Em artigo anterior denominado “Expectativas de mercado desequilibram o contrato social expresso na moeda“, foi suscitada a hipótese de que há um desequilíbrio na relação normativa em torno da estabilidade da moeda, da forma como o Banco Central (BC) tem gerido a política monetária, sob o regime jurídico dado pelo Decreto 3.088/1999 e, mais recentemente, pela Lei Complementar 179/2021.
Ao invés de utilizar com a devida moderação as expectativas coletadas no mercado acerca da inflação futura (expectativas do Relatório Focus), a autarquia tem sido conduzida por um termômetro metodologicamente inepto e enviesado. Tanto a amostra é irrelevante para oferecer qualquer inferência a respeito do universo de agentes econômicos que, de fato, definem os preços dos bens e serviços que ofertam hoje e no futuro, quanto os seus resultados são consistentemente distantes da realidade, algo atestado pela baixa correlação estatística entre as variáveis expectativas e inflação efetiva no período observado (correlação de apenas 0,12, entre 2013 e 2022).
A inépcia metodológica pode não ser neutra, porque encerra conflito em que, quanto maiores forem as expectativas de inflação em relação à meta, mais provável que o BC fixe a taxa básica de juros em nível injustificadamente elevado, quando contrastada com a inflação corrente e com os outros indicadores econômicos que o Banco Central deveria levar em conta para atender à pluralidade de objetivos que deve cumprir. O aludido conflito, de um lado, pode impor penalização excessiva a uma parcela expressiva da sociedade, que é a mais pobre e devedora líquida; às empresas que tomam recursos para produzir e investir; bem como ao governo, no encarecimento da gestão da dívida pública. Por outro lado, a parcela da sociedade que é detentora de ativos financeiros na moeda nacional, a mais abastada, passa a receber remuneração excessiva. Há um franco desequilíbrio na equação entre ônus e bônus dessa coleta de informações enviesada que estrutura a formação das expectativas de mercado de inflação, que podem comprometer o contrato social sobre o valor da moeda.
É como se o contrato fiduciário em que se sustenta a moeda contivesse uma cláusula tipicamente leonina, hipótese que, para os operadores do Direito, configura-se como passível de questionamento acerca da sua nulidade, dada a quase completa sujeição de um dos polos contratuais ao arbítrio abusivo do outro.
Aludido desequilíbrio potencialmente leonino no contrato de confiança celebrado em torno da moeda brasileira poderia ser diagnosticado nos dois seguintes impasses presentemente muito denunciados, os quais tendem a operar como verdadeiros ágios abusivos na precificação de risco inflacionário:
1) É arbitrária (porquanto não lastreada em norma juridicamente válida) a adoção do conceito de dívida bruta do governo geral (DBGG), que está na casa de 73% do PIB, — ao invés do parâmetro de dívida líquida do setor público (DLSP), em torno de 57% do PIB — para fins de projeção do que viria a ser sustentabilidade da dívida pública brasileira. Tal escolha metodológica, por si só, pode agravar a percepção de risco de inflação e, por conseguinte, contribuir para uma definição desarrazoada da taxa básica de juros.
Ao não considerar como ativos do setor público as reservas internacionais e os títulos de dívida do Tesouro que detém em seu balanço, o Banco Central adota o parâmetro metodologicamente mais gravoso e embute ágio do que chama de “risco fiscal”. De fato, os títulos da dívida pública que o BC detém em carteira resultam exatamente de operações de compra de reservas internacionais e de operações de política monetária (sobretudo venda de títulos do Tesouro no mercado), feitas para garantir que a Selic efetiva se mantenha em torno da Selic-meta.
Como proteção ao país e à estabilidade do sistema financeiro, as operações de compra de reservas internacionais e gestão da liquidez de curto prazo no sistema bancário não expressam dívida decorrente da despesa primária do governo, mas tão somente de opções do BC que formalmente impactam a DBGG. Vale lembrar, a título ilustrativo, que o fato de parcela considerável da dívida bruta brasileira estar no balanço do Banco Central atrelada à gestão da política monetária traz consigo a impossibilidade lógica de abatimento real da dívida, a exemplo do que ocorreu quando foram desvinculados cerca de R$ 170 bilhões dos fundos infraconstitucionais, por meio do artigo 5º da EC 109/2021, mas nenhuma amortização efetiva da DBGG ocorreu.
Nesse contexto, precificar excessivamente riscos de inflação e, por conseguinte, tentar balizar a taxa básica de juros de forma desarrazoadamente alta, a partir da DBGG, ao invés da DLSP, é se deixar conduzir por e retroalimentar uma falaciosa percepção de insustentabilidade da dívida pública brasileira.
