Inconstitucionalidade da ‘contribuição’ do Fundeinfra em Goiás

Como é de conhecimento, o governo de Goiás instituiu, por meio da Lei nº 21.670/2022, a “contribuição” destinada ao Fundo Estadual de Infraestrutura (Fundeinfra).

Entre as receitas para referido fundo (artigo 5º), estaria a “contribuição exigida no âmbito do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) como condição para: a) a fruição de benefício ou incentivo fiscal; b) o contribuinte que optar por regime especial que vise ao controle das saídas de produtos destinados ao exterior ou com o fim específico de exportação e à comprovação da efetiva exportação; e c) o imposto devido por substituição tributária pelas operações anteriores ser: 1. pago pelo contribuinte credenciado para tal fim por ocasião da saída subsequente; ou 2. apurado juntamente com aquele devido pela operação de saída própria do estabelecimento eleito substituto, o que resultará um só débito por período”. Ela seria cobrada “em percentual não superior a 1,65% (um inteiro e sessenta e cinco centésimos por cento) sobre o valor da operação com as mercadorias discriminadas na legislação do imposto; ou por unidade de medida adotada na comercialização da mercadoria”.

Entre os produtos eleitos para sofrerem a incidência de referida contribuição estão quase que, exclusivamente, aqueles relacionados ao setor do agronegócio, como se pode notar pelo Anexo XVI, do Regulamento do Código Tributário de Goiás (RCTE) conforme alteração pelo Decreto nº 10.187/2002:

“Anexo XVI

PERCENTUAL DE CONTRIBUIÇÃO POR MERCADORIA PARA FUNDO ESTADUAL DE INFRAESTRUTURA (FUNDEINFRA), INSTITUÍDO PELA LEI Nº 21.670, DE 6 DE DEZEMBRO DE 2022″.

ITEM

MERCADORIA

% CONTRIBUIÇÃO FUNDEINFRA

1

Cana-de-açúcar

1,2%

2

Milho

1,1%

3

Soja

1,65%

4

Carne fresca, resfriada, congelada, salgada, temperada ou salmourada, e miúdo comestível resultante do abate de gado bovino ou bufalino

0,50%

5

Gado bovino e bufalino

0,50%

6

Amianto; ferroliga; minério de cobre e seus concentrados; ouro, incluído o ouro platinado

1,65%

Esse tema ganhou ainda mais relevância diante de recente ajuizamento de ações diretas de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal pela Confederação Nacional da Indústria (ADI 7.363) e Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Apeosoja) Brasil (ADI 7366), ambas de relatoria do ministro Dias Toffoli, o qual, deferiu liminar na primeira para “ad referendum do Plenário, para suspender a eficácia do art. 5º, I e parágrafo único, da Lei nº 21.670/22”.

Em nossa visão, esta exigência que grava sobremaneira os produtos do agronegócio possui diversos vícios de inconstitucionalidade, em especial: 1) viola os direitos fundamentais voltados à segurança alimentar, bem como a imposição constitucional do artigo 187, I, que determina e ordena que o Estado irá fomentar e promover o setor, inclusive, por meio de incentivos fiscais, o que se tem feito é exatamente o oposto; 2) trata-se de um tributo disfarçado por suposta voluntariedade, que não observa diversos limites constitucionais; 3) ao ter como alvo principal, onerando produtos específicos agropecuários, desrespeita à igualdade; 4) a lei, ao delegar, sem limites e parâmetros, ao decreto a eleição dos produtos e o percentual da contribuição, descumpre a legalidade; 5) onera os produtos destinados à exportação, o que está em total descompasso com o preconizado no texto constitucional no sentido de não gerar de qualquer forma, direta ou indireta, tais formas de exações; 6) não respeita os limites estabelecidos no Convênio Confaz 42/2016; 7) revela nítido de desvio de poder da atividade legislativa, uma vez que busca, por subterfúgios, como a expressão “contribuição” e a facultatividade, burlar o rígido sistema tributário constitucional, que estabelece diversas formas de limitação ao exercício da competência tributária.

