Henares Neto: LC 190/22 e a decisão no Tema 1.093

Retomamos a apresentação de análise sobre o ICMS Difal, a LC 19/22, a relação entre as ADIs 7.066, 7.070 e 7.078 e a decisão do STF no tema 1093.

2. Aplicação do Princípio da Anterioridade: inteligência da remissão contida no artigo 150, III, “b” e “c”, e vinculação à ratio decidendi da decisão do STF no Tema 1093 de Repercussão Geral como requisito de coerência e segurança jurídica do ordenamento constitucional

Se a LC nº 190/2022 instituiu tributação nova, e foi publicada em 5 de janeiro de 2022, ela somente deve, em atenção ao Princípio da Anterioridade, inserto no artigo 150, III, “b” e “c” da CF/88, e ao disposto no artigo 3º da própria LC nº 190/2022, produzir efeitos e legitimar a cobrança do ICMS Difal a partir de janeiro de 2023.

Dois aspectos, basicamente, concorrem, de forma inexorável, para essa assertiva:

a) O princípio da anterioridade proíbe que a norma, que institui ou majora tributo, tenha eficácia no mesmo ano financeiro em que publicada e não antes de 90 dias, a partir da sua publicação. A remissão da alínea “c” à alínea “b” do artigo 150, III, da Constituição, deve ser entendida como cláusula de reforço da cláusula da anterioridade, a fim de garantir que a lei, de fato, produza efeitos não antes de 90 dias e apenas em exercício financeiro seguinte ao que se deu a sua publicação. Não se deve perder de vista que a remissão é uma técnica legislativa em que um dispositivo legal faz referência a outro de modo a completar o sentido da norma, promovendo-se um vínculo entre os dispositivos. Com efeito, diante de uma remissão, a norma jurídica depende do auxílio dos dispositivos mencionados para adquirir sentido, caso contrário não oferecerá o comando adequado.

Quando a Constituição desejou que o prazo para eficácia da norma exacional fosse apenas o nonagesimal, excluindo a anterioridade de exercício fiscal (anterioridade mitigada), ela o fez expressamente, como no caso das contribuições previdenciárias, expressamente instituído pelo § 6º do artigo 195, da CF/88.

A criação de novo liame obrigacional, e, consequentemente, a necessidade de observância ao princípio da anterioridade, é tão evidente que está estampada na própria LC nº 190/23, quando, em seu artigo 3º, expressamente estipula que se deve aplicar o princípio da anterioridade, reproduzindo o mandamento do próprio texto constitucional:

“Art. 3º. Esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua publicação, observado, quanto à produção de efeitos, o disposto na alínea ‘c’ do inciso III do caput do art. 150 da Constituição Federal.

a1) Da dimensão da não surpresa e da necessidade de previsibilidade inerentes ao Princípio da Segurança Jurídica

Quando estamos tratando do assunto relativo à anterioridade do Difal, apesar de o eixo central da discussão fixar-se, acertadamente, sobre o Princípio da Anterioridade, devemos ter em mente que figuram como pano de fundo da matéria temas extremamente caros aos contribuintes: segurança jurídica e limitação constitucional ao poder de tributar. Ambos são garantias dos contribuintes, que estão na base da pesquisa adequada sobre o sentido e alcance que deve ter, no caso, o Princípio da Anterioridade (artigo 150, III, “b” e “c”, da CF/88), sobretudo ante o fato de a LC nº 190/2022 ter sido publicada e ter instituído e majorado, no mesmo exercício financeiro, novas obrigações tributárias aos contribuintes de ICMS nas operações de venda de mercadorias para consumidores finais não-contribuintes localizados em outros estados do Brasil.

“A interpretação da remissão, acima destacada, como cláusula de reforço da anterioridade é muito mais consentânea com a sua inserção nos dispositivos que tratam da limitação constitucional ao poder de tributar do que, a contrario senso, um arrefecimento da regra anterioridade, possibilitando a sua mitigação onde não está, de fato, autorizado.

O STF já teve a oportunidade de analisar essa correlação dos temas e o fez muito bem, nesses termos:

O postulado da anterioridade em matéria tributária, além de traduzir insuperável limitação jurídica ao poder de tributar do Estado, representa expressiva garantia de caráter individual que compõe o estatuto constitucional do contribuinte (RTJ 151/755-756), qualificando-se, por isso mesmo — consoante adverte o magistério jurisprudencial desta Suprema Corte (RTJ 83/501) —, como instrumento destinado a impedir que o sujeito passivo da obrigação fiscal venha a ser surpreendido pela imediata aplicabilidade e incidência de leis que tenham (a) instituído tributos novos ou (b) majorado espécies tributárias já existentes. […].”
[RE 240.266, rel. min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. min. Maurício Corrêa, voto do ministro Celso de Mello, P, j. 22-9-1999, DJ de 3-3-2000].

