Uma pessoa entra no consultório médico com fortes dores, relata todos os sintomas que a acometem para a enfermeira que lhe atende e, para a sua surpresa, recebe dela a notícia de que será um professor de literatura quem fará a análise do seu corpo e, depois, indicará o tratamento correto. O cenário pode parecer uma piada ou mesmo mera ficção, mas é uma excelente analogia para o que acontece todos os dias no julgamento de processos disciplinares ao redor do país.
Conforme estabelecido no Manual de Processo Administrativo Disciplinar (PAD) da Corregedoria-Geral da União (CGU), o Direito Administrativo Disciplinar é em síntese: “um ramo do Direito Administrativo, que tem por objetivo regular a relação da Administração Pública com seu corpo funcional, estabelecendo regras de comportamento a título de deveres e proibições, bem como a previsão da pena a ser aplicada” [1].
Sendo assim, o PAD integra um ramo do Direito Administrativo, que por sua vez, sempre demandou (e demanda cada vez mais) complexos e relevantes estudos por parte de grandes nomes do pensamento jurídico. Este fato demonstra que a complexidade das normas de Direito Administrativo precisam de pessoas especialistas e capacitadas para interpretá-las e, sobretudo, para aplicá-las corretamente na prática.
No entanto, lamentavelmente, na maioria das vezes não é o que acontece no âmbito do PAD. Isso porque, nesses processos, em síntese, uma comissão processante com pelo menos três servidores públicos promove toda a instrução processual e elabora um relatório final, que, salvo raras exceções, é apenas acatado pela autoridade julgadora [2].
Até então, sobre o aspecto “estrutural” do processo, tudo bem. O problema toma corpo na medida em que a comissão, que será responsável por conduzir todos os atos processuais, pode ser formada por servidores leigos, ainda que não possuam qualquer contato prévio com o universo jurídico. No contexto das universidades, por exemplo, é comum que professores de engenharia, medicina, contabilidade, etc., presidam, de forma precária, o processo disciplinar de colegas de profissão.
Embora alguns servidores se esforcem para conduzir o processo da melhor forma possível, eles não têm culpa por não possuírem o conhecimento jurídico necessário para a prática de todos os atos do PAD — inclusive aqueles mais relevantes.
Ademais, os membros da comissão, na maioria dos casos, continuam a exercer suas — exaustivas — funções originárias, como ministrar aulas, fazer cirurgias, analisar relatórios, enfim, praticar todos os atos atinentes à sua profissão, fazendo com que tenham ainda menos tempo para se debruçarem sobre um manual de Direito Administrativo ou coisa do gênero visando o melhor andamento do PAD.
Do outro lado, os procuradores contratados pelos investigados/acusados escrevem de forma didática; explicam o sentido da norma; comentam a doutrina especializada; sinalizam as irregularidades do processo e clamam pela correta aplicação da lei, mas sem resultados. Afinal, para a comissão (leiga), “Dura lex, sed lex!“, contudo, sem compreender as regras hermenêuticas aplicáveis às normas jurídicas.
Quem isso aconteça porque antes de ler a defesa do acusado, o presidente da comissão tenha se preocupado em solucionar um problema ocorrido no seu setor. Aliás, em tempos de audiências a distância, não é difícil perceber nas telinhas que, enquanto as testemunhas ou o próprio acusado narram os acontecimentos, os membros da comissão leem e digitam sem parar… os seus trabalhos pessoais, alheios ao processo e aos fatos em discussão.
O resultado quase sempre é um julgamento injusto, superficial e desastroso, mas não poderia ser diferente diante do cenário burlesco aqui denunciado. Não esquecendo de respeitar o caráter sucinto e meramente provocativo deste artigo, a ocasião torna pertinente realçar a crítica feita pelo autor Antônio Carlos Alencar Carvalho:
“De outro turno, o que mais se verifica na casuística é uma única apreciação da responsabilidade administrativa do servidor por parte do conselho processante, o qual, depois de colher as provas e formar sua opinião sobre a culpa ou não do acusado, simplesmente decide-lhe a derradeira sorte, na prática. Isso porque a autoridade julgadora recebe o relatório final do colegiado disciplinar e simplesmente acolhe, na íntegra, sem maior análise da proposição apenadora apresentada pelo conselho processante, muitas vezes sem ao menos antes submeter a matéria a um parecer jurídico de um órgão independente e competente” [3].
Toda a problemática comentada acima não apenas prejudica a segurança jurídica e ofende as garantias processuais básicas do acusado, mas também escarnece o Direito e todos aqueles que dedicam boa parte do seu tempo e consequentemente da sua vida a ele.
De toda forma, se o legislador assim o quis, o resto seria mero desabafo, ao menos até que algo de relevante se altere na lei. Aliás, quem sabe um título alternativo para este artigo pudesse ser copiado da obra de Piero Calamandrei: “Ela, a Comissão, vista por nós, os advogados“. E nesse sentido, acredito que nenhum de nós, os advogados, aprecie trabalhar para que ela, a comissão, não analise nossos argumentos com seriedade, seja por desconhecimento ou por indiferença diante do agir arbitrário em relação à vida do próximo.
Guilherme Gomes França é bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba, especialista em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e em Direito Processual Civil pela Escola Superior de Advocacia (ESA), pós-graduando em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG, com formação complementar em Direito Administrativo pela FGV-RJ, e advogado especializado em agentes públicos em Curitiba (PR).