Neste breve texto, pretendemos, sinteticamente, tratar de questão complexa e polêmica, que se refere à natureza jurídica de tributo da “contribuição” destinada ao Fundeinfra.      

A principal justificativa do Estado goiano para sustentar que não seria um tributo decorre da suposta facultatividade.

Isto porque, em tese, poderia os contribuintes em tais operações, deixar de optar pelo recolhimento da contribuição.

Com isso, sendo a compulsoriedade um dos elementos para se configurar a natureza de tributo, na medida em que este consiste em “toda prestação pecuniária compulsória”, na dicção do artigo 3º, do Código Tributário Nacional, convém traçar nossas considerações.

É comum e reiterado o esclarecimento da doutrina no sentido de que esta compulsoriedade resultaria de uma obrigação que decorre de lei (“ex lege”), sendo que a ocorrência do fato gerador ou incidência tributária independe da autonomia da vontade das partes.

De fato, este pode ser um ponto de partida, todavia, não resolve questões complexas e contemporâneas, principalmente, quando se tem o Poder Público sedento por novas receitas.

Nos parece que a atualidade nos impõe novas meditações a respeito da noção de tributo, uma vez que esta visão pode sofrer mudanças e ajustes ao longo do tempo.

Ora, a natureza tributária de uma exigência estatal há de ser extraída a partir de uma visão que leve em consideração não somente esta ser resultante de lei, mas também da coatividade ou coerção estatal, por meio do exercício de um poder de império ou ato de autoridade, gerador de uma obrigação pecuniária com vínculo jurídico de direito público.

Há de se atentar ao fato de que, em diversas ocasiões, a aparente voluntariedade, faculdade ou opção detida pelo contribuinte, em verdade, não retira, dentro do contexto normativo, a noção de compulsoriedade, que impõe entre ele e o Estado um vínculo jurídico de direito público, onde a ocorrência do fato jurídico tributário continuará a decorrer da lei, gerando uma obrigação pecuniária que não permite às partes, por sua pura e exclusiva vontade (como ato de liberdade  ou autonomia), furtar-se aos efeitos legais.

Até porque, existem situações, inclusive, no texto constitucional, que são regimes optativos e voluntários, mas que não perdem a natureza jurídica tributária, sendo possível citar o artigo 146, III, “d”, da Constituição que cuida do Simples Nacional.

No caso do Fundeinfra, nos parece que referida “contribuição” não deixa de ter a característica de advir de uma lei, mediante coerção Estatal, no exercício de atos de autoridade ou império, gerando uma obrigação pecuniária com vínculo de direito público.

O que revela, notadamente, traços de compulsoriedade e de natureza tributária.

Esta contribuição denota típico tributo oculto ou disfarçado, tendo certa similitude com um adicional de imposto, mais especificamente, o ICMS (artigo 155, II, CF).

A natureza tributária, que se pretende ocultar ou disfarçar, a fim de fugir às limitações do sistema tributário constitucional, decorre de inúmeros aspectos ou razões.

A uma. O artigo 5º, da Lei nº 21.670/2022, assevera que esta contribuição será exigida no “âmbito” do ICMS. Com isso, temos evidente demonstração de que há acessoriedade ao imposto, cingindo a este.

A duas. Todas as alterações da legislação ocorreram em sede de atos tipicamente de natureza tributária envolvendo o ICMS, como por exemplo, o Código Tributário de Goiás.

A três. A estrutura criada para a incidência da contribuição está relacionada ao “valor da operação com mercadorias”, em total similitude com o ICMS, previsto no artigo 155, II, da Constituição Federal. A regra matriz da contribuição ao Fundeinfra e do ICMS são de igual identidade, com a diferença de que aquela tem destinação específica e o imposto, até por impedimento constitucional, não possui.

