O recente censo demográfico trouxe interessantes resultados sobre a realidade brasileira. Um retrato da nossa população com informações que vão subsidiar a implementação e o alinhamento de políticas públicas a investimentos que serão conduzidos nos próximos anos por governos e por organizações privadas.
A sua importância é inquestionável: uma sociedade [1] que conhece a si tende a executar, com mais eficiência, ações para planejar melhor o seu futuro.
Os dados da pesquisa servem à programas e projetos que vão contribuir para acompanhar o crescimento, a distribuição geográfica e a evolução das características da população ao longo do tempo; identificar áreas para investimentos prioritários; selecionar locais que necessitam de programas de estímulo ao desenvolvimento econômico e social; etc.
Mas não é só o governo que se beneficia dos dados de um censo demográfico. A sociedade também pode fazer uso de seus resultados na seleção de locais para a instalação de escolas, creches, cinemas e lojas; na análise do perfil sociodemográfico e econômico da população; e na reivindicação por maior atenção do governo para problemas específicos.
Com o resultado do Censo 2022 feito pelo IBGE, muitas opiniões vêm sendo veiculadas sobre possíveis cenários futuros acerca do aproveitamento do bônus demográfico e seus principais efeitos.
A principal preocupação parece residir numa aparente baixa taxa global de crescimento da população, a demonstrar que não houve e possivelmente não haverá, ao menos em curto prazo, o esperado alargamento da pirâmide etária das pessoas em idade produtiva, indicativo de que podemos ter perdido um potencial de trabalho projetado em anteriores cenários econômicos.
Os números indicam que, de 2010 a 2022, a população brasileira crescera apenas 6,5%, tendo chegado a 203,1 milhões. Isso representa um acréscimo de 12,3 milhões de pessoas no período em relação ao último censo de 2010. A taxa de crescimento anual da população do país foi de 0,52%. Segundo o IBGE, a menor taxa desde o primeiro Censo do Brasil, em 1872.
Em geral, o enfoque dado aos textos que analisam esses números tem sido notadamente econômico, e esta perspectiva parece ser a maior preocupação de economistas das mais diversas escolas do nosso País. Evidentemente, a maioria dessas opiniões abordam questões relacionadas à produtividade da população e ao crescimento do PIB, relacionando-os.
Em entrevista ao Valor Econômico, o destacado economista Marcelo Neri [2] enfatizou que se a fertilidade estiver por trás do resultado do Censo, vamos pagar um preço.
“A China foi o grande destaque global nos últimos 40 anos e ao que tudo indica será ultrapassada pela Índia, que já tem uma demografia mais favorável.
A economia da China cresceu muito em momento em que sua população aumentava. Só que fez a política do filho único e vão faltar jovens, população em idade ativa, porque caiu a fertilidade. Aqui no Brasil, cada mulher tinha 5,7 filhos em 1970. No Censo 2010, já tinha menos de dois. O que está por trás desse crescimento mais lento da população?
Apesar de ainda não termos o dado de faixa etária pelo Censo 2022, o crescimento mais lento da população sugere [um perfil com] dois extremos: uma população mais envelhecida, porque a expectativa de vida está aumentando – a cada três anos ganha um ano de expectativa de vida – e uma baixa fertilidade. A população em idade ativa cai porque caiu a fertilidade em algum momento no passado. E a população está [em boa parte] além da fase que se chama de idade ativa.
Teremos que reinventar esses critérios. Ainda se pensa que a pessoa com 60 anos é terceira idade. E é premente montar equipes de trabalho mais diversas, com papel para pessoas mais experientes. Se a razão do menor crescimento populacional for a questão da fertilidade, como parece ser, há um outro ponto.
O Brasil é um país cheio de mazelas sociais. Uma taxa de crescimento populacional maior permite reescrever a história. Tem um fluxo de pessoas chegando: se oferecer educação e serviços, por exemplo, em algum tempo eles vão transformar o país.
Quando a população cresce menos, está oxigenando menos. O país aumentou a educação das pessoas, mas o trabalhador brasileiro está tão produtivo quanto era em 1980, quase não cresceu. As transformações da população foram muito fortes, com aumento de expectativa de vida e de educação, mas o que talvez tenha falhado foi a economia. No Brasil, a gente fez uma revolução social atrasada, mas que não veio acompanhada de uma revolução econômica.”
José Eli da Veiga, professor do Instituto de Estudos Avançados da USP, nos ensina muito sobre o Antropoceno e as Humanidades. Com especial foco nos pensamentos econômicos [3] afirma:
“Engenharia e ética são as duas dimensões essenciais do pensamento econômico. As tentativas de isolar apenas a mais instrumental, com a ingênua pretensão de purificá-lo com a Teoria Neoclássica, têm sido incapazes de proporcionar uma abordagem mais holística para dar concretude aos objetivos do desenvolvimento sustentável.
