Um dos paradoxos do século 21 parece ser a afirmação de que ninguém é dono da verdade, conjugada com a tentativa de se impor a toda a sociedade uma nova visão do ser humano: assexuado, amoral, ateu e estatizado. Nessa visão, a constituição biológica do ser humano conta menos que seus “achismos”; o certo e o errado são definidos segundo o interesse próprio; a espiritualidade fica relegada à categoria de “ignorância”; e a dependência do Estado é celebrada e perpetuada.
O patrulhamento ideológico da ditadura do politicamente correto convive com a afirmação do respeito às liberdades em estados que se dizem democráticos de direito. Com a desculpa de defender o “direito das minorias”, a elite privilegiada impõe sua vontade contra a vontade da maioria dos cidadãos, inclusive contra o interesse de muitos dos que seriam considerados como parte dessas “minorias”, assumindo um paternalismo estatal omnisciente.
A defesa do direito das minorias se transforma na imposição da vontade da minoria sobre a maioria, respaldada na assertiva de que “tudo é relativo”, o que não deixa de ser uma afirmação absoluta, a contradizer o que se pretende. Nesse diapasão, se ninguém é dono da verdade, como se pode querer impor uma visão de mundo à sociedade? E o fato de ninguém ser dono da verdade equivaleria a inexistir uma verdade a ser conhecida? Assim, é muito atual a pergunta feita por Pilatos a Jesus Cristo há 21 séculos: afinal de contas, “que é a verdade?” (Jo 18, 38).
São Tomás de Aquino (1221-1274), na esteira conceitual de Aristóteles (384-322 a.C.), definia verdade como a adequação da mente à realidade: ‘‘veritas est adaequatio rei et intellectus” (De Veritate). Ou seja, toda a tradição clássica e medieval seguia no sentido de que a verdade seria a captação das coisas pela inteligência, formando uma ideia que correspondesse à realidade dos objetos conhecidos.
Seria um humilde reconhecimento de que o conhecimento depende da realidade e não é invenção humana. Nesse sentido, esclarecedora se mostra a afirmação do Estagirita (também referida pelo Aquinate em seu escrito) de que ”o falso e o verdadeiro não estão nas coisas, mas na mente” (metafísica).
Portanto, se a mente forma uma ideia distorcida da realidade, temos uma ideia falsa, que sequer pode ser chamada de conhecimento, pois não servirá para operar adequadamente com o mundo em que se vive. E o conhecimento da realidade é fundamental para se operar bem segundo a natureza.
Toda filosofia especulativa acaba desembocando na filosofia prática: metafísica, gnoseologia, lógica, cosmologia, antropologia e estética são os fundamentos cognoscitivos da realidade que servem de substrato para a captação e compreensão da ética como ciência do agir moral do homem.
Assim, da mesma forma que a ”verdade” é objetiva, no sentido de ser uma captação adequada da realidade, a busca do ”bem” como finalidade do agir humano, tem em vista a existência de uma ordem moral objetiva, captável pela razão, como o agir correspondente à natureza humana e que a aperfeiçoa.
Aqui também a tradição clássica e medieval, estampada no aforismo de que ”o agir segue o ser” (”agere sequitur esse”), aponta para a necessidade de se observar e respeitar a natureza, sob pena de se estabelecer um ordenamento jurídico injusto, que desumaniza e envilece as pessoas, votando-as a uma infelicidade e insatisfação aparentemente inexplicáveis, uma vez que fazem o que desejam, sem restrições.
A ideia de ”felicidade” é a chave de toda a ética aristotélica. É uma ética fundamentalmente eudemonológica (do grego “eudaimonia”, felicidade), ou seja, que trata da busca da felicidade e onde encontra-la. O Livro I da Ética a Nicômaco é dedicada a ela, como a meta de todas as ações humanas, ainda que divirjam as opiniões quanto a como encontrá-la: o vulgo, no prazer; o nobre, na honra; o prudente, na sabedoria; muitos, na riqueza ou no poder. Mas para Aristóteles, apenas o comportamento de acordo com a natureza pode trazer a felicidade.
Assim, um comportamento é bom quando está pautado pela natureza e, em decorrência disso, é capaz de trazer a felicidade à pessoa, considerada como o sentimento de plenitude pela posse do bem que a completa e a aperfeiçoa em suas faculdades superiores, consistente nas virtudes intelectuais e morais (os demais livros da Ética a Nicômaco são dedicados a elas). Essa visão clássica da ética prevaleceu inconteste até a Baixa Idade Média.
As raízes mais antigas do moderno relativismo moral encontram-se justamente na Escolástica decadente dessa época, com o nominalismo de Guilherme de Ockham (1280-1349). Em sua Opera Philosophica et Theologica (que reúne todos os seus escritos), defende que os conceitos universais são apenas nomes para designarem coisas semelhantes, pois só existiriam coisas individuais.
Assim, nega a existência de uma natureza comum a seres designados pela mesma essência. Considera, outrossim, que a natureza humana seria um caos de instintos egoístas que buscam apenas o prazer, razão pela qual a ética não poderia ser fundada na natureza. Com isso, passa a fundar a ética no absoluto arbítrio divino: as coisas não são proibidas por serem más, mas são más por Deus arbitrariamente não as querer.
Desse modo, o equívoco nominalista na gnoseologia se desborda para a ética, olvidando-se do fato de que, se não há uma natureza comum a seres essencialmente iguais, a legislação será fruto do arbítrio, divino ou humano, tornando desiguais os homens e injusto o ordenamento jurídico. Mas esse é somente o começo do desmonte da ética clássica.
O moderno relativismo moral deita suas raízes fundamentalmente em dois pilares da Idade Moderna, no seu começo e no seu final. O primeiro deles é o racionalismo de René Descartes (1596-1650); o segundo, o idealismo de Emanuel Kant (1724-1804). Em seu Discurso do Método, Descartes promove uma reviravolta quanto ao que seria o motor da filosofia.
Enquanto Aristóteles colocava o início da filosofia na ”admiração”, que leva a querer encontrar a explicação sobre as maravilhas da natureza, Descartes propunha a ”dúvida” metódica como o impulso para o avanço na filosofia. E assim, duvidando de tudo, chegava à conclusão de que só não podia duvidar de que estava duvidando.
Com isso, chegava à conhecida expressão: ”cogito ergo sum” (”penso, logo existo”). O conhecimento já não guarda relação com o mundo exterior, mas passa a ser auto referencial. Aquilo que Descartes chama de ”ideias claras e distintas”, a que procurará chegar com o seu método, são aquelas extraídas do seu próprio pensar lógico a partir do autoconhecimento. Tal imanentismo filosófico chegará ao seu ápice com o mestre de Königsberg.
Com efeito, como ele mesmo dirá de si mesmo, Kant provocou uma verdadeira revolução copernicana na filosofia, ao inverter a proposição aristotélica sobre a verdade fundada na realidade das coisas, assentando em sua Crítica da Razão Pura: “Até agora se admitia que todo nosso conhecimento se devia regular pelos objetos (…) Não seríamos mais afortunados nos problemas de metafísica formulando a hipótese de que os objetos devem se regular pelo nosso conhecimento?” (1781).
O giro é de 180 graus. O realismo aristotélico é substituído pelo idealismo kantiano. A objetividade pelo subjetivismo. E a repercussão no campo ético não poderia ser mais impactante. Assim, na Crítica da Razão Prática, Kant explica que aquilo que não podemos conhecer pela razão pura, que seria a realidade das coisas, pois só captaríamos suas aparências, teríamos de admitir como premissas da razão prática. Ou seja, Deus, a alma e o mundo.
Daí que sua ética seja, na linha no nominalismo ockamiano, uma ética arbitrária, imposta por Deus ou pela autoridade do Estado, à qual devemos observância, pelo que denomina de “imperativo categórico”. É o dever pelo dever, sem a devida fundamentação metafísica.
Essas são as raízes do moderno relativismo moral. A ética das virtudes, proposta por Aristóteles, é substituída pela ética dos deveres, de Kant. A liberdade de qualidade, explanada por Aristóteles, definida como autodeterminação para o bem, é substituída pela liberdade de indiferença, de simples escolha entre o bem e o mal, onde os conceitos de bem e mal são relativos, já que seria impossível conhecer a essência das coisas e muito menos valorá-las adequadamente.
Os frutos são as correntes contemporâneas de pensamento, que vão justificar o comportamento de estados e indivíduos, corporações e “mass media“, e as consequências na vida das pessoas e dos grupos sociais em termos de desorientação, dependência, insegurança e infelicidade. Isto porque, não havendo uma verdade a conhecer e um bem a se buscar, mas apenas opiniões as mais díspares possíveis e paradigmas comportamentais os mais extravagantes imagináveis, a pessoa já não distingue o certo do errado, deixando-se levar pelo que lhe é martelado como o melhor, pelo Estado ou pelos meios de comunicação social. Essa é a verdadeira alienação do indivíduo, quando, por medo ou comodismo, renuncia a perquirir sobre como deve agir em consciência, para seguir os modismos de plantão.
As correntes contemporâneas de pensamento que se nutriram do idealismo kantiano são o socialismo de Karl Marx (1818-1883), o positivismo jurídico de Hans Kelsen (1881-1973) e o neoconstitucionalismo em voga, de heterogênea origem, sem que se possa creditar a algum dos modernos jusfilósofos sua paternidade intelectual, ainda que hodiernamente seja corrente dominante no pensamento jurídico.
O marxismo, hoje também dominante no mundo em sua versão cultural, parte justamente do descarte da filosofia especulativa, para se ficar apenas com a filosofia prática: “até hoje os filósofos se limitaram a interpretar o mundo; agora trata-se de transformá-lo” (Teses sobre Feuerbach).
Não interessa conhecer a realidade; importa transformá-la segundo a visão marxista de mundo: ateia (“a religião é o ópio do povo”), conflitiva (“a luta de classes é o motor da história”) e reducionista (tudo é determinado pela infraestrutura econômica e o que se paga ao capital é a “mais valia” que se tira do trabalhador, conforme exposto em O Capital).
Os frutos da implementação política desse ideário são bem conhecidos por aqueles que viveram ou vivem sob as ditaduras soviética, cubana, venezuelana, nicaraguense ou chinesa, todas autodenominadas democráticas.
Mas as ditaduras de direita não diferem das de esquerda, ao levarem à construção de estados totalitários. O positivismo de Kelsen foi esgrimido pelos juízes alemães do regime nazista no julgamento de Nuremberg, para justificar as decisões em que condenaram milhares de judeus aos campos de concentração, dizendo que apenas cumpriram as leis de seu país, votadas pelo Reichstag eleito pelo povo, sem se perquirir sobre a justiça das mesmas ou seu desalinho patente com o direito natural.
Esse paradigmático julgamento é o melhor exemplo de como o direito positivo, em descompasso com o direito natural, pode gerar as maiores barbaridades, no sentido mais próprio da palavra. Quando Kelsen desenvolvia a sua Teoria Pura do Direito — preocupado apenas com a coerência interna do sistema jurídico, em que o princípio democrático de prevalência da vontade da maioria —, talvez não imaginasse as consequências mais remotas de fazer todo o ordenamento jurídico estar centrado na vontade da maioria.
O cerne do problema é esquecer que há direitos que decorrem diretamente da natureza humana (vida, liberdade, igualdade, propriedade) e outros do denominado ”contrato social”, de livre disposição da sociedade, num sentido ou noutro, e que são a maioria dos direitos e leis numa sociedade.
Esses direitos naturais mínimos são aqueles que constam das declarações universais dos direitos humanos, como as de 1789, da Revolução Francesa, e de 1948, da ONU. A mais antiga dessas declarações é o Decálogo, promulgado por Moisés (c. 1300 a.C.) no Monte Sinai sob revelação divina, com preceitos que buscam otimizar o convívio social (não matar, não cometer adultério, não roubar, não mentir, etc).
São justamente declarações de direitos inerentes ao homem, e não criados ou negados pela vontade majoritária de um parlamento. O princípio democrático, levado às suas últimas consequências, torna o indivíduo refém da vontade estatal, às vezes sequer majoritária, em regimes em que, como se diz, ”o papel aceita tudo”, fazendo do bandido, vítima; do malandro, herói; do vício, virtude; e da liberdade, opressão.
O moderno neoconstitucionalismo consegue ir ainda além do positivismo jurídico em termos de insegurança jurídica. Se, por um lado, o positivismo jurídico não leva em conta o direito natural, fazendo do princípio democrático a instância última de reconhecimento de direitos à pessoa humana, ao menos erige uma ordem jurídica fundada na Constituição, da qual extraem sua força normativa todas as demais normas legais e regulamentares de um país.
Já o neoconstitucionalismo, ao respaldar a tese de que a Constituição deve ser interpretada não à luz da vontade do constituinte, mas da visão do juiz, intérprete da Constituição, acaba por atropelar tanto o direito natural quanto o direito positivo. Esse é o mais genuíno ato antidemocrático: substituir a vontade dos representantes eleitos do povo pela vontade de técnicos sem representatividade popular.
A isso também se chama de “ativismo judiciário” ou “voluntarismo jurídico”, em que o juiz busca um protagonismo maior na conformação do ordenamento jurídico da sociedade politicamente organizada.
Os frutos amargos desse ativismo judiciário são a insegurança jurídica e a desestruturação da sociedade em seus valores fundantes. Com efeito, quando Kelsen admitia uma norma hipotética fundamental a embasar a Constituição de um país, admitia implicitamente a existência de um direito natural não escrito, captável através da razão e da observação da natureza humana, e explicitado nas sucessivas declarações dos direitos humanos fundamentais, tal como exposto e sustentado por eminentes jusnaturalistas como René Cassin (1887-1976), que elaborou o texto da declaração universal dos direitos humanos das Nações Unidas, Johannes Messner (1891-1984), Michel Villey (1914-1988), Javier Hervada (1934-2020) e John Finnis (1940).
Ademais, a própria ideia de Constituição está embasada em duas finalidades essenciais: explicitar os direitos & garantias individuais e estruturar a organização do Estado. Assim, o que se busca numa Constituição é a preservação, no tempo, dos valores, ideais e princípios elegidos pela sociedade politicamente organizada, através de seus representantes eleitos. E é exatamente isso que é negado pelo ativismo judiciário, calcado no neoconstitucionalismo.
Com efeito, diante das mudanças sociais, os juízes se veem como verdadeiros avatares, arautos de novos tempos, invadindo a esfera própria do legislador e sequer levando em consideração os ditames da natureza. Sob a alegação de assegurar às minorias direitos antes não previstos, aventuram-se a legislar, disputando qual será mais avançado e arrojado no deferimento das pretensões mais exóticas.
Campo reconhecidamente fértil desse moderno ativismo judiciário é o da ideologia de gênero. Em nome da defesa da diversidade em face de preconceitos de qualquer espécie, tem-se criado tipo penal por decisão judicial, modificado o conceito natural de matrimônio & família sem respaldo constitucional, cerceado a liberdade de expressão em nome da democracia, e ampliado as hipóteses de aborto, relativizando o direito mais fundamental do ser humano, e base de todos os demais, que é a vida.
O que chama mais a atenção nesse relativismo moral, fundado no idealismo subjetivista e positivado pelo ativismo neoconstitucionalista, é que a defesa de uma sociedade sem preconceitos, à semelhança do Tratado sobre a Tolerância, de Voltaire (1694-1778), segue na mesma linha do iluminista francês: deve-se tolerar tudo e todos, menos quem defender que existe uma verdade a ser conhecida, mesmo que quem defenda o realismo respeite quem pense de forma diversa.
Ressoa com muita atualidade o “écraisez l’infâme” (“esmagai a infame”) voltariano, dirigido à época à Igreja Católica, e hoje, no dizer de Thomas Woods (1972), representando o último preconceito aceitável no Ocidente, que é aos valores e crenças cristãs (Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental — 2005).
Num mundo em que se defende qualquer ideia ou valor, por mais afastado que esteja da realidade natural — como dizer que sexo é uma categoria sociológica e não biológica, sendo de livre escolha do indivíduo; ou que a vida humana só existe após o nascimento —, mostra-se extremamente antidemocrático dizer que quem pensa diferente não pode ter voz para dar as razões de sua convicção.
O relativismo moral passa a ser dogma de fé, em que todos podem defender o que quiserem, menos contestar esse relativismo em nome de uma verdade, seja científica ou religiosa. Padres e pastores passam a ser proibidos de simplesmente ler passagens da Bíblia como a Epístola de S. Paulo aos Romanos, quando trata como pecado contra a natureza a pederastia (Rom 1, 26-28). Se a Bíblia é a expressão de uma fé, quem não a tiver que se comporte conforme sua vontade e consciência, mas não atentando contra a liberdade religiosa.
Em suma, o moderno relativismo moral só se compreende à luz de suas raízes filosóficas imanentistas, isto é, autoreferenciais e não transcendentes ao sujeito cognoscente. Para o imanentista, não existem fatos, mas versões. A realidade dos fatos é substituída pela narrativa. E quem tiver mais poder dominará a narrativa e a imporá à sociedade.
O paradoxo, repita-se, está em se pregar a tolerância, com base no relativismo de todas as opiniões, e não se admitir a opinião de que haja uma natureza humana com seus ditames comportamentais. Se o próprio comunismo, de partido único, é tolerado pela democracia, quando sua prevalência levaria à supressão do jogo democrático de partidos, por quê o jusnaturalismo e o realismo filosófico não teriam mais foro de cidadania na sociedade moderna? Talvez porque a destruição dos conceitos de verdade e de bem seja a pedra fundamental da construção de uma sociedade absolutamente manipulável por quem deseja estabelecer-se num poder absoluto.
Que nossa sociedade do século 21 acorde para a realidade e saiba superar o paradigma imanentista e relativista que ora a domina, de modo a reencontrar o caminho que a conduzirá à prosperidade e felicidade pessoal e coletiva.
Ives Gandra da Silva Martins Filho é ministro decano do TST (Tribunal Superior do Trabalho). Mestre e doutor em Direito pela UnB (Universidade de Brasília) e UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sulo). Professor dos cursos de pós-graduação da Ebradi e Enamat. Vice-presidente da Academia Internacional de Direito e Economia.