A quatro. Apesar de, artificialmente, estipular uma opção, não há voluntariedade, uma vez que, ao se analisar todo o contexto normativo, não é possível identificar um verdadeiro e típico ato de vontade, capaz de sua eventual opção (alternativas — escolhas) resultar em uma sanção premial. Como já exposto, ao exemplificar a hipótese do Simples Nacional, podemos notar que ambos os caminhos decisórios levam à exigência e pagamento ao Estado de um montante sobre o valor da operação, dada a plena identidade entre as exações, havendo nítida compulsoriedade por via oblíqua. Deste modo, a suposta condição é meramente formal, sendo nitidamente artificial, não se revelando em uma verdadeira escolha do contribuinte (ato voluntário) capaz de gerar sanção premial.

A cinco. O texto legal da contribuição traz características de compulsoriedade, uma vez que se utiliza do longo da legislação os termos “exigida”, “cobrada”, “deve ser recolhida”, sendo formas de exteriorizar um viés nitidamente compulsório.

Não obstante, todas as ponderações acima descritas, poder-se-ia sustentar que esta contribuição se assemelha ao Fundersul, cuja natureza, em tese, não seria tributária, segundo STF [1].

Juntamente com o fato de que este tema merece reflexão e análise atual e profunda do Supremo, efetivamente, existem elementos de distinção entre elas (“distinguishing”), desde a estrutura de incidência e cobrança, vinculação desta com institutos como a imunidade tributária na exportação (que é objetiva e incondicionada), isenção, substituição tributária, lembrando ainda que o Fundersul tratou de diferimento puro. O Fundeinfra, como brevemente exposto, tem nítido caráter compulsório, envolvendo-se umbilicalmente com o ICMS.

Ademais, importante lembrar que, em decisão mais recente, o próprio STF, por seu Pleno, reconheceu a natureza tributária à taxa, caracterizando-a como compulsória, a ser recolhida para fins de gozo de incentivos fiscais:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. EXAÇÕES PAGAS À SUPERINTENDÊNCIA DA ZONA FRANCA DE MANAUS – SUFRAMA. NATUREZA JURÍDICA DE TAXA. INSTITUIÇÃO POR MEIO DE PORTARIA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 24 DO DECRETO-LEI N. 288/1967 NÃO RECEPCIONADO. 1. Taxa e preço público diferem quanto à compulsoriedade de seu pagamento. A taxa é cobrada em razão de uma obrigação legal enquanto o preço público é de pagamento facultativo por quem pretende se beneficiar de um serviço prestado. 2. A Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa) exerce atividade afeta ao Estado em razão do disposto no artigo 10 do Decreto-Lei nº 288/1967, e as exações por ela cobradas são de pagamento compulsório por quem pretende se beneficiar dos incentivos oferecidos pelo Decreto-Lei nº 288/1967, tendo, assim, natureza de taxa. 3. O parágrafo único do artigo 24 do Decreto-Lei nº 288/1967, que autoriza a Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa) a instituir taxas por meio de portaria contraria o princípio da legalidade e, portanto, não foi recepcionado pela Constituição da República de 1988” [2].

Não deixava de ser referida exigência um pagamento facultativo a quem tivesse pretensão de gozar de um incentivo fiscal, todavia, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a compulsoriedade e respectiva natureza tributária.

Em tais condições, nos parece evidente a natureza tributária da “contribuição” goiana destinada ao Fundeinfra, nos termos do artigo 5º, da Lei nº 21.670/2022, e, por conseguinte, sua inconstitucionalidade, pois: 1) como um imposto, há vício por ter destinação específica (artigo 167, IV); 2) como uma contribuição, o Estado Membro não teria competência para institui-la; 3) como taxa, não seria exercício do poder de polícia, muito menos um serviço público divisível e específico, além de ter a mesma base de cálculo do Imposto (ICMS).

Fábio Pallaretti Calcini é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, ex-Membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), professor da FGV Direito SP e Ibet,
sócio tributarista Brasil Salomão e Matthes Advocacia, membro da Abat e um dos representantes desta nas ADIs como amicus curiae.

Consultor Júridico

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