São duas tradições bem mais antigas. A que inclui a ética remonta a Aristóteles, para quem a finalidade do Estado deveria ser a promoção comum de uma boa qualidade de vida.
Ocorre, no entanto, que desde meados do século passado, só diminuiu o peso relativo do componente ético. A metodologia da chamada “economia positiva” deixou de lado muitos dos difíceis aspectos morais que afetam o comportamento humano.”
Como exemplifica o autor, tomem-se os melhores estudos sobre os tragicamente atuais problemas de desnutrição. O fato de irromperem fomes coletivas, mesmo em situações de grande e crescente abundância de alimentos, pode ser melhor analisado mediante os padrões de interdependência ressaltados pela teoria do equilíbrio geral, permeada por considerações éticas.
Nessa linha de pensamento, como contraponto às análises puramente econômicas, propõe-se uma breve reflexão sobre os resultados do Censo Demográfico por outra perspectiva. Sob um olhar voltado sobretudo ao desenvolvimento sustentável.
Um eventual não aproveitamento do bônus demográfico é um dado alarmante? Sim, mas sim porque demonstra a necessidade de se redimensionar políticas, programas e ações pensadas sobre uma lógica de um crescimento populacional que possivelmente não atingiremos na projeção esperada.
Será que o crescimento econômico deve ser revelado sem perpassar por um filtro de sustentabilidade? O crescimento econômico, por si só, seria capaz de diminuir as desigualdades e melhorar a qualidade de vida da nossa população? Será que precisamos realmente crescer numericamente para alcançar um desenvolvimento sustentável e implementar integralmente os objetivos da Agenda 2030 da ONU?
As respostas a estas perguntas dependem da compreensão do que se entende por desenvolvimento sustentável e porque o PIB — embora de indiscutível importância para o desempenho econômico de qualquer país — não pode ser considerado isoladamente para o desenvolvimento sustentável, conceito fundamental da nossa época, que tenta compreender as interações de três sistemas complexos: a economia, a sociedade e o ambiente.
Um caso muito inspirador, em alternativa ou complementariedade ao PIB, é a Felicidade Interna Bruta (FIB) medida no Butão [4], que dedica especial atenção à felicidade de seu povo, similar ao IDI (Índice de Desenvolvimento Inclusivo) [5], indicador econômico apresentado durante o Fórum Econômico Mundial de Davos (2018), que leva em consideração aspectos econômicos agrupados em crescimento, desenvolvimento e inclusão.
Em extraordinárias linhas, Jeffrey D. Sachs [6] elucida:
“O que sabemos é que a vasta economia mundial está a crescer rapidamente (3-4 por cento ao ano) e é extremamente desigual na distribuição dos rendimentos dentro dos países e entre os países. Vivemos num mundo de riqueza fabulosa e pobreza extrema. Milhares de milhões de pessoas gozam de uma longevidade e boa saúde inimagináveis nas gerações anteriores, mas pelo menos mil milhões de pessoas vivem numa pobreza tão abjeta que têm de lutar pela sobrevivência todos os dias. Para os mais pobres dos pobres, enfrentar os desafios diários da nutrição insuficiente, ausência de cuidados de saúde, alojamentos inseguros e falta de água potável e saneamento é uma questão de vida ou de morte.
A economia mundial é não só extraordinariamente desigual, mas também extraordinariamente perigosa para a própria Terra. Como todos os seres vivos, o ser humano depende da natureza para o abastecimento de comida e água, materiais para a sobrevivência e proteção contra terríveis ameaças ambientais, como epidemias e catástrofes naturais. No entanto, para uma espécie que depende da benevolência da natureza, ou do que os cientistas chamam serviços ambientais, estamos a fazer muito pouco para proteger a base física da nossa própria sobrevivência!
A gigantesca economia mundial está a criar uma gigantesca crise ambiental, ameaçando a vida e o bem-estar de milhares de milhões de pessoas e a sobrevivência de milhões de outras espécies no planeta, se não mesmo a nossa.
As ameaças ambientais, como veremos, surgem em várias frentes. O ser humano está a alterar o clima da Terra, as reservas de água doce, a composição química dos oceanos e os hábitos de outras espécies. Estes impactos são hoje tão grandes que a própria Terra está a sofrer mudanças indiscutíveis no funcionamento de processos fundamentais para a própria vida – como os ciclos da água, do azoto e do carbono. Não sabemos a escala, o tempo e as consequências precisas destas mudanças, mas sabemos o suficiente para perceber que são extremamente perigosas e sem precedentes nos 10.000 anos da civilização humana.”