Como há criação, inovação e instituição de aspectos relacionados à regra matriz de incidência tributária do ICMS, no que pertine às operações interestaduais para consumidores finais não-contribuintes do imposto, é preciso que o contribuinte do imposto tenha tempo de reação e adequação (jurídica, contábil e financeira) ao novo regramento estatuído pela legislação (LC nº 190/2022). O que está em jogo é a capacidade de resposta do contribuinte à nova sistemática tributária; a necessidade de que o ordenamento jurídico lhe garanta um mínimo de previsibilidade, proibindo mudanças abruptas na lei impositiva. A finalidade é dar guarida à segurança jurídica, na sua dimensão de não surpresa e de previsibilidade razoável.

Antes, as leis tributárias eram feitas e publicadas ao apagar das luzes do exercício financeiro, de modo que a garantia formal da anterioridade anual não protegia o contribuinte dessas indesejáveis surpresas. A inserção, pela EC nº 42/03, da remissão contida no inciso III do artigo 150 da Constituição, se deu, justamente, em razão disso, permitindo que o contribuinte, em hipótese alguma, tivesse menos de 90 dias para se adaptar à nova lei tributária, mesmo que sua publicação se desse no apagar das luzes do ano fiscal anterior.

Essa situação é, sem embargo, mais protetiva ao direito do contribuinte, pois limita com efetividade o poder de tributar do fisco, daí a inteligência dessa remissão.

“A anterioridade está diretamente ligada à previsibilidade, publicação e eficácia da lei, ao ato de conhecer e se preparar cumpri-la adequadamente. A lei tem que ser criada, sancionada e publicada para se aperfeiçoar, ter existência no mundo jurídico e eficácia, entendida como aptidão para gerar efeitos jurídicos. A regra da anterioridade incide nesta etapa, relativa à eficácia, protraindo-a para o exercício seguinte ao da sua publicação, sempre que houver instituição ou majoração de tributo, dando tempo e previsibilidade razoável ao contribuinte.”

b) Vinculação à ratio decidendi da decisão do STF no Tema 1.093 de Repercussão Geral como requisito de coerência e segurança jurídica do ordenamento constitucional

O STF, ao julgar o Tema 1.093 de Repercussão Geral, entendeu por bem que o Convênio nº 93/2015 não estava apto a instituir a cobrança do Difal, proclamando a necessidade de lei complementar, e o fez sob o fundamento precípuo de que se estava diante de hipótese de fixação de normas gerais de direito tributário, especialmente sobre sujeito ativo e novos aspectos temporais e quantitativos do fato gerador da obrigação tributária, a demandar a instituição por lei complementar. Resta claro, portanto, que houve entendimento de que se estava diante de hipótese de instituição e criação de nova relação jurídica.

Com efeito, toda a questão acerca da necessidade de regulamentação do Difal por Lei Complementar surgiu por força do julgamento do Tema 1.093 (RE 1.287.019), ocasião na qual o STF entendeu que o Convênio Confaz nº 93/2015 não seria instrumento apto a instituir a cobrança do Difal para consumidores finais não-contribuintes do ICMS. Até o julgamento do Tema 1093 pelo STF, a cobrança do diferencial de alíquota nas operações interestaduais, envolvendo consumidores finais não-contribuintes, possuía supedâneo tão somente no referenciado Convênio. Por ocasião do julgamento do leading case, a Suprema Corte entendeu pela necessidade da edição de Lei Complementar para legitimar a cobrança do ICMS Difal, em decorrência da verificação de que se veiculava normas gerais de Direito Tributário, especialmente sobre sujeitos e base de cálculos do fato gerador do ICMS nesta espécie de incidência (operações para consumidores finais não contribuintes localizados em outro estado).

Desse modo, somente em 5 de janeiro de 2022, dia da publicação da Lei Complementar nº 190 de 2022, que alterou a Lei Kandir (Lei Complementar nº 87 de 1996), houve, de forma institucional e formal, a criação de nova relação jurídica apta a regulamentar a cobrança do ICMS nas operações interestaduais destinadas a consumidor final não-contribuinte do imposto.

Ademais, o Tema 1.093 foi submetido à modulação de efeitos por parte do STF, de modo que o referido precedente passou irradiar efeitos no mundo jurídico somente a partir de janeiro de 2022. Dessa modulação, é possível extrair duas conclusões inafastáveis:

  • Os estados e o Congresso Nacional tinham tempo hábil de resposta para propositura da Lei Complementar antes do término do exercício de 2021 — o julgamento do mérito se deu em 24/02/21, a publicação do acórdão em 25/05/21 e a Lei Complementar exigida a partir da decisão (10/22) veio à publicação apenas em 05/01/2022; e
  • A exigência/cobrança do referido diferencial de ICMS só não restou invalidada para os exercícios de 2015 a 2022 (sete anos de possível indébito) por conta da referida modulação de efeitos realizada pela Corte Suprema.

Em outras palavras, por meio da modulação dos efeitos, o STF possibilitou um prazo razoável para que o Congresso Nacional regularizasse a questão. Da mesma forma, a modulação não permitiu o direito de restituição pelos contribuintes do Difal indevidamente pago a partir de 2015. Tal fato, por si só, afasta também, em grande medida, os argumentos postos pelos estados, notadamente o estado de Alagoas no âmbito da ADI 7.070, que argumenta com todas as tintas que o Difal estava sendo cobrado desde 2015.

Em conclusão, nos parece óbvio que não faria sentido submeter a nova relação jurídica à necessidade de lei complementar que, por sua vez, busca evitar conflitos ao estabelecer limites na justa medida ao poder de tributar, sem lhe acoplar a inerente garantia constitucional da anterioridade. Somente após o advento da publicação da LC nº 190/2022 se pode falar em válida instituição de nova relação jurídico-tributária, hábil a atrair a anterioridade e a conferir, por consequência, eficácia plena ao modelo previsto para a cobrança do ICMS Difal, desde a EC nº 85/2015, que alterou o artigo 155, § 2º, VII, da CF/88.

Acerca da necessidade de consonância e coerência entre a matéria discutida na decisão do Tema 1.093 de Repercussão Geral, e aquela tratada nas três ADIs, ambas perante o STF, entendemos que a despeito de não haver absoluta vinculação entre os fundamentos utilizados nas referenciadas ações, por diversidade de causa de pedir e pedido, é inegável que existe direito subjetivo do contribuinte, sobretudo em matéria sujeita ao controle concentrado de constitucionalidade (ou repercussão geral, com efeitos “ultra partes”) de que a função jurisdicional se concretize de modo a lhe conferir segurança jurídica.

A função jurisdicional se concretiza por meios de atos, fases e momentos, ocorridos no bojo de um processo, que é uma sucessão encadeada de atos e fases que devem guardar conexão e racionalidade entre si.

Essa sedimentação e nexo de causalidade no processo de tomada de decisão sobre o Difal é que conferirá segurança jurídica ao contribuinte e as partes, sobretudo quando um sistema de precedentes vinculantes ou controle concentrado de constitucionalidade, como é o caso.

A vinculação, ao que foi decido antes pelo STF (RG 1.093), e pelo próprio STF agora (ADIs 7.066, 7.070 e 7.078) é base racional e lógica para tomada de nova decisão. Quando se decide que teria de haver lei complementar porque haveria instituição de nova relação jurídica e aspectos inerentes ao fato gerador do tributo (Tema 1.093), deve-se, agora, atribuir o efeito concebido pelo ordenamento a essa proclamação/decisão, que é a proteção de que novas relações jurídicas somente sejam criadas ou majoradas levando em conta o princípio da anterioridade, na sua plenitude. Essa situação é imperativo do princípio da confiança e da racionalidade que estão na base do princípio da segurança jurídica e do devido processo legal em sentido material, como princípio da justa medida e razoabilidade e logicidade, que requer que a concretização das funções de estado seja razoáveis, lógicas e racionais, coibindo o indesejável paradoxo entre decisões contraditórias ou assimétricas sobre aspectos conexos de um tema ou matéria, decidido por uma mesma Corte Superior, em um curto espaço de tempo e relacionados à mesma imposição tributária, à sua configuração e momento de deflagração de seus efeitos (ratio decidendi — elementos e fundamentos da decisão), ainda que exaradas em processos separados e com causa petendi distinta.

A LC nº 190/22 faz isso: reconfigura aspectos do fato gerador do ICMS, estipula momento de deflagração desta configuração (artigo 3º). No Tema 1.093 se discute se a mesma Lei Complementar 190/22 é necessária como pressuposto formal para instituição do Difal. Nas três ADIs mencionadas, se discute a partir de que momento essa instituição pela Lei Complementar 190/22 produz efeitos para possibilitar a efetiva cobrança do Difal. Claro, portanto, a vinculação da ratio decidendi da decisão do STF no Tema 1.093 de Repercussão Geral e nas precitadas ADIs, fazendo-se necessária que guardem coerência em relação aos basilares pressupostos como requisito de coerência e segurança jurídica do ordenamento constitucional.

Halley Henares Neto é advogado em São Paulo, sócio titular da Henares Advogados, presidente da Associação Brasileira de Advocacia Tributária (Abat), especialista em Direito Tributário pela Ceeu-SP e membro do Conselho Superior de Direito da Fecomercio.

Consultor Júridico

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