Guilherme Trindade: Verbas rescisórias e dano moral in re ipsa

O contrato de trabalho possui regência peculiar, sofrendo influências de vários outros ramos do Direito, como o Direito Civil, Direito Contratual, Direito Processual Civil e, inclusive, do Direito do Consumidor.

No ramo do Direito Civil clássico, o Superior Tribunal de Justiça vem entendendo, de forma já a se tornar uma posição pacificada, no sentido de que eventual inadimplemento contratual não gera direito à indenização, conforme AgInt nos EDcl no AREsp nº 2.270.204/BA (relator ministro Marco Buzzi, DJe de 14/6/2023), dentre outros precedentes. Divergimos veementemente desta conclusão, uma vez que possuímos entendimento no sentido de que, quando o inadimplemento atinge o objeto do contrato ou o próprio equilíbrio entre as contraprestações, atingindo os chamados deveres principais ou primários, portanto, causando desequilíbrio contratual (enriquecimento de um em contraste ao empobrecimento do outro) ou mesmo o inadimplemento do contrato pelo fornecedor, haveria sim, s.m.j., o dano moral presumido, diante da ofensa à justa expectativa do consumidor, o que atinge diretamente os seus interesses econômicos, os quais são resguardados pelo artigo 4° do CDC.

É importante lembrarmos que o modelo econômico liberal nacionalmente adotado, em que se valoriza, não o trabalho, mas especialmente o capital e o lucro, reforça o nosso ponto de vista. Veja-se a máxima “no bolso dói mais”.

Os contratos, independentemente de sua natureza jurídica, prezam pela boa-fé, pela equidade, pelo equilíbrio das contraprestações. O contrato de trabalho, em que pese suas peculiaridades, também segue as regras, por exemplo, da autonomia da vontade, do pacta sunt servanda, da exceptio non adimplenti contractus, admitindo-se a sua rescisão (vide as hipóteses de justa causa tanto para empregador quanto para empregado nos artigos 482 e 483 da CLT).

Os TRTs e também o TST entendem pela não responsabilização automática dos empregadores que não quitam tempestiva e integralmente, por exemplo, as verbas rescisórias incontroversas, justificando que apenas se comprovada a violação a direito da personalidade do trabalhador é que se poderá falar em indenização. A este respeito, vide, a título de exemplo, o RR-11903-80.2016.5.18.0281, senão vejamos:

“Segundo a jurisprudência desta Corte, é possível a indenização por danos morais decorrentes do atraso no pagamento das verbas rescisórias, mas não com base em mera presunção da ocorrência de fatos danosos. É necessária a comprovação de ao menos algum fato objetivo do qual se pudesse inferir que houve abalo moral. Caso contrário, impossível o deferimento de indenização, pois o que gera o dano não é a mora em si, mas as circunstâncias nas quais se configurou, e/ou as consequências eventualmente advindas desse atraso, como, por exemplo, a inscrição do devedor em cadastros de inadimplência, entre outros casos”.

Ou seja, é preciso que o obreiro demonstre que a mora da empresa impactou diretamente suas contas particulares e, com isso, sua honra. Na seara do Direito do Trabalho, a jurisprudência sobre a fixação de danos quanto à inadimplência das verbas rescisórias parece se inclinar timidamente para a configuração da responsabilidade objetiva, uma vez que não exige expressamente a demonstração de dolo ou culpa do empregador. A jurisprudência trabalhista é mais clara quanto a espécie de responsabilidade no tocante a acidentes de trabalhos, estabelecendo:

“(…) O pleito de indenização por dano moral e material resultante de acidente do trabalho e/ou doença profissional ou ocupacional supõe a presença de três requisitos: a) ocorrência do fato deflagrador do dano ou do próprio dano, que se constata pelo fato da doença ou do acidente, os quais, por si sós, agridem o patrimônio moral e emocional da pessoa trabalhadora (nesse sentido, o dano moral, em tais casos, verifica-se pela própria circunstância da ocorrência do malefício físico ou psíquico); b) nexo causal ou concausal, que se evidencia pela circunstância de o malefício ter ocorrido em face das circunstâncias laborativas; c) culpa empresarial, excetuadas as hipóteses de responsabilidade objetiva. Embora não se possa presumir a culpa em diversos casos de dano moral  em que a culpa tem de ser provada pelo autor da ação , tratando-se de doença ocupacional, profissional ou de acidente do trabalho, essa culpa é presumida, em virtude de o empregador ter o controle e a direção sobre a estrutura, a dinâmica, a gestão e a operação do estabelecimento em que ocorreu o malefício. Pontue-se que tanto a higidez física como a mental, inclusive emocional, do ser humano são bens fundamentais de sua vida, privada e pública, de sua intimidade, de sua autoestima e afirmação social e, nesta medida, também de sua honra. São bens, portanto, inquestionavelmente tutelados, regra geral, pela Constituição (artigo 5º, V e X). Agredidos em face de circunstâncias laborativas, passam a merecer tutela ainda mais forte e específica da Carta Magna, que se agrega à genérica anterior (artigo 7º, XXVIII, CF/88). A regra geral do ordenamento jurídico, no tocante à responsabilidade civil do autor do dano, mantém-se com a noção da responsabilidade subjetiva (artigos 186 e 927, caput , CC). Contudo, tratando-se de atividade empresarial, ou de dinâmica laborativa (independentemente da atividade da empresa), fixadoras de risco para os trabalhadores envolvidos, desponta a exceção ressaltada pelo parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, tornando objetiva a responsabilidade empresarial por danos acidentários (responsabilidade em face do risco). (…)” (ARR-2376-68.2011.5.03.0032, 3ª Turma, relator ministro Mauricio Godinho Delgado, DEJT 10/11/2017). 

