo custeio de prestações não padronizadas, nos casos em que forem concedidas em juízo por se revelarem necessárias? Entendo que dividir essa despesa em partes iguais entre os três entes pode onerar bastante os municípios, entes financeiramente mais frágeis do sistema. Talvez, até que o assunto receba disciplina legal específica, a União deva arcar com 45%, o Estado-Membro com 35% e a municipalidade deva custear 20% do valor, ficando-lhes assegurado o direito de fazer as compensações administrativas que entenderem oportunas para o fechamento das contas. Tal distribuição poderá ser alterada se de modo diverso for pactuado na Comissão Intergestores Tripartite.

Quanto ao direcionamento do cumprimento da obrigação nessas hipóteses de concessão judicial de prestações que estão fora do protocolo oficial, acredita-se que a ordem deva ser dirigida ao ente público que tem responsabilidade para o fornecimento de prestações similares à concedida pelo Juízo, segundo as diretrizes contidas na Portaria de Consolidação GM/MS nº 02/2017. Noutras palavras, se se tratar de medicamento que não foi incorporado porque já existem similares no grupo 1, a responsabilidade seria da União. Se se tratar de medicamentos que possuem similares nos demais grupos, deverão ser observadas as premissas de responsabilidade já definidas, o que até facilitará o cumprimento da ordem judicial.

Mesmo nos casos em que se pleiteia medicamentos sem registro na Anvisa, haverá de se seguir as balizas acima sugeridas e as fixadas na tese do Tema 500 da Corte Suprema [4]. Ainda, nos casos em que se postular uma prestação de saúde padronizada para uso fora da bula (prescrição off label), hipótese que não é tão comum, parece sensato que se deva seguir as diretrizes do item “c”, acima idealizadas, a fim de que o custo, naquele caso concreto, seja convenientemente distribuído entre os entes públicos que integram o SUS.

Enfim, o propósito destas breves reflexões é apenas compartilhar ideias voltadas à resolução adequada de um sério problema, que reclama enfrentamento/tratamento mais alinhado com a organização e gestão descentralizada do SUS, não se obstando, ainda, o acesso à justiça por parte daqueles que residem onde não está instalada uma vara da Justiça Federal. É claro que as sugestões acima estão sujeitas a críticas, porém se pretendeu, de forma franca e consistente, contribuir para o debate voltado à solução das questões à luz da lei e da realidade vivenciada no interior do país [5].

Flávio da Silva Andrade é juiz federal da Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais em Uberlândia/MG, doutor e mestre em Direito pela UFMG.

Consultor Júridico

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