Franca e Lima: Accountability e controle das finanças eclesiásticas

“O que é fiel no pouco, também é fiel no muito; e o que é injusto no pouco, também é injusto no muito” (Lc 16,10). Assim termina a parábola do administrador infiel, no Evangelho de Lucas, e assim começa o papa Francisco o seu Motu Proprio de 26 de Abril de 2021, sobre a transparência na gestão das finanças públicas, uma preocupação constante do atual pontificado. Um Motu Proprio é uma espécie de decreto papal publicado no L’Osservatore Romano, o diário oficial do Vaticano, e decidido de ofício – daí o seu nome, algo como “de iniciativa própria”, e não em resposta a uma provocação. Essa espécie normativa é de autoria do próprio papa, e não de qualquer de seus secretários ou prefeitos.

Marcílio Franca

Aquele não é o primeiro documento a respeito da boa governança emanado do atual Santo Padre. O texto deixa claro que a legislação vem na esteira do Motu Proprio de 19 de Maio de 2020 que dispõe “sobre a transparência, o controle e a concorrência nos procedimentos de adjudicação de contratos públicos da Santa Sé e do Estado da Cidade do Vaticano” e estabelece as diretrizes para as licitações romanas, adotando princípios já familiares aos juristas brasileiros, como planejamento, impessoalidade, publicidade, eficiência, economicidade e segregação de funções.

O Motu Proprio de 2021 estabelece mais um novo regulamento canônico para o combate à corrupção na igreja católica, em conformidade com a Convenção da ONU contra a Corrupção, assinada em 9 de dezembro de 2003, na cidade de Mérida (México), e ratificada pela Santa Sé em Setembro de 2016. A finalidade precípua desse tratado internacional, também internalizado pelo Brasil, é atestada no seu art. 1, a): “promover e fortalecer as medidas para prevenir e combater mais eficaz e eficientemente a corrupção”.

Na norma mais recente, o papa passa a exigir de todos os funcionários com cargos de direção superior na Santa Sé, sejam leigos ou eclesiásticos, uma declaração bienal de conformidade com os regulamentos anti-corrupção da igreja, incluindo a vedação à participação em ou a colaboração com grupos de “fins contrários à doutrina social da Igreja” ou a posse de bens de origem criminosa (artigo 13bis, §1, alíneas “d” e “e”).

Quanto à responsabilidade criminal, fica perpetuamente proibido a qualquer pessoa que já foi condenada por crime doloso, em decisão definitiva, assumir qualquer um dos postos de direção superior listados no Motu Proprio. A lei é ainda mais rigorosa do que a vasta maioria das jurisdições seculares: não somente os que foram condenados, mas também os beneficiados por indulto, graça, anistia ou mesmo pela prescrição da pretensão punitiva têm a porta da Basílica de São Pedro permanentemente fechada para o cuidado dos bens da Igreja (ibid, alínea “a”).

Embora severa, é uma providência compreensível, que se aplica somente aos oficiais detentores dos postos mais altos da Cúria, cargos de alto risco que administram diretamente vultosas somas, como especificado nos §§1 e 2, indo também ao encontro da declaração periódica de atividades preceituada pela Convenção de Mérida para a prevenção da corrupção (artigo 8, 5.).

No tocante aos crimes financeiros e fiscais em geral e aos tipos penais de organização criminosa, terrorismo, tráfico humano e de menores, aquela vedação também abrange processos e investigações pendentes (ibid, alínea “b”). Também estão proscritos aqueles que detêm bens em países considerados, pela Autoridade de Vigilância e Informação Financeira da Cidade do Vaticano, de alto risco de lavagem de dinheiro ou financiamento de atividades terroristas, exceção feita aos que lá residem por motivos familiares, laborais ou acadêmicos (ibid, alínea “c”).

A preocupação do papa com a fidelidade na gestão financeira não é gratuita: hoje, o mundo assiste atônito ao processo do cardeal Giovanni Angelo Becciu, acusado de diversos crimes financeiros ante o Judiciário do Estado do Vaticano, composto em sua maioria por juristas leigos e responsável por aplicar a lei penal canônica aos infratores civis e eclesiásticos que atentam contra a ordem jurídica da Igreja. Entre os crimes que lhe são imputados, estão o de ter conduzido irregularmente a compra de um imóvel de luxo em Londres e desviar vultosos fundos para uma instituição de caridade gerenciada por seu irmão.

