Francisco Sannini: Abordagem policial e direitos coletivos

Nos últimos anos, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) vem se destacando por restringir a ação das agências policiais no que se refere a busca e revista pessoal na via pública, medida que, nos termos do artigo 240, §2º, do CPP, está condicionada à “fundada suspeita” de que alguém oculte consigo arma proibida, objetos de procedência criminosa ou que sirvam de prova de infração penal.

Como se pode notar, a busca pessoal, diferentemente da busca domiciliar, não está sujeita à reserva de jurisdição. Destaque-se, todavia, que as duas situações, em maior ou menor medida, repercutem na esfera da privacidade e liberdade individual das pessoas. Não por acaso, a Constituição estabelece, ao menos em regra, a inviolabilidade domiciliar como uma espécie de tutela específica da intimidade e vida privada (artigo 5º, inciso XI).

Trata-se, inegavelmente, de previsão constitucional que limita ações do Estado que possam violar uma das esferas mais restritas da intimidade das pessoas, conferindo maior autonomia e liberdade ao indivíduo no interior de sua casa. Sobre o tema, vale reproduzir o famoso discurso de Lord Chatam, perante o parlamento inglês: “O homem mais pobre desafia em sua casa todas as forças da Coroa, sua cabana pode ser muito frágil, seu teto pode tremer, o vento pode soprar entre as portas mal ajustadas, a tormenta pode nela penetrar, mas o Rei da Inglaterra não pode nela entrar” [1].

Ocorre que o direito à inviolabilidade domiciliar não é absoluto, comportando limitações nas hipóteses indicadas pelo próprio texto constitucional, que inclui as situações de prisão em flagrante delito. Isso porque em tais casos o direito fundamental intrínseco na norma penal incriminadora está sendo violado pelo delinquente, justificando, assim, a mitigação de outro direito (postulado da proporcionalidade).

Sob tal perspectiva, foi bem o STF (Supremo Tribunal Federal) ao estabelecer critérios objetivos mínimos para a ação policial nas situações de flagrante delito em residências: “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados” [2].

Nesse contexto, considerando a garantia da inviolabilidade domiciliar, o ingresso da polícia em residências exige um standard probatório robusto, devendo ser demonstrado, ainda que posteriormente, os elementos objetivos que indicavam não a possibilidade, mas a probabilidade da situação flagrancial, exigindo-se quase que uma certeza visual do crime.

Por outro lado, em se tratando de buscas pessoais na via pública, não podem ser exigidos os mesmos requisitos, sobretudo porque nessas circunstâncias não há expectativa de privacidade por parte do cidadão. Não por acaso, ao regulamentar a captação ambiental como meio de obtenção de prova (artigo 8-A, da Lei 9.296/96), o legislador dispensou a necessidade de ordem judicial quando o registro for feito na via pública, estabelecendo algumas condições apenas quando a medida se destina a ambientes privados.

Não obstante, a jurisprudência vem limitando a ação policial e reconhecendo a ilegalidade de buscas pessoais na via pública pela ausência de “fundada suspeita” para as abordagens. De maneira ilustrativa, o STJ já entendeu que demonstrar medo ao notar a aproximação de uma viatura policial, seguido da conduta de “dispensar” algo na via pública, não caracteriza fundada suspeita para a busca pessoal (HC 173.021/SP).

Em outro julgado (HC 158.580/BA), o STJ concluiu que denúncia anônima e a intuição do policial também não servem de justificativa para a abordagem. Em julgado mais recente, o TJ-PR decidiu que o fato de o agente estar em um “ponto de tráfico de drogas”, por sio só, não caracteriza “fundada suspeita” para busca pessoal (HC 0037291-13.2023.8.16.0000).

Como se pode notar, os tribunais vêm apontando situações que não justificam a ação policial, mas raramente explicam os casos em que a busca pessoal seria possível, gerando, consequentemente, uma enorme insegurança jurídica para os policiais e, o que é pior, dando ensejo à nulidade de provas e prisões que resultam na irresponsabilidade penal de criminosos detidos portando armas e drogas.

Muito embora seja louvável o esforço dos tribunais na análise da questão, o que, vale dizer, deve servir para a qualificação da atividade policial desde a formação nas escolas e academias de polícia, mitigando, assim, abordagens truculentas e preconceituosas, mas, neste estudo, o nosso objetivo é apresentar um entendimento diverso e mais protetivo ao bem jurídico, segurança pública.

Conforme já destacado, a abordagem seguida de revista pessoal realizada na via pública não pode ser considerada ilegal porque, em tais condições, não existe expectativa de privacidade por parte do cidadão. Demais disso, deve-se ponderar que a liberdade individual pode ser restringida em respeito aos interesses coletivos, o que justifica a ação policial no intuito de garantir a ordem pública e prevenir a prática de crimes.

Nesse sentido, aliás, dispõe a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) ao tratar do direito de circulação e de residência, destacando no seu artigo 22, item 3, que o exercício desses direitos não pode ser restringido senão em virtude de lei, na medida indispensável, numa sociedade democrática, para prevenir infrações penais ou para proteger a segurança nacional, a segurança ou a ordem públicas, a moral ou a saúde públicas, ou os direitos e liberdades das demais pessoas.

Não por acaso, a nova Lei Geral do Esporte prevê no seu artigo 158, inciso III, como condição para acesso e permanência no recinto esportivo, o consentimento para a realização de “revista pessoal de prevenção e segurança”. Evidentemente, esta previsão tem por objetivo garantir a ordem pública e evitar a prática de infrações penais, não tendo qualquer finalidade probatória.

É justamente com esta perspectiva que sustentamos a possibilidade da abordagem e revista pessoal de alguém que se encontre na via pública, independentemente da existente de fundada suspeita. Dizendo de outro modo, o artigo 240, §2º, do CPP, não poderia servir de base para a ação policial nessas circunstâncias, pois, insista-se, a ação teria caráter preventivo e não probatório. Nota-se que quando a medida se destina, desde a sua gênese, a produção de uma prova, aí, sim, ela estaria vinculada à demonstração de justa causa para se legitimar.

Contudo, em se tratando de buscas pessoais na via pública, o respaldo legal se encontra no poder de polícia e, sobretudo, no princípio administrativo da supremacia dos interesses públicos. Ora, assim como o empresário deve suportar o ônus de uma fiscalização em seu comércio, o cidadão deve suportar uma abordagem pessoal ou veicular realizada pela polícia, prevalecendo, nos dois cenários, o interesse da coletividade.

No intuito de subsidiar as nossas conclusões, fazemos um paralelo com as normas de trânsito. Nos termos do artigo 22, do Código de Trânsito Brasileiro, compete aos órgãos de trânsito “cumprir e fazer cumprir” a legislação e as normas pertinentes, estabelecendo, em conjunto com a Polícia Militar, diretrizes para o “policiamento ostensivo de trânsito”. A lei determina, ademais, que as autoridades públicas executem a fiscalização do trânsito, aplicando as medidas cabíveis pelas infrações previstas no Código.

Por obviedade, todo esse regramento tem por finalidade promover a segurança viária, o que é feito, inclusive, por meio da previsão de infrações penais (artigo 302 e seguintes do CTB). Ao exigir a fiscalização do trânsito, a lei busca evitar acidentes, zelando, destarte, pelo interesse da coletividade.

Justamente por isso, nos parece absolutamente incabível questionar a legalidade das revistas veiculares realizadas pelas polícias, que, nessas circunstâncias, estão apenas cumprindo as determinações do CTB. A abordagem e a inspeção veicular têm previsão expressa no artigo 22, do Código e, ainda que não sejam medidas destinadas a verificação da prática de crimes, ocasionalmente podem servir para esta finalidade, hipótese em que ocorrerá o que a doutrina chama de “encontro fortuito de provas” (serendipidade).

Ora, se um veículo é abordado aleatoriamente pela polícia durante uma fiscalização de trânsito (reitera-se: autorizada pelo CTB), caso o policial realize uma inspeção veicular e se depare com armas de fogo, drogas ou outros ilícitos no seu interior, não poderá fechar os olhos para esta ilegalidade, aplicando-se ao caso a “teoria da visão ampla” (plain view doctrine). Ao discorrer sobre esta teoria, Guilherme Madeira Dezem nos ensina que “se no curso de diligência policial os policiais encontram item que esteja à vista aberta dos policiais, então poderão fazer a apreensão deste objeto” [3].

Como se pode notar, a doutrina da “visão ampla” pressupõe que haja uma ação policial válida (ex: fiscalização veicular no trânsito) e, no curso da diligência, seja encontrado um elemento de prova que esteja na sua vista (ex: drogas encontradas no interior do veículo).

Sob outra perspectiva, deve-se destacar que se o ordenamento jurídico autoriza a fiscalização do Estado com a finalidade de assegurar a segurança viária, prevenindo acidentes, com maior razão se justifica a ação policial para promover a segurança pública, coibindo a prática de infrações penais. Esse entendimento, aliás, vai ao encontro do postulado da proporcionalidade, pois, se a privacidade e liberdade individual podem ser mitigados para verificar eventual infração de trânsito, tais direitos também podem sofrer limitações com o objetivo de tutelar as normas penais, que, vale dizer, protegem os bens jurídicos constitucionais mais relevantes.

Em conclusão, lembramos, ainda, das “teorias dos campos abertos e das buscas particulares” (Open fields doctrine e Private searches doctrine), que, em nosso sentir, justificam as abordagens e buscas pessoais na via pública, seja como forme de repressão ou de prevenção ao crime. A teoria dos campos abertos, desenvolvida pela Suprema Corte americana (Hester vs. United States), preconiza que a busca e apreensão realizada fora da propriedade do suspeito na viola a privacidade assegurada pela 4ª Emenda dos Estados Unidos.

Já a teoria das buscas privadas sustenta que sempre que o particular puder realizar uma busca sem autorização judicial, o Estado também poderá realizá-la. De maneira ilustrativa, se é possível a busca pessoal privada em eventos esportivos (locais de acesso ao público), conforme autoriza a Lei Geral do Esporte, também deve ser admitida a busca pessoal realizada na via pública. Isto, pois, nas duas situações não existe expectativa de privacidade, como reiteradamente pontuado neste estudo.

Ao desenvolver a teoria das private searches, a Suprema Corte Americana elaborou um teste (Katz v. EUA) com o objetivo de verificar a expectativa de privacidade em um caso concreto, tanto do ponto de vista do indivíduo, como da sociedade. Assim, fala-se em “expectativa subjetiva de privacidade”, quando o cidadão entende que, em determinada situação, ele tem privacidade, e “expectativa objetiva de privacidade”, consistente no reconhecimento, por toda a sociedade, da existência de privacidade num dado contexto.

Avaliando as abordagens policiais na via pública sob as premissas da teoria das buscas particulares, devemos nos questionar o seguinte: 1) o indivíduo acredita gozar de privacidade nessa situação?; 2) a sociedade entende como legítima esta expectativa de privacidade?

Para responder estas indagações, nos valemos de um exemplo concreto. Se um cidadão carrega consigo pela via pública uma mochila contendo armas e drogas, ele acredita gozar de privacidade? Do mesmo modo, existe expectativa de privacidade no caso de um sujeito que transporta drogas ilícitas na caçamba de sua caminhonete? Ao que nos parece, nas duas situações nem o indivíduo acredita ter sua intimidade protegida e muito menos a sociedade entende como legítima qualquer expectativa nesse sentido.

Frente ao exposto, considerando os argumentos fáticos e jurídicos apresentados, só podemos concluir pela licitude das abordagens e buscas pessoais realizadas pela polícia na via pública, independentemente de qualquer suspeita objetiva. Em nosso entendimento, está havendo um excesso garantista por parte dos Tribunais Superiores na análise da matéria, o que, a toda evidência, compromete a segurança pública e serve de blindagem aos criminosos. Nesse diapasão, são absolutamente pertinentes as seguintes constatações:

Ao conceituar o direito garantista como uma técnica de defesa do mais fraco contra o mais forte, e estabelecer que o mais fraco, na relação processual, é o réu contra o todo-poderoso Estado, Ferrajoli toma franco partido do réu, abstraindo, na prática, o processo criminal do fato concreto que o desencadeou — assim deixando a defesa do “mais fraco” na relação fenomênica (a vítima do fato) abissalmente incomunicável com o direito. Daí a conclusão de muitos garantistas no sentido de que a segurança pública não é problema do juiz… Para o garantismo, portanto, só os bandidos têm direitos humanos a serem observados na relação processual. A vítima, desprotegida, perde no momento do fato e perde, de novo, no processo [4].

De fato, parece faltar uma pouco sensibilidade aos tribunais na análise dessa questão, pois, se de um lado, existem argumentos favoráveis a limitação das buscas, por outro, também encontramos fundamentos relevantes para justificar a ação policial. Nesse cenário, perguntamos: não seria o caso de focar na proteção da sociedade?!

Se existem abusos por parte de alguns policiais, tais condutas devem ser coibidas quando evidentes, sendo imprescindível uma constante qualificação do trabalho da polícia em âmbito institucional. O que não se pode fazer é “matar” a atividade policial sob o pretexto de corrigir os seus excessos, afinal, como diz o ditado, a diferença entre o remédio e o veneno está na dose.

Francisco Sannini é mestre em Direitos Difusos e Coletivos, pós-graduado com especialização em Direito Público, professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo, professor da pós-graduação em Segurança Pública do Curso Supremo, do Damásio Educacional e do QConcursos e delegado de polícia do estado de São Paulo.

Consultor Júridico

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