França e Brunelli: Decisão na ADI nº 6.591 e suas consequências

Transitou em julgado, recentemente, o acórdão do Supremo Tribunal Federal que julgou parcialmente procedente, por maioria de votos, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.591, a respeito da (im)possibilidade de o servidor público exonerar-se a pedido ou aposentar-se voluntariamente durante a tramitação de processo administrativo disciplinar (PAD).

A ação foi proposta pelo governador da Bahia em face do artigo 240 da Lei Estadual nº 6.677/1994, que tem redação idêntica àquela do artigo 172 da Lei nº 8.112/1990 (que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos federais), qual seja: “O servidor que responder a processo disciplinar só poderá ser exonerado a pedido, ou aposentado voluntariamente, após a conclusão do processo e o cumprimento da penalidade, acaso aplicada”.

De forma sucinta, o STF entendeu ser constitucional a previsão contida no artigo impugnado, muito embora, a respeito da aposentadoria voluntária, tenha declarado a necessidade de um prazo razoável para a duração do processo, a partir do qual será necessário que a Administração Pública dê prosseguimento ao pedido de aposentadoria formulado pelo agente público.

Os autores deste texto, da mesma forma que a parte autora da ADI, entendem que a previsão que proíbe a exoneração a pedido e a aposentadoria voluntária na pendência de julgamento de processo disciplinar, em qualquer legislação, viola em primeiro lugar os princípios da presunção de inocência e da razoabilidade, pois cria embaraços existenciais significativos a um agente público que pode ser inocentado ao final do processo.

Entretanto, para que a análise do julgamento não se detenha a aspectos abstratos ou a um juridiquês verborrágico, este artigo busca trazer pequenos exemplos da vida prática, nos quais os agentes públicos sofrerão o impacto negativo da decisão proferida pelo STF, uma vez que a discussão, na forma como suscitada no acórdão, demonstrou ser demasiada sucinta diante de um tema tão relevante.

Em primeiro lugar, como consequência prática imediata da legislação em comento, referendada pela decisão do Supremo resumida acima, temos que o servidor que figure como acusado em PAD será obrigado a permanecer trabalhando enquanto tramitar o processo. Com isso, no exato momento de instauração do PAD, o servidor já é compelido a continuar seus trabalhos, ainda que a despeito de sua vontade  fato que, ao restringir a sua liberdade de escolha de onde e quando trabalhar, já pode ser tido como parte de uma sanção imposta a si. 

Note-se, contudo, que vedar em absoluto o trabalho forçado foi um dos compromissos da Constituição, sedimentado no inciso XLVII de seu artigo 5º Ainda que pudesse haver, à época, aqueles que defendessem tese contrária, logo esta ideia foi rechaçada em um sinal claro: o trabalho forçado não tinha lugar na Carta de 1988; porém, a decisão proferida pela Corte, que age pretensamente como guardiã dessa mesma Constituição, reconhece como constitucional um dispositivo legal que obriga o servidor público a permanecer trabalhando independente de sua vontade ou das circunstâncias em que vive, em aparente afronta ao disposto na norma acima referida.

A fim de evidenciar melhor a problemática, pensemos no seguinte cenário: Aurélio (nome fictício), servidor público adoecido mentalmente, figura como investigado em PAD em razão de sua suposta falta de urbanidade, face denúncia de que teria promovido manifestação de desapreço a um colega de trabalho na repartição.

Em razão do humor de Aurélio, nenhum de seus colegas de trabalho detêm apreço por ele, de modo que enxergam no PAD uma forma de vingança, utilizando-se do processo dissimuladamente, com a finalidade de gerar dano ao servidor investigado. Como consequência, o PAD agrava a saúde mental de Aurélio, que percebe a necessidade de sair do serviço público para o seu próprio bem. Infelizmente, seguindo o entendimento do STF, não há norma na Constituição que o proteja ou que garanta este direito fundamental, fazendo com que Aurélio, obrigatoriamente, continue trabalhado até ser inocentado ou sancionado, ocasião em que, enfim, poderá ser exonerado a pedido.

Por outro lado, a norma tida como constitucional pelo STF na ADI em comento também contraria a liberdade de exercício profissional prevista no artigo 5º, inciso XIII, da Carta Magna, que trata do direito de os indivíduos escolherem sua profissão sem ingerência estatal, se tratando, portanto, de espécie de liberdade voltada ao projeto de vida individual [1].

Na redação do artigo 172 da Lei 8.112/90 (idêntica àquela objeto da ADI e aqui citada por abranger o âmbito federal), o Estado define que, enquanto existir PAD instaurado em face de determinado servidor, este não poderá pedir exoneração a fim desempenhar outra atividade profissional que lhe pareça melhor, numa temerária ingerência estatal sobre o planejamento profissional de um cidadão.

Aqui, também cabe um exemplo ilustrativo: Aurélio, que há muitos anos tem cargo de chefia, está cansado do trabalho que realiza e há tempos deseja migrar para outro cargo público. Certo dia, é aprovado em concurso no qual receberá o triplo de sua remuneração atual. Contudo, em virtude de suposta infringência ao dever de zelo, existe um PAD em seu desfavor.

 Novamente, considerando o entendimento do STF, Aurélio não poderá ser exonerado a pedido e, portanto, estará impedido de tomar posse neste novo cargo, pela vedação constitucional ao acúmulo de cargos públicos. De outro lado, caso desejasse aceitar um cargo de gerência na iniciativa privada, igualmente estaria praticando conduta proibida [2], que culminaria em um segundo PAD.