Portanto, é de primeira importância o amadurecimento de uma visão sistêmica da vida, de sua complexidade, dos limites ao crescimento econômico desenfreado em razão da escassez e finitude dos recursos naturais. Isto tudo, sem perder o otimismo em relação a um futuro mais humano e confluente, lastreado numa economia equilibrada, mais distributiva e regenerativa.
Do contrário, em breve, sofreremos ainda mais intensamente os efeitos das mudanças climáticas, dos conflitos por territórios e recursos, migrações forçadas, instabilidade financeira, pandemias, desigualdades sociais e regionais, e miséria.
O paradigma do crescimento tem sido central nas representações de mundo e nas políticas econômicas desenvolvidas desde 1945. No entanto, se quisermos um futuro, devemos repensar esse crescimento econômico tradicional, que teve o seu auge entre a Segunda Guerra e a década de 1970.
Como destaca Geneviève Azam [7], a expansão econômica, que foi a condição do progresso social e do desenvolvimento nesse período, já não resiste a uma análise mais cuidadosa a partir de uma visão sistêmica da vida. Em seguida, afirma:
“Esse crescimento, que de fato se concretizou nos países industrializados ‘desenvolvidos’, envolveu uma minoria da população mundial, construiu-se sobre o desperdício e a espoliação insensata dos recursos naturais limitados, o acesso a energias fósseis baratas, e a fabricação de desigualdades e desequilíbrios em escala mundial.
O Relatório Brundtland, de 1987, também chamado de Nosso futuro comum, propunha um crescimento ‘limpo’, que deveria assegurar conjuntamente a sustentabilidade ecológica, o desenvolvimento e a justiça social. A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento-Eco-92, realizada no Rio de Janeiro em 1992, fez dessa proposta sua coluna vertebral.”
Em sociedades forjadas na cultura do crescimento, é natural que a sua paralisia signifique recessões econômicas insustentáveis, com a explosão da miséria, o agravamento de políticas produtivistas e extrativistas, e abalos democráticos.
No entanto, o progresso social, a prosperidade e o bem viver são possíveis até mesmo sem crescimento econômico. Para isso, é preciso deixar de lado a perspectiva exclusiva de busca por dividendos, numa bifurcação rumo a sociedades mais sustentáveis, quem sabe até em decrescimento.
A explosão das desigualdades e a superação dos limites ecológicos tornaram obsoletas qualquer tolerância ao desenvolvimento econômico que não considere esses fatores. Mas qual a correlação dessa premissa com o bônus demográfico?
Todo país desenvolvido parece ter se aproveitado em alguma medida de uma expansão demográfica, do aumento romboidal de sua pirâmide etária. Mas como estão hoje esses estados? Esse ponto, por si só, foi essencial para o desenvolvimento econômico? E o que fizeram depois desse marco? Como convivem com o envelhecimento de sua população e as baixas taxas de natalidade?
O Japão é um case de singular importância e traz algumas alternativas para um período pós hipertrofia demográfica. Aquela sociedade oriental foi uma das primeiras a experimentar um significativo envelhecimento concomitante ao declínio populacional.
Em relação ao declínio populacional foram implementadas políticas de natalidade. Com um aumento no número de jovens, os efeitos do envelhecimento foram atenuados. Em relação às repercussões socioeconômicas, o governo buscou melhorar a situação dos trabalhadores, principalmente das mulheres e dos idosos. Para aumentar a mão de obra e fomentar a economia, a imigração foi flexibilizada.
As soluções parecem passar pelo realinhamento de políticas públicas, pelo reequacionamento de investimentos e do fluxo de recursos públicos e privados, sobretudo em educação, saúde, trabalho, transporte e na conservação e restauração do meio ambiente, ativo potencial capaz de alçar o Estado brasileiro a um papel de protagonismo internacional.
É preciso mobilizar redes de conhecimento, de partes interessadas, poder público, líderes comunitários, associações de todo gênero, grupos religiosos, fundações e organizações internacionais acerca dos complexos desafios do desenvolvimento sustentável.
Há 50 anos, o presidente John Kennedy [8] afirmou que: “ao definirmos melhor o nosso objetivo, ao fazê-lo parecer mais viável e menos remoto, podemos ajudar todas as pessoas a vê-lo, a criar a esperança a partir dele e a avançar irresistivelmente para ele”.
A nossa geração é a primeira a compreender de forma mais adequada e sistematizada os danos advindos das mudanças climáticas e das desigualdades sociais, e provavelmente seremos a última a ter uma oportunidade de fazer algo realmente transformador para mudar nosso futuro e o futuro das próximas gerações.
O futuro do nosso futuro nunca dependeu tanto do nosso presente, e o nosso presente não pode conceber um desenvolvimento que não seja sustentável.