Gustavo Osna: Medidas executivas atípicas e subsidiariedade

Desde a positivação do atual Código de Processo Civil, poucos temas receberam tanta atenção quanto a possibilidade de adoção de medidas executivas atípicas prevista pelo seu artigo 139, inciso IV. O texto consolidou entendimento já previsto no artigo 461 do Código de 1973 (assim como em nosso microssistema de processo coletivo [1]) e ampliou seu conteúdo. Por meio dele, tornou-se inequívoco que a atipicidade teria lugar, inclusive, para efetivação de obrigações pecuniárias — dilatando a moldura antes existente [2].

Essa majoração também ampliou as interrogações relacionadas à técnica. Afinal, que espécie de medida poderia ser aplicada com fundamento na previsão? De que maneira conformar sua abertura? Como conferir eficácia ao comando, sem perder de vista as garantias constitucionais?

Questões como a apreensão de CNH e de passaporte, ou o bloqueio de cartões de crédito, passaram a verticalizar essas ponderações. Acreditamos que o debate ligado à admissão de cada uma dessas técnicas (bem como de outras a serem criativamente aplicadas, vez que o dispositivo deve servir precisamente a esse fim!) será legítimo e contínuo. Por outro lado, a mesma adequação não se aplica a uma refutação peremptória da atipicidade — a qual, usualmente, decorre de incompreensão quanto aos seus propósitos ou ao seu campo de aplicação.

Foi partindo desse pano de fundo que o Supremo Tribunal Federal já se manifestou quanto à compatibilidade constitucional do dispositivo [3]. E nem poderia ser diferente. Por mais que sua utilização casuística deva observar os limites postos pelo texto constitucional, a abertura posta pelo artigo 139 nos parece consagrar um verdadeiro poder inerente à jurisdição [4]; ainda que sua efetivação deva passar por uma constante avaliação (evitando, por exemplo, o emprego de técnicas exageradamente agressivas ou vexatórias), a atipicidade é uma peça indispensável ao fechamento do nosso sistema [5].

Essa conclusão já foi ratificada pelo Superior Tribunal de Justiça, que, indo além, buscou fixar algumas balizas para a aplicação do preceito [6]. Nesse sentido, destacou que o emprego dos meios executivos atípicos deveria possuir subsidiariedade — sujeitando-se ao esgotamento prévio (e infrutífero) das medidas típicas [7]. Também, constatou que a sua aplicação deveria ser fundamentada e atender a um constante exame de proporcionalidade [8]. Do mesmo modo, consagrou a imperatividade de que a providência, para ser adotada, possa verdadeiramente contribuir para o cumprimento da obrigação.

Sem prejuízo de concordarmos com a conclusão geral firmada pelo órgão, acreditamos, respeitosamente, que a defesa de que o uso do mecanismo é subsidiário não pode encontrar suporte inflexível. Mais que isso, consideramos que esse raciocínio é reforçado pela própria compreensão dos demais requisitos e da sua aplicação.

Valem, aqui, algumas considerações preliminares:

(1) um dos pontos mais relevantes ligados ao tema em questão, mas muitas vezes despercebido por quem crítica sua aplicabilidade, é que o uso de medidas indutivas ou coercitivas, redundantemente, só possui eficácia para quem pode ser induzido ou coagido; o impulso comportamental só se mostra funcional quando há uma vontade a ser verdadeiramente vencida [9];

(2) com particular importância, isso impõe que a aplicação de providências como a apreensão de CNH ou de passaporte, para cumprimento de obrigações de pagar, seja condicionada a uma potencialidade de pagamento. Somente na hipótese de o devedor aparentar dispor de recursos financeiros, mas ainda assim não fazer frente à obrigação, seria possível recorrer às medidas atípicas voltadas a alcançar esse resultado. Afinal, apenas nesses casos ele seria factível;

(3) isso faz com que a crítica à técnica pautada na alegação de que seu uso poderia “punir” o litigante pelo fato de não dispor de recursos, na realidade, pareça partir de uma incompreensão sobre sua estrutura e seus propósitos. É precisamente para isso que ela não serve, sob pena de se mostrar processualmente inútil;

(4) assim, nem mesmo em teoria seria justificada a aplicação de medidas coercitivas em prejuízo ao devedor que sequer em aparência possui condições financeiras. Seria para situações diversas, nas quais essa aparência se manifestasse, que o preceito possuiria vocação.

Ora, como admitir que alguém que afirma não dispor de recursos realize periódica e comprovadamente compras voluptuárias? É razoável supor que determinado devedor de obrigação, injustificadamente, circule com carros de alto valor ou adquira viagens internacionais? Como esses elementos se articulam com a seriedade e com a credibilidade da atividade jurisdicional?

Consideramos que as perguntas são meramente retóricas. De todo modo, é importante notar que a rejeição peremptória das medidas atípicas, fatalmente, conduziria o processo civil brasileiro a esse incômodo resultado.

É por força desse pano de fundo que, como sinalizado, o Superior Tribunal de Justiça elencou como requisito indispensável para aplicação da técnica a existência de indícios de que o devedor possuiria patrimônio penhorável; de que disporia de meios para fazer frente à obrigação. Contudo, ao lado desse elemento, passou a também destacar que seria condição essencial para que se recorresse à atipicidade um possível esgotamento das vias típicas. Como consequência, consideramos que o que estaria sendo exigido, embora reflexamente, corresponderia: (1) de um lado, à ausência de patrimônio regularmente expropriável; e, (2) de outro, à existência de elementos materiais militando em sentido contrário.

De que maneira, contudo, esse raciocínio mais amplo demonstraria a desnecessidade de que o emprego do mecanismo fosse subsidiário? Por qual motivo esse pano de fundo poderia conduzir ao esvaziamento desse requisito?

As respostas nos parecem claras ao colocarmos em perspectiva o único propósito que poderia justificar o parâmetro da subsidiariedade: o fato de o exaurimento infrutífero das vias ordinárias demonstrar a inexistência de patrimônio expropriável; de comprovar que a execução não poderia ser satisfeita de maneira menos gravosa ao executado. Não é por outro motivo, aliás, que a subsidiariedade sequer abstratamente deveria ser aplicada quando a medida atípica se mostrasse menos gravosa do que as providências típicas [10] — como se daria em casos de fixação de sanções premiais com base no artigo 139, inciso IV [11].

Ocorre que, sendo esse o aspecto determinante, nada parece impedir que o exequente demonstre sua potencialidade já de início, valendo-se de outros meios de prova. E, nessas circunstâncias, impor sua sujeição ao esgotamento de providências típicas sabidamente infrutíferas representaria, a um só tempo: (1) depositar sobre a parte um fardo inútil; e, (2) onerar imotivadamente o próprio Judiciário.

O raciocínio pode ser compreendido por meio de um exemplo: imaginemos que, em sede de cumprimento de sentença, o credor toma ciência de que o executado (que ostenta sinais de riqueza) ocupa o polo passivo de outro feito na mesma comarca. Mais que isso, identifica que, nesse segundo processo, há recentes e reiteradas tentativas de expropriação patrimonial, pelas inúmeras plataformas cabíveis. Entretanto, todas elas possuem retorno negativo, atestando uma possível ausência de bens.

Ora, diante dessa moldura, a demonstração da natureza potencialmente infrutífera das medidas típicas não seria o bastante para evidenciar a inutilidade de seu uso?

Consideramos que, de fato, inexistiria maior motivação para que nessa hipótese um eventual esgotamento prévio fosse exigido [12]. Pelo contrário, fazê-lo seria ignorar a própria escassez de recursos da máquina judiciária, além de negar tutela jurisdicional ao credor — por sujeitá-lo a um percurso sabidamente inócuo [13]. Ato contínuo, ainda que se defendesse que a técnica estaria sujeita a um critério de subsidiariedade, deveria se tratar, no máximo, de uma subsidiariedade mitigada.

O ponto, enfim, pode ser assim sintetizado: (1) se a subsidiariedade se prestaria a evitar um gravame desnecessário ao devedor; (2) o esgotamento prévio soaria dispensável caso o credor, antecipadamente, fosse capaz de demonstrar a potencial inefetividade das medidas típicas. Afinal, não é demais lembrar que o cânone da menor onerosidade exige que, entre as medidas efetivas, adote-se aquela menos prejudicial ao executado. Isso, porém, não abarcaria providências despidas de efetividade.

Perceba-se que o exemplo aqui trazido, ligado ao potencial diagnóstico da situação de ausência de bens em processos diversos, corresponde a somente um dos elementos de prova que poderia servir para esse fim. A questão vai além, conduzindo a um raciocínio avaliativo que deve ser constante. Em última análise, trata-se de evitar que uma técnica voltada a aprimorar o resultado material do processo seja submetida a requisitos que apenas protelam a proteção jurisdicional; a evitar mais essa patologia, em prejuízo à efetividade.

Gustavo Osna é advogado, professor do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB) e do programa de graduação em Direito da UFPR, doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR, mestre em Direito das Relações Sociais e bacharel em Direito pela UFPR e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

Consultor Júridico

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