Gustavo Pereira: A culpa da vítima nos golpes do Pix

Para uma breve introdução, em 2020, a ferramenta de transferência de recursos conhecida como Pix foi lançada no mercado brasileiro, conforme a Resolução BCB nº 1 de 12 de agosto de 2020 [1]. Esta ferramenta permite que pessoas físicas e jurídicas realizem transferências instantâneas de recursos financeiros por meio de uma conta corrente, conta poupança ou conta de pagamento pré-paga em uma das várias instituições aprovadas pelo Banco Central.

O Pix rapidamente se estabeleceu como a principal ferramenta para transferências de recursos e pagamentos entre os brasileiros [2], substituindo métodos tradicionais ainda em uso, como TEDs, DOCs e cartões de débito.

Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Paralelamente ao avanço do Pix, observa-se a criação de centenas de instituições financeiras, também conhecidas como Fintechs. Essas empresas introduziram inovações no mercado financeiro por meio do uso de tecnologia, operando através de plataformas online e oferecendo serviços digitais inovadores no setor. Elas são regulamentadas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) por meio da Resolução 4.656 [3].

Com o surgimento das fintechs no mercado financeiro brasileiro, também emergiram as plataformas de banking as a service. Essas plataformas permitem que empresas interessadas ofereçam produtos e serviços que antes eram exclusividade das instituições bancárias, como, por exemplo, contas digitais, transferências, Pix, pagamentos, entre outros.

O termo “banking as a service”, que pode ser traduzido como “banco como serviço”, refere-se a um modelo que permite a empresas de todos os tamanhos e setores se conectarem diretamente, incluir ou aprimorar produtos e serviços bancários em suas ofertas, utilizando uma infraestrutura bancária já existente.

Em termos simples, através da plataforma banking as a service, uma empresa, mesmo que não seja uma instituição financeira, pode oferecer aos seus clientes serviços financeiros como contas digitais, cartões e transferências via Pix. Essa plataforma é regulamentada pela Resolução n° 4.753/19, emitida pelo Conselho Monetário Nacional [4].   

Com a facilidade de transferir recursos instantaneamente e a digitalização bancária proporcionada pelas instituições online criadas nos últimos anos, os brasileiros começaram a enfrentar um grande número de golpes envolvendo a ferramenta Pix. Isso resultou em um aumento significativo no número de ações judiciais de vítimas buscando ressarcimento dos valores transferidos aos golpistas, bem como indenização por danos morais.

Dentre os golpes mais comuns, amplamente noticiados pela imprensa, estão a oferta de falsos empregos em plataformas renomadas de venda de produtos na internet [5], onde se solicita à vítima o pagamento de taxas via Pix para a liberação de tarefas. Outro golpe comum envolve a criação de perfis falsos em redes sociais, como WhatsApp e Instagram, onde o fraudador se passa pelo proprietário do perfil e solicita ajuda financeira a parentes e amigos [6], pedindo depósitos via Pix.

Uma vez realizada a transferência, a vítima percebe que foi vítima de um golpe e muitas vezes recorre ao Judiciário para tentar obter ressarcimento. Nesses casos, as instituições financeiras onde a vítima possui conta, bem como as instituições que receberam o valor transferido, são frequentemente incluídas como réus. Na maioria das vezes, essas instituições são empresas que oferecem a abertura de contas digitais e prestam o serviço de banking as a service.

Diante desse cenário, conclui-se que o sucesso do golpe ocorre em consequência da conduta negligente e, muitas vezes, da própria avidez da vítima, que é levada a erro por terceiros. É facilmente identificável a ausência da tríade conduta-nexo-dano [7] em relação às instituições financeiras incluídas como réus nessas ações. Nesse contexto, aplica-se o artigo 14, §3º, II do Código de Defesa do Consumidor, que estabelece:

“Artigo 14 O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. (…)

§3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:

I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;

II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.”

Se a vítima, de forma voluntária e sem qualquer vício de consentimento, faz a transferência de valores para uma pessoa sem tomar os cuidados básicos necessários, especialmente considerando a ampla divulgação de notícias sobre o assunto, então claramente se caracteriza a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro, conforme tipificado no inciso II mencionado anteriormente.

Além disso, com base no princípio da boa-fé objetiva, previsto nos artigos 113 e 422 do Código Civil [8], a vítima não deveria acreditar em promessas ou solicitações de auxílio feitas por terceiros que envolvam depósitos em dinheiro via Pix.

Além disso, diante do cenário descrito, é possível identificar que se trata de um caso típico de fortuito externo (fraude perpetrada por golpista), sem falha na prestação de serviços por parte da instituição financeira. Isso exclui a aplicação da Súmula nº 479 do Superior Tribunal de Justiça [9].

Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo já se posicionou:

“Responsabilidade civil  Prestação de serviços bancários  Indenizatória de danos materiais e reparatória de danos morais  Transferência de dinheiro via Pix comandada voluntariamente pelo consumidor  Súmula 479 do E. STJ  Responsabilidade objetiva das instituições financeiras  Golpe praticado por terceira pessoa, que, pelo Whatsapp, passando-se por amigo da vítima, solicitou a transferência  Artigo 14, §3º, incisos I e II, do CDC  Ausência de prova de participação do banco para a consecução da fraude – Inexistência de falha na prestação dos serviços bancários – Culpa exclusiva da vítima ou de terceiros  Rompimento do nexo de causalidade  Improcedência do pedido que se impõe  Recurso provido”. (TJ-SP – AC: 10578679020218260100 SP 1057867-90.2021.8.26.0100, relator: Gil Coelho, Data de Julgamento: 27/05/2022, 11ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 27/05/2022).

Portanto, diante de tudo que foi exposto e da inequívoca culpa exclusiva da vítima e de terceiros, que causaram o infortúnio sem qualquer intervenção ou possibilidade de controle da instituição financeira, conclui-se que esta está totalmente isenta do dever de indenizar.

Gustavo Mosso Pereira é advogado sênior no GHBP Advogados e MBA em Direito Empresarial pela Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação (ESAMC).

Consultor Júridico

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