Um enviesamento analítico daí decorrente reside na opção de o BC, como instância reguladora, priorizar as operações compromissadas, com títulos, e não manejar, como poderia, a alternativa de depósitos remunerados na gestão da política monetária. Essa alternativa prevista pela Lei 14.185/2021 não traria impactos na DBGG, mas a omissão imotivada na sua utilização tende a se configurar, em igual medida, como cláusula leonina implícita desse contrato fiduciário.
2) É igualmente controversa, à luz do princípio da razoabilidade, a resistência do Conselho Monetário Nacional (CMN) em rever a meta de inflação, atualmente situada em patamar desproporcionalmente baixo (3%) para a realidade brasileira e mesmo mundial. Manter a meta de inflação em patamar faticamente irrealista tem impactos fiscais, econômicos e sociais consideravelmente onerosos, mas não apenas isso.
Tal meta fixada discricionariamente pelo CMN pode e deve ser revista, até para que sejam alcançados, tanto quanto possível, os demais objetivos legalmente atribuídos ao BC pelo parágrafo único do artigo 1º da LC 179/2021, os quais seguem praticamente ignorados há dois anos. É preciso que sejam efetivamente consideradas finalidades de suavização dos ciclos econômicos, fomento ao pleno emprego e estabilização do sistema financeiro nos modelos que operacionalizam cotidianamente a política monetária no âmbito do Banco Central.
A pura e simples desconsideração dos objetivos complementares dados pelo mandato legal à autoridade monetária trata-se, pois, de mais uma evidente cláusula leonina imposta por uma ínfima e privilegiada parcela dos credores desse contrato de confiança na moeda.
Ambos os ágios arrolados acima operam como precificação de risco, seja ele prévio na DBGG (risco de um estoque de dívida bruta alto e crescente, por mais que a política fiscal seja contracionista), seja ele posterior diante do não alcance da meta de inflação fixada em patamar francamente irrealista (risco de a finalidade não ser alcançada). Tal equação típica de contrato leonino superestima os riscos, pressiona os juros e possui grande grau de retroalimentação da dívida pública por força da política monetária.
Há um claro conflito hermenêutico que clama por adequada e segura resolução. Como bem suscitado no Requerimento 159/2023, apresentado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que motivou a “sessão de debates temáticos“, a se realizar nesta quinta-feira (27/4), para debater “Juros, Inflação e Crescimento”:
“[…] sem prejuízo de seu objetivo fundamental [de garantir a estabilidade de preços], o Banco Central do Brasil tem por objetivos suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego. Ocorre que esses objetivos ficam prejudicados quando a taxa Selic está muito elevada, uma vez que esta serve de base para todos os demais juros da economia (como os utilizados por bancos na concessão de crédito), já que são os juros pagos pelo tomador de menor risco do Brasil – ou seja, o próprio Tesouro Nacional.
[…] Logo, a necessidade da manutenção dos juros elevados por mais tempo, embora traga segurança quanto ao atingimento das metas de inflação – algo essencial para o desenvolvimento socioeconômico do nosso país, também compromete a tomada/concessão de crédito, o ímpeto empreendedor e o crescimento de curto prazo.
Sendo assim, ao mesmo tempo em que não é viável o aumento descontrolado de preços — diretamente relacionado com perda de poder de compra, maus investimentos, alocação inadequada de capital, desorganização econômica, fragilização monetária, aumento da desigualdade social e diversas outras mazelas —, também não é desejado o sufocamento da economia no curto prazo. Por tudo isso, é imperativo que dialoguemos, a fim de identificar os motivos por trás das elevadas expectativas inflacionárias e dos vultosos juros reais que predominam no Brasil. Dessa maneira, será possível direcionar nossos esforços para a construção de soluções capazes de evitar a perda do poder de compra da nossa população sem prejudicar o crescimento imediato da nossa economia.”
Em face de todas essas tensões, insiste-se na conclusão externada no primeiro texto (leia aqui) de que é preciso regulamentar a Lei Complementar 179/2021, na forma do artigo 84, IV, da Constituição, para assegurar efetivo cumprimento a todos os objetivos do BC, os quais perfazem a finalidade indissociável da autonomia que lhe foi conferida pelo ordenamento. Mas não só: é necessário que o decreto que venha a regulamentar a LC 179/2021 também reveja o Decreto 3.088/1999. Até porque é inegável que, a partir de 2021, foram alteradas as condições em que o país havia celebrado seu contrato anteriormente vigente desde 1999 em torno do sistema de metas de inflação.
Reequilibrar o contrato social da moeda, expurgando as cláusulas leoninas que lhe oneram desarrazoada e desproporcionalmente, em detrimento da população mais vulnerável, do setor produtivo da economia e da própria gestão da dívida pública empreendida pelo governo, é tarefa democrática absolutamente urgente e constitucionalmente civilizatória.
Élida Graziane Pinto é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).
Simone Deos é economista, professora associada (livre-docente) do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisadora sênior do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais).