O assunto tributário mais discutido em Fortaleza tem sido a cobrança da “Taxa do Lixo”, nome comum para a Taxa de Serviço Público de Manejo e Resíduos Sólidos Urbanos (TMRSU), criada em dezembro pela Lei Municipal 11.323/2022.
Diversos contribuintes e o próprio Ministério Público do Estado do Ceará têm ingressado com ações judiciais para questionar a taxa, mas os assuntos controvertidos nas respectivas ações parecem deixar de enfrentar o tema principal que revela claramente a ilegalidade da cobrança.
O objetivo deste breve estudo é trazer novas informações ao debate e contribuir para que a solução final chegue o quanto antes.
Primeiro, é preciso afastar as obviedades! Isso porque se trata de um assunto antigo, totalmente resolvido pelo Supremo Tribunal Federal, de forma desfavorável ao contribuinte, inclusive com aprovação das súmulas vinculantes 19 e 29, razão pela qual não faz sentido algum continuar discutindo os mesmos argumentos que já se encontram pacificados e vencidos desde 2008.
O STF já encerrou esse velho debate, autorizando definitivamente os municípios a cobrarem taxas dessa natureza, declarando que é lícita a exigência pela utilização efetiva ou potencial do serviço público de coleta de lixo, estando confirmada sua constitucionalidade de acordo com o artigo 145, II, da Constituição (conforme Súmula 19).
Da mesma forma, autorizou-os a adotarem o tamanho do imóvel como parte do critério para calcular o valor da taxa, como ocorre em Fortaleza, sob o entendimento de que não há identidade total da base de cálculo do IPTU, que leva em consideração o valor venal do imóvel (conforme súmula 29). Em outras palavras: a fórmula utilizada na atual cobrança não estaria errada.
Assuntos velhos; não têm o potencial de mover moinhos! Mas há muitos fatores não considerados no debate até agora, abaixo indicados.
1. Primeiro fator de ilegalidade
O cálculo do valor de todas as taxas de serviços deve levar em consideração unicamente o valor do serviço proposto. No caso de Fortaleza, a citada lei informa que a base de cálculo da Taxa do Lixo “é o custo anual necessário para a adequada e eficiente prestação do serviço público de manejo de resíduos sólidos urbanos” (artigo 9º), considerando-se o custo anual com coleta, transbordo, transporte, triagem, tratamento e disposição final ambientalmente adequada dos mesmos (§ 1º).
Significa, portanto, que somente o valor anual de serviços — e somente deles — deve compor a Taxa do Lixo. Bastaria que a estimativa de gasto da Prefeitura de Fortaleza para essas atividades — considerando o orçamento e o valor dos contratos firmados com a concessionária do serviço — fosse cobrado proporcionalmente dos contribuintes que as utilizam, efetiva ou potencialmente.
Mas não é o que acontece na prática. Está muito longe de ser!
Consta do anexo único da citada lei a informação do custo anual com o serviço em questão, assim indicado:
O custo anual para a execução adequada dos serviços de manejo de resíduos sólidos no município de Fortaleza é R$ 350.134.471,69/ano.
Conforme expressamente previsto, o valor seria de, aproximadamente, R$ 350 milhões, mas essa informação não tem qualquer fundamento de validade, pois indica apenas o número, sem o justificar. Não informa o valor dos contratos envolvidos; não indica os critérios efetivos para chegar nesse totalizador, não atende a qualquer exigência de transparência e não comporta a adequada composição da base de cálculo da taxa.
Pior que isso: é um número irreal! Não precisa ir muito longe para comprovar esse fato.
Vê-se de informação pública disponibilizada no site da Prefeitura de Fortaleza cópia do contrato firmado com o Consórcio que obteve a concessão dos referidos serviços [1]. Nele, o montante anual contratado é de R$ 143.856.667,92, que representa menos da metade do valor indicado na lei, que não informa o critério para chegar ao número final.
Assim, a base de cálculo é irreal, não condiz com o valor anual necessário para custear os serviços de coleta de lixo, revelando-se a tentativa do Município em obter receitas sem nenhum fundamento de legalidade.
2. Segundo fator de ilegalidade
Há outro grave equívoco: o referido contrato não trata apenas do serviço de coleta de lixo em residências e empresas, pelo contrário, inclui também diversos outros serviços alheios, como “capinação e raspagem com pintura de meio fio, varrição e limpeza de canais, riachos, bocas de lobo e terrenos baldios”.
É dizer: o valor contratado anualmente não é apenas para coleta de resíduos, mas engloba diversos outros. Não é dado ao ente tributante pretender incluir na taxa do lixo, exigida individualmente do cidadão que gera a demanda desse serviço público, outros valores relacionados a serviços diversos.
Vê-se no contrato expressamente os serviços propostos, totalmente alheios à coleta de lixo. São eles: serviço de capinação em asfalto / calçamento / terra, varrição de vias públicas / costeiras / orla marítima, pintura de meio fio, roço em áreas abertas com ceifadeira, serviços extraordinários, limpeza e desobstrução de bocas de lobo, limpeza manual de recursos hídricos / riachos / lagoas, limpeza com retroescavadeira de pneus e escavadeira de esteira, remoção de animais mortos e toros vegetais, remoção em áreas de difícil acesso.
Tais serviços não guardam pertinência alguma com a taxa do lixo cobrada dos cidadãos, pois não têm equivalência com a demanda que eles submetem individualmente ao poder público. Nos citados exemplos (todos indicados no contrato com o município de Fortaleza), trata-se de serviços prestados em caráter “uti universi” a toda a coletividade, sem atender ao quesito da divisibilidade ínsito às taxas. O contrato cita muitos outros: coleta e transporte de lixo oriundo de limpeza de praias, vias públicas, calçadões, riachos e lagoas, etc.
Nessas hipóteses, onde a taxa pretende alcançar tanto as situações individuais (dos contribuintes donos de residências, empresas ou terrenos) quanto situações gerais (relativo a limpeza de áreas públicas), o STF definiu a matéria ao firmar o Tema 146, com repercussão geral — portanto, devendo ser replicado a todos os processos e vinculando a administração pública —, julgando o RE 576.321 e definindo a seguinte tese:
“I – A taxa cobrada exclusivamente em razão dos serviços públicos de coleta, remoção e tratamento ou destinação de lixo ou resíduos provenientes de imóveis não viola o artigo 145, II, da Constituição Federal;
II – A taxa cobrada em razão dos serviços de conservação e limpeza de logradouros e bens públicos ofende o art. 145, II, da Constituição Federal;
III – É constitucional a adoção, no cálculo do valor de taxa, de um ou mais elementos da base de cálculo própria de determinado imposto, desde que não haja integral identidade entre uma base e outra.”
A taxa do lixo de Fortaleza não é cobrada exclusivamente para serviços de coleta, remoção e tratamento ou destinação de lixo ou resíduos provenientes de imóveis, portanto, claramente ofende ao julgado acima mencionado no item I. Em relação ao custeio dos serviços contratados para limpeza e conservação de logradouros e bens públicos — fato esse comprovado no contrato firmado com a concessionária —, também não está autorizada pelo item II. Assim, evidentemente inconstitucional!
Aliás, note-se que a lei inclui no final mais um fator de ilegalidade nesse quesito. O imaginário (e não comprovado) valor de base de cálculo anual de R$ 350 milhões leva em consideração, ainda, supostas despesas “com a remuneração da entidade reguladora”, no caso, a Autarquia de Regulação, Fiscalização e Controle dos Serviços Públicos de Saneamento Ambiental de Fortaleza (Acfor), que recebeu tal competência por força da Lei Municipal 11.202, de 13 de dezembro de 2021:
“Art. 1º. Fica a Autarquia de Regulação, Fiscalização e Controle dos Serviços Públicos de Saneamento Ambiental de Fortaleza (Acfor), instituída pela Lei n.º 8.869, de 19 de julho de 2004, com alterações posteriores, redenominada para Agência de Regulação, Fiscalização e Controle dos Serviços Públicos de Saneamento Ambiental de Fortaleza (Acfor), permanecendo com personalidade de direito público interno, na forma jurídica de autarquia, com regime de natureza especial e competência de regulação, fiscalização e controle dos serviços públicos delegados de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos urbanos no Município de Fortaleza.”
A taxa cobrada para remunerar serviço público deve estar afetada ao valor do serviço efetivamente prestado, não pode ser desvirtuada para custeio de atividades regulatórias. Não é possível pretender que a remuneração que o município de Fortaleza paga à agência reguladora possa compor a base de cálculo da taxa, como expressamente determinou a lei que a instituiu [2].
Na prática, a lei que criou a taxa de lixo em Fortaleza inseriu em sua base de cálculo diversos penduricalhos não autorizados pela Constituição, afastando-se do caráter sinalagmático típico dessa espécie tributária, que decorre do fato de ela “é paga porque alguém causou uma despesa estatal. A ideia é que, se um gasto estatal refere-se a um contribuinte, não há razão para exigir que toda coletividade o suporte. Daí a racionalidade da taxa estar na equivalência”, conforme ensina Luís Eduardo Schoueri [3].
Importa trazer, ainda, as lições do mesmo autor sobre o conceito de equivalência para fins de cobrança de taxas:
“Na equivalência, o contribuinte é considerado responsável por determinado gasto estatal, devendo responder pelo que gerou. Daí surge uma primeira possibilidade de se apurar o quantum devido a título de taxa: deve ser limitada ao valor necessário para cobrir os custos causados.
…
A ideia de equivalência se reforça quando se examina o mandamento contido no mesmos § 2º do art. 145 da Constituição Federal: ‘as taxas não podem ter base de cálculo própria de impostos’.
…
Então, o que serve de base de cálculo para a taxa? Pelo mandamento constitucional, já se tem uma primeira resposta, ainda que pela negativa: não serve de base de cálculo das taxas uma grandeza que busque a capacidade contributiva. Por outro lado, se a justificativa das taxas está em não forçar toda a coletividade a suportar um gasto que pode ser imputado a um contribuinte individualizado, é claro que se tem aí uma indicação da base de cálculo possível: será aquela suficiente para medir, ainda que com certo grau de aproximação, o valor da atividade que o referido contribuinte exigiu do Estado” [4].
Vê-se que o município de Fortaleza inseriu na base de cálculo da taxa do lixo diversos custos que são totalmente alheios ao que, de fato, é demandado pelos usuários da coleta do lixo. Os mesmos estão sendo exigidos a custear despesas que não deram causa individualmente, como a limpeza de logradouros públicos, ou mesmo remunerar e manter a entidade reguladora (Acfor). Não há equivalência entre a base de cálculo indicada na lei, que representa o somatório de vários serviços e custos diferentes do serviço de coleta de lixo, portanto, representa verdadeira base de cálculo dos impostos, estes sim, suscetíveis à cobrança que considere a capacidade contributiva pessoal do sujeito passivo, sendo inconstitucional a medida por força do § 2º do artigo 145 da Constituição.
Considerando que a taxa do lixo de Fortaleza, comprovadamente, objetiva remunerar outros serviços, muito além daquele a que se vinculam seus destinatários (os usuários da coleta de lixo), não há fundamento constitucional que autorize sua cobrança, podendo ser combatido judicialmente.
Aplica-se, no caso, a repercussão geral do Tema 146 do STF.
3. Rápida conclusão
As matérias ora informadas são de ordem pública, pois tratam de inconstitucionalidade da Lei Municipal 11.323/2022, podendo estruturar conceitos adicionais em torno do debate que já se vê instaurado por alguns contribuintes de forma incipiente, assim como pelo MP, em ADI protocolada junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, conforme noticia a imprensa.
Não parece fazer sentido algum que a referida norma continue produzindo efeitos, portanto, é possível que eventual decisão liminar que suspenda a exigibilidade do tributo afaste a enorme insegurança jurídica até aqui demonstrada na população.
Onde a Justiça silencia, nasce a litigiosidade. Onde faltar freios à cobrança ilegal, surgirá o enriquecimento sem causa, o indébito, o prejuízo desnecessário.
Que o bom senso prevaleça. Sempre é tempo.
Fredy José Gomes de Albuquerque é conselheiro titular do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), mestrando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza e membro honorário da Academia Cearense de Letras Jurídicas.