O Sumo Pontífice, embora tenha dito que “espera de todo o coração” que o purpurado prove sua inocência, não colocou obstáculo algum ao trabalho da promotoria encabeçada por Alessandro Diddi — jurista consagrado, professor de Processo Penal na Universidade de Calábria e nomeado promotor-geral por Sua Santidade em Setembro de 2022 — que parece estar encaminhada para a vitória: a leitura da correspondência do cardeal com o papa, trocada pouco antes do começo do processo, colocou séria dúvida em sua versão dos fatos.

Com efeito, o Vaticano não possui tributação própria, o que faz com que sua renda consista basicamente em doações, exploração e investimentos de seu patrimônio, e oferecimento de serviços para o público em geral, como a venda de ingressos para os seus museus e a aquisição de seus selos. Esta situação cria uma preocupação ainda maior com a honestidade daqueles encarregados de sua administração, não apenas em Roma mas em toda e qualquer paróquia.

Por essa razão, ainda no pontificado de Ratzinger, foi instituída a Autoridade de Vigilância e Informação Financeira, pelo Motu Proprio de 30 de Dezembro de 2010, com o propósito de supervisionar os trabalhos anticorrupção das entidades da Santa Sé e fornecer inteligência financeira, elaborando, por exemplo, as listas de países considerados de alto risco de lavagem de dinheiro, evasão fiscal e financiamento de terrorismo.

O processo de reforma da Cúria, visando torná-la cada vez mais vigilante diante da modernização da criminalidade de colarinho branco, foi continuado pelo atual papado no Motu Proprio Fidelis Dispensator et Prudens, que institui o Gabinete do Auditor Geral, responsável pela auditoria do patrimônio da Santa Sé e da Administração Vaticana, dotado de autonomia funcional — uma estrutura algo similar à dos nossos Tribunais de Contas —, competente para receber denúncias de potenciais whistleblowers e assegurar a confidencialidade de suas identidades, vedadas as denúncias anônimas.

Já de idade avançada, e antevendo o fim de seu pontificado, o Papa argentino, na Audiência concedida ao Cardeal Secretário de Estado em 24 de abril de 2023, estabeleceu, através de um Rescrito, que o escritório do auditor geral continuaria funcionando no período de vacância da Sé Petrina, excetuando a regra prevista na Constituição Apostólica Praedicate Evangelium de cessação dos serviços curiais (artigo 18, §1).

É por estas razões que Sua Santidade deplorou, na abertura do ano judicial de 2023, que as condutas de certos oficiais da Cúria tornaram as investigações e processos criminais dolorosamente necessários“, ferindo a missão da Igreja. Impossível não lembrar das palavras do Evangelho: “É inevitável que venham os escândalos, mas ai daquele por quem eles vêm!” (Lc 17,1).

Probidade, honestidade, lisura, boa governança e transparência não são, per si, governar, mas, como certa vez bem advertiu o ministro Carlos Ayres Britto, têm um papel essencial para evitar o desgoverno. Ao católico brasileiro, e principalmente aos gestores públicos católicos, fica a exigência evangélica de fidelidade e exatidão no cumprimento de seus deveres, que não são nada menos do que sagrados.

No ano passado, ao recepcionar uma delegação da Receita Federal italiana, o papa Francisco observou que “quem gere os bens de todos tem a grave responsabilidade de não se enriquecer”. E relembrou uma passagem, de 1948, que o padre Primo Mazzolari dirigiu aos políticos católicos eleitos para o parlamento italiano: “Muito será perdoado a quem, não tendo sido capaz de prover a todas as dificuldades dos outros, terá tido o cuidado de não prover às suas próprias”.

Marcílio Franca é procurador do Ministério Público de Contas da Paraíba, onde chefia a Força-Tarefa do Patrimônio Cultural e coordena a Plataforma Pedro Américo.

Consultor Júridico

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