Refém dessa situação, o servidor tem de se resignar com o fato de que não pode escolher sequer a sua própria profissão enquanto o PAD a que responde não se encerrar  o que mesmo para um leigo parece soar inconstitucional. Contudo, ainda que para um mero exercício de reflexão, questiona-se: e se Aurélio fosse inocentado ao fim do processo? Quem pagaria a diferença remuneratória a que ele faria jus pela chance perdida no novo cargo, no qual fora impedido de tomar posse em virtude de um processo disciplinar descabido? Infelizmente, provocações como essa não estiveram nos debates dos ministros.

O que se percebe, portanto, é que o STF, sob a batuta do voto proferido pelo ilustre ministro Edson Fachin, analisou uma única consequência como argumento para reconhecer a constitucionalidade do artigo 240 da Lei Estadual 6.677/1994: a exoneração ou aposentação do servidor público investigado em PAD poderia ser utilizada por este para “contornar” uma eventual sanção administrativa. Essa suposta consequência é alçada ao posto de fundamento, que faz o Supremo “afastar as alegações de ofensa à inatividade, à presunção de inocência e à liberdade de profissão”.

Não obstante, se percebe que, na verdade, o STF interpretou a Constituição Federal a partir da referida norma infraconstitucional, invertendo, assim, a hierarquia do ordenamento jurídico, sequer analisando detidamente os direitos fundamentais relacionados à matéria, e adotando uma única possível consequência como justificativa para a manutenção da norma Baiana no ordenamento jurídico.  

No entanto, com a devida vênia, este argumento um tanto sucinto e reducionista não se sustenta, pelo simples fato de que o processo administrativo disciplinar poderia prosseguir mesmo com o rompimento do vínculo entre o servidor e a Administração Pública, com a anotação da eventual penalidade aplicada em seus registros, conforme é feito, por exemplo, naqueles casos em que somente depois da aposentadoria ou da exoneração do agente é que se descobrem fatos irregulares em sua atuação.

Este é o entendimento, inclusive, admitido pela Controladoria-Geral da União em seu Manual de Processo Administrativo Disciplinar:

“(…) Contudo, o eventual conhecimento tardio do suposto ilícito disciplinar poderá resultar em processo disciplinar instaurado para apurar a conduta de servidor já desvinculado do serviço público (ex-servidor), tais como o aposentado, o exonerado (a pedido ou de ofício, como no caso de não aprovação no estágio probatório), o demitido, ou aquele que tenha pedido vacância por posse em outro cargo, acumulável ou inacumulável” [3].

No mesmo sentido já houve manifestação do STJ (Superior Tribunal de Justiça):

“Ementa: MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. MINISTRO DOS TRANSPORTES. EX-SERVIDORES DO DNER. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. APURAÇÃO DAS IRREGULARIDADES POSSIVELMENTE COMETIDAS QUANDO NO EXERCÍCIO DAS RESPECTIVAS FUNÇÕES. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DO ALEGADO DIREITO LÍQUIDO E CERTO.”

Não se vislumbra o alegado direito líquido e certo, considerando que a Administração está, no exercício de seu direito, apurando as possíveis irregularidades dos impetrantes, quando no exercício de suas funções. Ordem denegada [4].

Esta é a razão pela qual o consequencialismo jurídico, por si só, é insuficiente para uma decisão dessa magnitude: os julgadores não são especialistas em probabilidades, então partem do senso comum (e subjetivo) para antever as possíveis consequências de sua decisão, o que aumenta a imprevisibilidade dos julgamentos, deslegitimando a ciência jurídica autônoma e, ainda, podendo deteriorar a hermenêutica jurídica [5].

E no caso concreto, ainda que a Corte optasse por realizar um juízo sobre as consequências práticas de sua decisão, deveria fazê-lo considerando uma variedade de cenários; entretanto, o voto do Relator, acolhido por maioria, justifica seu posicionamento em poucas linhas, limitando o debate e não se atentando para outros cenários, como o da continuidade do PAD mesmo após o pedido de exoneração, por exemplo.

Sendo assim, analisando a decisão da Suprema Corte e seus fundamentos, conclui-se que a possível consequência para a Administração Pública que fora utilizada pelo STF como ratio decidendi, ou seja, a possibilidade de o servidor “contornar” a penalidade aplicada, não passa de um juízo de conveniência, haja vista que, conforme explicado, esta situação poderia ser, na verdade, igualmente “contornada” pela Administração, que detém várias formas de aplicar uma sanção mesmo ao ex-servidor.

De outro lado, os impactos desta decisão na vida da pessoa física atingida podem ser muito mais nocivos, fazendo com que agentes públicos sejam obrigados a continuar trabalhando em ambientes que prejudicam a sua saúde mental, em uma tortura psicológica, ou mesmo com que percam grandes oportunidades em sua carreira por conta de processos muitas vezes instaurados por motivos que violam a impessoalidade. Bom, assunto para outro texto.

Quanto ao tema aqui debatido, ao que parece, resta esperar que os cenários descritos acima (e inimagináveis nos corredores onde se faz justiça) não aconteçam para o servidor público; enquanto isso, em nosso íntimo punitivista, alegremo-nos! O poder de punir da Administração está resguardado (mais uma vez) pelo Supremo Tribunal Federal.

Guilherme Gomes França é bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba, especialista em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e em Direito Processual Civil pela Escola Superior de Advocacia (ESA), pós-graduando em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG, com formação complementar em Direito Administrativo pela FGV-RJ, e advogado especializado em agentes públicos em Curitiba (PR).

Henrique Inácio Paz Brunelli é pós-graduado em Direito Tributário pela Escola Superiora da Advocacia (ESA) e em Sociologia, História e Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), pós-graduando em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR) e advogado na área de Direito Administrativo.

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn
plugins premium WordPress

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor