Gabriel Carnaval: Desafios do direito autoral no metaverso

Com o surgimento do metaverso, um universo virtual interativo e imersivo, diversas questões relacionadas à propriedade intelectual têm sido levantadas, em especial no que se refere à proteção dos direitos autorais.

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Nesse contexto, em especial diante do crescente interesse das empresas de tecnologia em desenvolver e explorar essa nova dimensão virtual, é necessário antecipar possíveis problemas relacionados aos direitos autorais dentro de ambientes de metaversos, para pensarmos em soluções e garantias dos titulares da propriedade intelectual nesse novo ambiente virtual.

Overview da legislação de direito autoral

A legislação de direitos autorais lida com pelo menos dois interesses conflitantes. Por um lado, ela concede aos autores um monopólio limitado sobre suas obras, permitindo que eles recebam remuneração pelo seu trabalho. Por outro lado, a legislação de direitos autorais também busca garantir que o público tenha acesso a essas obras e possa se beneficiar do conteúdo e das ideias nelas contidas [1]. No entanto, equilibrar esses dois interesses pode ser uma tarefa desafiadora.

A ideia de balancear o direito autoral está previsto em nossa Constituição [2], inspirado na Carta Magna dos Estados Unidos, de trazer aos autores a capacidade de oferecer ou não ao público o acesso de sua obra ou até mesmo à terceiros, mediante condições preestabelecidas, como a cessão e licenciamento de direitos por exemplo.

Inicialmente, os direitos autorais vieram como um acordo entre a Coroa Inglesa e corporações de jornais, para beneficiar as gráficas pelo legítimo monopólio do direito da cópia (copyright[3]. Desde então, a lei de direitos autorais é frequentemente alterada para acomodar tecnologias inovadoras, que não podem ser regulamentadas pelo quadro de direitos autorais anterior [4].

Fato é que a internet desafiou a lei de direitos autorais. O conceito de direitos autorais, seguindo o significado direto desse termo, quer dizer o “direito de copiar”. Simplesmente, significam o controle da cópia e reprodução de uma obra. No entanto, a internet funciona principalmente por meio da criação de cópias. Em sua essência, a internet é uma gigantesca máquina de cópia. O metaverso pode se ampliar nesse modus operandi da sociedade digital caso não sejam criadas novas formas de regulamentação específicas para esse ambiente.

Uso de conteúdos licenciados e protegidos no metaverso

Um dos pontos que será debatido no futuro, será o desafio relacionado ao uso de conteúdo protegido por direitos autorais previamente licenciado no metaverso. Alguns contratos de licença de direitos autorais foram assinados décadas antes do metaverso ser uma ideia no imaginário popular. Ou seja, muitos desses contratos de transferência não previam o uso explícito do conteúdo dentro de ambientes virtuais de realidade aumentada. Será que esses contratos poderão permitir o uso de obras protegidas por direitos autorais no metaverso?

Usamos como um exemplo o caso de uma disputa judicial entre o diretor Quentin Tarantino e o estúdio Miramax, sobre a NFT do roteiro original escrito à mão para o filme Pulp Fiction [5]. Ambas as partes tinham um contrato preestabelecido, onde Tarantino era o detentor legítimo de certos direitos do roteiro; no entanto, a grande questão é se esses direitos reservados cobririam NFTs.

A legislação brasileira não proíbe a transferência de direitos sobre usos de obras, além disso, dentro da matéria de Direito Civil, o contrato de licença tem por objeto a cessão de direitos protegidos por registro, destinados à exploração comercial, geralmente por um tempo definido, delimitado no contrato [6].

Entretanto, a legislação brasileira atual poderia vir a restringir uma interpretação ampla dos contratos de transferência de direitos autorais, estabelecendo a transferência só para as modalidades já existentes à data do contrato [7].

Seguindo essas regras, os autores podem reter os direitos de uso de suas obras no metaverso, desde que os acordos de transferência de direitos autorais tenham sido assinados antes da criação do metaverso. No entanto, pode ser um problema determinar quando o metaverso foi realmente criado. Essas questões devem ser respondidas pelos tribunais de cada país em cada caso.

Por esse motivo, os próximos contratos de direitos autorais deverão conter cláusulas claras e explícitas sobre qual das partes detém os direitos do conteúdo para uso no metaverso. Uma redação ampla desses contratos pode ser necessária para cobrir todos os possíveis usos de obras protegidas por direitos autorais em plataformas virtuais que se enquadrem nas definições existentes ou futuras do metaverso.

Direitos autorais de software de metaverso

A questão dos softwares será uma das maiores complexidades a serem resolvidas dentro do metaverso. Um exemplo prático é quando a empresa Nvidia abriu acesso ao Omniverse, sua plataforma de software de construção de metaverse em 3D em tempo real para criadores e artistas. Segundo a Nvidia, o Omniverse foi baixado mais de 100 mil vezes até janeiro de 2022 [8].

A nossa Lei de Propriedade Industrial (LPI, Lei Nº 9279/96), prevê que não poderão ser patenteadas as ideias puramente abstratas e os programas de computador em si. No entanto, há a possibilidade de proteção de processos relacionados a invenções que são implementadas por programas de computador. Ou seja, é necessária uma visão ampla para a interoperabilidade de sistemas e processos de softwares quando estamos falando de proteção de programas de computador no contexto do metaverso.

De maneira geral, existem dois tipos de software: o de código fechado e o de código aberto [9]. O primeiro é normalmente proprietário, como o iOS da Apple, e não permite que os usuários o modifiquem ou estudem seu código-fonte. Já o software de código aberto é aberto para qualquer pessoa o estudar e desenvolvê-lo, como é o caso do software do Android.

A interoperabilidade é fundamental em muitos setores, mas no caso do Metaverso pode ter uma importância ainda maior, já que provavelmente será construído a partir de software criado por diferentes desenvolvedores. Além disso, algumas plataformas podem ser proprietárias, com software de código fechado, enquanto outras podem ser baseadas em código aberto. O sucesso do metaverso pode depender de qual dessas abordagens irá prevalecer [10].

Para alcançar a interoperabilidade entre diferentes plataformas do metaverso, pode ser necessário realizar engenharia reversa de software [11]. Felizmente, as leis de direitos autorais em muitas jurisdições permitem essa prática para atingir a interoperabilidade. É importante que os desenvolvedores levem em conta a interoperabilidade ao criar plataformas para o metaverso e utilizem essas leis para garantir que diferentes plataformas possam funcionar em conjunto.

No final das contas, a interoperabilidade é crucial para garantir que o metaverso alcance todo o seu potencial. Ao permitir que diferentes plataformas se conectam e interagem entre si, podemos criar um metaverso verdadeiramente unificado e expansivo.

Inteligência artificial no metaverso

A inteligência artificial (IA) pode se tornar um pilar fundamental do metaverso. Milhões de usuários experimentarão o metaverso em tempo real e ele será atualizado a cada segundo, produzindo um enorme volume de informações (big data). A IA será necessária para o processamento dessas informações e garantir o bom funcionamento do metaverso [12]. Além disso, a IA pode projetar nos avatares dos usuários movimentos, expressões faciais, emoções, linguagem corporal e fala do mundo real [13].

A IA também pode ser usada para sincronizar a fala dos usuários com os movimentos dos lábios dos avatares. Além disso, a IA pode traduzir simultaneamente a fala dos usuários do metaverso e facilitar o acesso a partir de diferentes países. Uma possível aplicação da IA pode ser a identificação de comportamentos ilegais dos usuários.

A IA provavelmente desempenha um papel crucial na difusa linha entre o mundo real e o virtual metaverso. Os desenvolvedores podem usar a IA para induzir os usuários a permanecerem e experimentarem o metaverso por longos períodos de tempo.

Indo além disso, a IA também pode ser usada para coletar dados sobre o comportamento, preferências, interesses, curtidas e descurtidas de bilhões de usuários do metaverso. Tais dados podem ser analisados para diferentes fins, e serão valiosos para anunciantes, empregadores, governos e outras partes interessadas. No futuro, os desenvolvedores do metaverso podem obter grandes lucros com esses dados.

Atualmente, obras criadas e geradas por inteligência artificial não são protegidas por nenhuma legislação, tanto em nível nacional (Lei nº 9.610/98) quanto internacional. De acordo com a visão predominante, apenas os humanos precisam de proteção de direitos autorais como um incentivo para a criatividade, não as máquinas ou a inteligência artificial [14]. No entanto, existem argumentos de que a proteção de direitos autorais pode fornecer incentivos para um criador de IA que gera obras criativas.

A fronteira ainda não definida das infinitas possibilidades do uso da IA no metaverso impõem um desafio para a agenda regulatória mundial dos “agentes artificialmente inteligentes”. No entanto, a utilização de IA dentro do metaverso deverá obedecer aos requisitos e princípios elencados em regulações ao redor do mundo, como o da não-discriminação, responsabilidade, confiabilidade e segurança, privacidade e proteção de dados pessoais [15].


[1] Marshall A. Leaffer. Understanding copyright law. Sétima edição. Editora Durham, North Carolina: Carolina Academic Press, (2019).

[2] Artigo 5º, inciso XXVII e XXXVII da Constituição Federal de 1988

[3] Vieira, Alexandre Pires. Direito Autoral na Sociedade Digital. São Paulo, Montecristo Editora (2011).

[4]Litman, Jessica D. Digital Copyright. 2nd ed. Amherst, N.Y.: Prometheus Books, 2006.

[6] ABRÃO, Eliane Y. “Direitos de Autor e Direitos Conexos”, São Paulo, Ed. do Brasil, 1ª.ed., 2002.             

[7] Tal possibilidade é clara e está expressa nos artigos 49 e seguintes da Lei 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais).

[9] Marshall A. Leaffer. Understanding copyright law. Sétima edição. Editora Durham, North Carolina: Carolina Academic Press, (2019).

[11] Lemley, Mark A. and Shafir, Ziv (2011) “Who Chooses Open-Source Software?,” University of Chicago Law Review: Vol. 78. (2011).

[12] KERIKMÄE, Tanel et al. Legal person-or agenthood of artificial intelligence technologies. Acta Baltica Historiae et Philosophiae Scientiarum, v. 8, nº 2, p. 54-74, 2020.

[14] Shlomit Yanisky-Ravid, Generating Rembrandt: Artificial Intelligence, Copyright, and Accountability in the 3A Era: The Human-like Authors Are Already Here: A New Model, 2017 MICH.

Consultor Júridico

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