Entendemos que não caberia discutir-se a responsabilidade subjetiva do empregador, nos casos em que haja inadimplência das verbas rescisórias, sob pena de reforçarmos a evidente e já escancarada desigualdade e sobreposição econômico-social entre empregador e empregado, colocando-se este último numa posição de ainda maior desigualdade.

A dicção dos artigos 477 e 478 da CLT nos levam à conclusão no sentido de que as verbas rescisórias englobam não apenas a remuneração e verbas correlatas normalmente devidas pelo empregador, mas também em as indenizatórias que visam amparar o trabalhador da dispensa imotivada. Estas são, portanto, fonte de sustento do trabalhador, presumindo-se diretamente relacionadas à contraprestação pelo trabalho prestado e, com isso, para o pagamento de suas contas ordinárias.

Daí o significado do parágrafo 8º do artigo 477 da CLT em estabelecer multa pelo não pagamento das verbas incontroversas, demonstrando-se a urgência quanto à necessidade do pagamento. Poder-se-ia argumentar que referido dispositivo está intimamente ligado à proibição constitucional de retenção dolosa do salário (CFRB/1988, artigo 7°, X).

Nesta hipótese específica, entendemos melhor falarmos em responsabilização objetiva do empregador, nos mesmos moldes previstos no Código de Defesa do Consumidor. Há evidente dano moral, em razão da angústia, do aborrecimento, do sentimento de impotência do trabalhador em se ver sem sua fonte de sustento, temendo, com isso, não ter condições de pagar as suas contas e cair em (ou reforçar uma) situação de inadimplência. Referido entendimento advém do disposto no artigo 5° da Lindb e dos artigos 8° e 375 do CPC. A interpretação teleológica-axiológica destes dispositivos nos levam à conclusão de que, ao aplicar a lei, o juiz deve levar em conta não apenas sua experiência, mas igualmente as exigências do bem comum e a finalidade social da lei.

O(a) magistrado(a), portanto, deve presumir, até prova em sentido contrário, que o não pagamento de verba substituidora do salário acarreta em inarredável prejuízo ao empregado. Trata-se de fundamentarmos a responsabilidade objetiva do empregador baseados no princípio do risco do negócio, previsto no artigo 927, parágrafo único do Código Civil c.c. caput do artigo 2º da CLT.

Recorde-se, outrossim, que o instituto da responsabilização objetiva é um instrumento de supressão de desigualdades, configurando-se, portanto, numa ferramenta jurídica que promove a igualdade e justiça social entre partes economicamente desiguais. Neste sentido, destacamos as relações entre administração pública e cidadão (CFRB/1988, artigo 37, §6º) e entre consumidor e fornecedor (CDC, artigo 12).

O mesmo deveria ocorrer entre empregado e empregador, uma vez que este último, em razão não só de seu poder de polícia/potestativo, mas também da presunção juris tantum de superioridade econômica, possui uma posição sócio-econômica privilegiada em relação ao seu subordinado. Neste sentido, colecionamos lição do celebrado jurista Sérgio Pinto Martins, o qual, examinando a origem histórica do direito do trabalho, esclarece que “no princípio, verifica-se que o patrão era o proprietário da máquina, detendo os meios de produção, tendo, assim, o poder de direção em relação ao trabalhador. Isso já mostrava a desigualdade a que estava submetido o trabalhador, pois este não possuía nada. Havia, portanto, necessidade de maior proteção ao trabalhador, que se inseria desigualmente nessa relação. Passa, portanto, a haver um intervencionismo do Estado, principalmente para realizar o bem-estar social e melhorar as condições de trabalho. O trabalhador passa a ser protegido jurídica e economicamente. É como afirma Galart Folch (1936:16): deve-se assegurar a superioridade jurídica ao empregado em razão da sua inferioridade econômica” [1].

Desta forma, o empregador deveria ser responsabilizado objetivamente pelo não pagamento, no prazo legal, das verbas rescisórias incontroversas, cabendo-lhe a este o ônus da prova quanto a alguma excludente de ilicitude ou de culpa do próprio empregado pela mora quanto à quitação.

O reconhecimento do dano moral presumido também contribuiria para se evitar o inadimplemento quanto ao pagamento das verbas rescisórias, evitando-se, com isso, que o empregador retenha indevidamente uma direito assegurado ao trabalhador, impactando diretamente na sua dignidade, subsistência mínima e, inegavelmente, na sua honra.

Concluindo, em que pese, via de regra, o Direito do Trabalho adotar uma posição conservadora, normalmente impondo a responsabilidade subjetiva para as relações jurídicas que lhe são próprias, é preciso estar atento para os casos em que a inadimplência obrigacional do empregador causar não apenas um descumprimento contratual, mas igualmente contribuir para um agravamento da disparidade da relação empregado-empregador, tornando o primeiro um verdadeiro refém a superioridade econômica do segundo. Para estes casos, entendemos que caberia se falar na responsabilização objetiva do empregador, pois o fato, em si, já acarreta num ilícito e, por sua vez, numa presunção de dano ao empregado.

 


[1] MARTINS, Sérgio Pinto. DIREITO DO TRABALHO. 22ª edição. São Paulo: Editora Jurídica Atlas, Pág. 6.

Guilherme Dias Trindade é advogado, sócio-proprietário do escritório Penco & Trindade Advogados e atuante nas áreas de Direito do Consumidor e Direito à Saúde.

Consultor Júridico

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