Gilmar valida chamamento público para cursos do Mais Médicos

A política do chamamento público para o programa Mais Médicos busca ordenar e integrar a formação dos recursos humanos ao Sistema Único de Saúde (SUS), sem aniquilar a livre iniciativa. Os agentes privados ainda podem atuar no mercado, mas a instalação dos cursos fica condicionada à necessidade social dos municípios, para que os recursos financeiros e institucionais sejam direcionados ao atendimento das demandas do SUS.

Gilmar manteve cursos já instalados sem chamamento públicoCarlos Moura/SCO/STF

Com esse entendimento, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, confirmou, em liminar, nesta segunda-feira (7/8), a constitucionalidade de tal sistemática e estabeleceu que ela é incompatível com medidas que não exigem prévio chamamento público, como a abertura de novos cursos de medicina com base na Lei do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) ou a autorização de novas vagas em cursos já existentes.

Mesmo assim, Gilmar determinou a manutenção dos novos cursos de Medicina já instalados com base em ordens judiciais que dispensaram o chamamento público.

Ele também autorizou o prosseguimento dos processos administrativos pendentes, também instaurados por decisão judicial, que ultrapassaram a fase inicial de análise documental. Nesses casos, as instâncias técnicas convocadas a se pronunciar nas etapas seguintes deverão observar se o município e o novo curso atendem aos critérios previstos pela Lei 12.871/2013, que instituiu o Mais Médicos.

Por outro lado, o magistrado estipulou a suspensão dos processos administrativos que ainda não ultrapassaram a etapa documental.

Contexto do caso

O programa Mais Médicos foi criado pelo governo Dilma Rousseff (PT) com o objetivo de formar médicos para o SUS e suprir a carência de tais profissionais em determinadas regiões, diante da sua concentração em áreas economicamente privilegiadas.

A norma prioriza a abertura de novos cursos de Medicina em regiões socialmente vulneráveis. Os municípios são selecionados com base na necessidade social e na existência de equipamentos públicos adequados e suficientes para a oferta dos cursos. Em contrapartida pela instalação de um novo curso, a instituição privada deve custear melhorias na estrutura local do SUS.

O artigo 3º da lei estabelece que a autorização para o funcionamento de cursos de Medicina em instituições de ensino superior privadas deve ser precedida de chamamento público. Assim, as faculdades interessadas em abrir novos cursos de Medicina se inscrevem em uma espécie de concurso e são avaliadas pelo governo federal. No último mês de abril, o Ministério da Educação (MEC) retomou os chamamentos públicos para novos cursos.

A Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup) ajuizou ação declaratória de constitucionalidade em favor desse dispositivo. A entidade ressaltou que os chamamentos públicos são abertos para viabilizar a oferta de novas vagas após um exame cauteloso das características regionais e do investimento necessário.

A autora apontou a existência de diversas decisões judiciais liminares que afastaram a exigência do chamamento público para instituições de ensino e determinaram ao MEC a análise de pedidos de abertura de cursos de Medicina com base na Lei do Sinaes — voltada ao incremento geral de todos os cursos de graduação do Brasil, independentemente das peculiaridades de cada área do conhecimento.

Em outubro do último ano, o STF promoveu uma audiência pública sobre o tema com autoridades, especialistas e membros da sociedade em geral. Os críticos da regra do chamamento público alegaram violação à livre iniciativa.

Chamamento válido

Gilmar ressaltou que o Mais Médicos buscou evitar a criação de novos cursos de Medicina sem a avaliação da necessidade de médicos em todas as regiões do país ou sem a infraestrutura apropriada para formação completa dos profissionais.

Para ele, a sistemática do chamamento público é adequada para atingir os objetivos do poder público: “Há peculiaridades fáticas e normas jurídicas que justificam a sujeição dos cursos de Medicina a dinâmica de autorização diferenciada”.

Além disso, há um “impacto imediato na descentralização dos serviços de saúde”, pois a própria instalação da faculdade resulta em uma injeção de recursos financeiros e humanos na infraestrutura de saúde local. “A faculdade de Medicina bem estruturada envolve o estabelecimento na cidade de professores, alunos de graduação e residentes”, assinalou.

Criado em 2013, programa busca suprir carência de médicos em certas regiões

Assim, o ministro considerou irrelevante avaliar se os médicos permanecem no local após a graduação ou a residência, pois a própria existência do curso na região já garante novos serviços e equipamentos públicos.

O magistrado também não constatou evidências sobre a existência de eventuais “alternativas menos gravosas para o enfrentamento do problema”.

Segundo Gilmar, “não há como concluir que o mercado seja capaz de autorregular-se no sentido de alcançar a concretização dos comandos constitucionais sobre o tema”. Ele lembrou que o inciso III do artigo 200 da Constituição estabelece a competência do SUS para “ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde”.

Alternativas inválidas

Na visão do ministro, a abertura de cursos de Medicina com base na Lei do Sinaes, sem chamamento público, é inviável enquanto o Mais Médicos estiver vigente.

Para ele, “a admissão da dupla via implicaria a falência da política pública”, que perderia toda a capacidade de direcionar os esforços privados para as necessidades do SUS. Ou seja, “qualquer capacidade de indução do comportamento de agentes privados” seria esvaziada.

Quanto à abertura de novas vagas em cursos já existentes, o ministro considerou que o Mais Médicos “não pode conviver com o aumento de vagas fora da sistemática” trazida na lei de 2013. “É imperioso que toda e qualquer criação de novas vagas de cursos de Medicina, ainda que em localidades com cursos instalados, observem a sistemática do chamamento público”, afirmou.

Segundo ele, se há uma limitação (legítima) à entrada de novos competidores no mercado de cursos de Medicina, a autorização para que as faculdades já inseridas no programa aumentem suas vagas cria um “sistema distorcido e injusto”.

Decisões judiciais

Embora tenha invalidado a abertura de cursos ou novas vagas sem o chamamento público, Gilmar ressaltou que as faculdades beneficiadas pelas decisões judiciais apontadas pela Anup cumpriram os requisitos do decreto que regulamenta a Lei do Sinaes: foram validadas por uma comissão de especialistas, pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) e pela Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres) do MEC.

Dessa forma, “ainda que não seja o trâmite da política pública considerada constitucional nestes autos”, o magistrado reconheceu que tais cursos não oferecem riscos à população e ao seu mercado consumidor. “Pelo contrário, é do interesse da sociedade que esse longo processo de instalação das faculdades, com admissão de alunos e corpo docente, não seja revertido”, destacou.

O ministro aplicou raciocínio semelhante aos cursos que ainda estão em fase de análise no MEC, por ordem judicial. Ele lembrou que parte dos pedidos de credenciamento já superaram a fase inicial de análise documental, e portanto já conseguiram decisão favorável do poder público, no sentido de que “constituem projetos minimamente viáveis”.

Dúvidas

O advogado Henrique Silveira, sócio da prática de Educação do escritório Mattos Filho, diz que a decisão “deixa muitas lacunas” quanto às providências para as ações em andamento e os processos administrativos abertos em função das decisões judicias. Ele também entende que certos itens precisarão ser regulamentados pela Seres do MEC. Por isso, prevê que serão protocolados recursos para esclarecer as dúvidas.

Segundo Silveira, Gilmar aparentemente teve a intenção de determinar a suspensão das ações judiciais em curso sobre o tema, para evitar decisões conflitantes com a sua própria. Porém, isso não é dito expressamente na decisão do ministro.

Com relação aos processos administrativos que já passaram da fase documental, o advogado indica que o magistrado, ao estabelecer condicionantes para sua análise, buscou aproximá-los do regime do Mais Médicos.

Para Silveira, isso é “complexo”, pois a decisão atraiu, por exemplo, “obrigações de investimento na infraestrutura pública mediante contrapartidas ao SUS” e “a necessidade de demonstrar o uso da infraestrutura pública”.

O sócio do Mattos Filho ainda aponta a dúvida sobre a necessidade ou não de se aplicar tais “regras qualitativas” aos casos em que os cursos beneficiados por decisões judiciais já estão operando regularmente mediante autorização do MEC.

Clique aqui para ler a decisão

ADC 81

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