Intermediação, controle e responsabilidade das plataformas

Que plataformas digitais são importantes agentes econômicos na contemporaneidade não há dúvidas; entretanto, parece (ainda) haver questionamentos com relação à sua qualificação para fins de alocação de responsabilidade por eventuais prejuízos sofridos individualmente ou coletivamente, especialmente quando diz respeito ao consumidor e a sua proteção no ambiente online. Isso porque ocorre um certo fetichismo tecnológico, sendo lugar-comum argumentos como “não comercializam nada”, “tão somente fazem intermediação entre fornecedores e consumidores” e “não vendem nenhum produto a ninguém”.

A existência dessa perigosa tendência interpretativa pode ser um entrave à harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e à compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico (artigo 4º, III, CDC), notadamente quando o interesse em causa é a saúde do consumidor. Um exemplo emblemático foi o recente julgamento de improcedência da Ação Civil Pública ajuizada em face da plataforma Rappi, em virtude de irregularidades decorrentes da venda de produtos e dispositivos eletrônicos relacionados ao fumo (Ação Civil Pública nº 0217374-72.2022.8.19.0001).

Os argumentos trazidos no início, por ocasião de serem acolhidos em juízo, causam certa estranheza, pois servem de subterfúgio para que se afaste a aplicação da disciplina do Código de Defesa do Consumidor quando efetivamente há, nestas relações, consumidores, demonstrando um pretenso ajuste entre a realidade e a retórica, de um lado, e um desajuste — inclusive dogmático — entre a realidade e o Direito, de outro — o que é conhecido como sharewashing [1] nas dinâmicas da economia do compartilhamento e como blue e greenwashing no que tange ao consumo sustentável e sua intersecção com o Direito Ambiental.

A pergunta Um app ou um fornecedor?” retoma aqui a importância, devendo ser resgatada e novamente respondida. É de se ter em mente que plataformas que operam pela lógica multipontas, pela sua própria natureza, interligam diferentes usuários interessados (mediante conexidade contratual) em uma finalidade em comum para a obtenção de um resultado prático, que varia de prestação de serviços, em um dos vértices deste triângulo, e o consumo, noutro vértice, sendo que o gerenciamento de toda a relação está no vértice superior, posição esta ocupada pela plataforma que possui os meios necessários e os instrumentos propícios para garantir a qualidade do ofertado, a confiança dos consumidores e prestadores de serviços e a segurança nas transações — mormente pelo tratamento de dados dos envolvidos e pela emanação de comandos, punições, bonificações e estipulações unilateralmente postas pela plataforma.

Nesse aspecto, a qualificação jurídica de plataformas deve se distanciar da maneira como elas querem parecer ser (meros portais intermediadores sem nenhuma ingerência nas relações subjacentes) e se basear no que realmente são (fornecedoras integrantes da rede de fornecimento/empregadoras) naquela relação que está sob exame (de consumo/de emprego/autônomo). Isto porque a atuação das plataformas pode variar de passivas (como meros anúncios) a extremamente ativas (apenas delegando parte de seu serviço essencial a um prestador direto, sendo todo o resto definido e levado a cabo pela plataforma, como a Uber), assim como a disciplina legal pode rapidamente diferir em função das características subjetivas e da atuação da parte eventualmente lesada [2].

No que tange à argumentação de que plataformas são meros espaços intermediadores de transações e que, portanto, não estão inseridas nos negócios entabulados entre as outras partes, há de se destacar que há legislação no Brasil que dispõe acerca do uso de softwares (Lei do Software — Lei 9.069/1998). Entendidas as plataformas como softwares [3], seu uso é possibilitado à distribuição mediante licença de uso, a qual se presume onerosa pelo motivo de que está no âmago da atividade empresarial a busca pelo lucro. Desse modo, a receita de uma plataforma deveria ser o recebimento dos royalties e publicidade — além, é claro, da colheita de dados pessoais.

Todavia, nas dinâmicas na internet plataformizada não é exatamente isto o que ocorre. No exemplo da Rappi, consta nos termos e condições de uso que a operadora outorga o acesso ao aplicativo de forma gratuita, para que o entregador entre e concorra em um mercado virtual e o consumidor adquira produtos de seu interesse. Remunerações, desta maneira, além do valor econômico de dados, são identificados pelas relações de consumo que ali se estabelecem a título de possibilitação do negócio na forma de taxas ou comissões, por exemplo.

Assim, não há como se admitir que plataformas em geral atuem no mercado apenas como empresas de tecnologia que oportunizam encontros e que, por isso, estão livres de quaisquer responsabilidades mediante seus colaboradores e consumidores.

Plataformas, sejam elas quais forem, são, sim, fornecedoras [4] — de seus serviços e, a depender do grau de ingerência que exerça no que seja pactuado entre as partes subjacentes ao seu modelo de negócios, que muitas vezes determina por si e unilateralmente todas as suas condições (de preços a contratos), também será fornecedora das relações jurídicas que viabiliza, submetendo-se ao regime jurídico aplicável e pertinente. Daqui, a comum alegação de ilegitimidade passiva das plataformas nas demandas levadas ao Judiciário cai por terra em determinados casos, devendo ser analisada com extremo cuidado para não desfalcar a proteção constitucionalmente garantida ao consumidor e, ao mesmo tempo, não determinar condenações a quem, efetivamente, não participa da relação que foi efetivamente somente intermediada.

Assim é que um precedente trazido ao caso concreto relatado acima, importado de outro, para lhe servir de parâmetro deve ser criteriosamente analisado, a fim de que não se incorra em impropriedades técnicas. Desse modo, a sentença mencionada, ao utilizar como fundamento precedente relativo à situação diversa que não se adequa aos parâmetros do caso analisado, não levou em conta a necessidade de distinguishing, conforme determina o artigo 489, §1º, VI, do CPC [5]. Assim, não se presta, in casu, para embasar a não aplicabilidade do CDC, pois a base factual é distinta e não se subsume com perfeição ao indicado. No trecho do acórdão mencionado como precedente persuasivo (e não vinculante!) e explicitado no julgado, tratou-se de um “parceiro cadastrado” que desenvolvia atividades econômicas pela plataforma, com um caráter de ou relação de emprego ou de parceria comercial, não sendo alvo a proteção do consumidor em si.

Já a situação levada ao Judiciário pelo Ministério Público do Rio de Janeiro na Ação Civil Pública nº 0217374-72.2022.8.19.0001 tem caráter coletivo, direcionado à plataforma que, no curso de inquérito civil, apresentou indícios de descumprimento de deveres de proteção do consumidor e de sua saúde em relação a produtos fumígenos, sendo totalmente descabida e ilógica a não aplicação Lei que trata justamente da proteção e da defesa do consumidor, também no aspecto difuso, coletivo e individual homogêneo. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro possui arsenal apto para fundamentar, corretamente, a aplicabilidade do CDC nestas dinâmicas, o qual afasta o argumento da mera intermediação das plataformas.

Nesses casos, foi considerado que é justamente a “Atividade de intermediação de negócios jurídicos que as insere na cadeia de fornecimento de bens e serviços” (0034957-32.2018.8.19.0021 julgado em: 27/10/2022), considerando-se a aplicação do CDC “eis que a administradora da plataforma digital, a partir da inserção do serviço de transporte privado no mercado de consumo, integra a cadeia produtiva, atuando ativamente na definição das condições de tal ofício remunerado e, ainda, recebendo correspondente contraprestação. Aplicativo que representa nova forma de interação econômica, caracterizada por uma economia compartilhada (sharing economy), (…) mediante a intermediação com alto grau de intervenção contratual da empresa gestora da plataforma digital, que responde solidariamente pelos danos causados” (0024616-75.2021.8.19.0203 julgado em: 2/2/2023). Com expressa caracterização de sua atuação no mercado de consumo, igualmente já foi reconhecida sua figura como empresa que aufere lucro e possui responsabilidade solidária na cadeia de consumo, em face de eventuais falhas do fornecedor (0000046-46.2022.8.19.0023 Julgado em: 10/11/2022).

Esses três precedentes recentes apontam que uma análise meramente estrutural (o que é) não se mostra mais adequada em todos os casos na contemporaneidade no que tange ao enquadramento jurídico de plataformas, devendo-se adotar uma postura interpretativa funcional (o que faz), no sentido de verificar efetivamente as funções exercidas e as suas consequências nas relações entre consumidores e fornecedores diretos e demais colaboradores. Este parece ser um novo leitmotiv dos tribunais no que tange ao seu dever de uniformizar a jurisprudência, mantê-la estável, íntegra e coerente [6], especialmente aqui considerando a vulnerabilidade dos consumidores, o que vem sendo construído, de modo geral, de maneira bastante positiva e em consonância ao Direito do Consumidor, apesar de entendimentos contrários, sempre passíveis de debate.

O ponto, em relação a produtos fumígenos, ganha relevância por se tratar de mercado que apresenta franco crescimento no Brasil, pois, em que pese tenha havido uma redução do percentual de jovens que já haviam experimentado tabaco até dez anos atrás [7], recente pesquisa do IBGE identificou o aumento de três pontos percentuais entre os anos de 2015 e 2019 [8]. Desse modo, apesar de o país ser considerado referência no combate ao tabagismo [9] — a segunda causa de mortes no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde [10] — é de se estar atento para posicionamentos relativos ao afastamento da vulnerabilidade do consumidor diante deste mercado, que inclui seus “intermediários” (preferimos, todavia, viabilizadores), ao passo que atribui a este o exercício de autonomia da vontade como se todos os demais mecanismos já cientificamente reconhecimentos pela indústria não possuíssem poder de influência em seu consumo.

Neste sentido, “não comercializam nada”,tão somente fazem intermediação entre fornecedores e consumidores” e “não vendem nenhum produto a ninguém” devem ser observados com cautela em referência ao que se postula. Um caso semelhante já foi alvo, em outra oportunidade, do Ministério Público do Estado de São Paulo. A Associação de Controle do Tabagismo, Promoção à Saúde e dos Direitos Humanos (ACT) representou ao órgão justamente pela existência de venda, no Mercado Livre e B2W Digital, de cigarros eletrônicos.

O interessante é que o Conselho Superior do MP-SP [11] destacou que essas empresas têm o dever de assegurar o controle da publicidade em suas plataformas ao observar as vedações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária no que concerne a produtos fumígenos e não somente mediante provocação. Aliás, as próprias empresas afirmaram que possuem meios de controle sobre os produtos que comercializa através de palavras-chave, evidenciando a sua habilidade técnica que desafia a inexistência de um dever de monitoramento por parte das plataformas em relação a seus usuários e o conteúdo por eles gerado [12].

Para finalizarmos, cabe destacar que a proteção do consumidor deve ser não só princípio como um fundamento de qualquer legislação que venha a regular as plataformas digitais, como prevê o Projeto de Lei 2.768/2022. De fato, o principal serviço que é comercializado pela plataforma é a aproximação e o gerenciamento desta aproximação, bem como da relação jurídica subjacente entabulada com todos os indivíduos, mesmo por instrumentos contratuais e práticas tecnológicas que possibilitam uma série de diversificadas funções que se traduzem em organização e controle perante todo o consumo. Em outros termos, o serviço colocado à disposição dos interessados é, além da utilização do algoritmo, o gerenciamento da confiança entre todas as partes, que é pedra de toque do regime de responsabilização do CDC [13].

Neste âmbito, é necessário relembrar a valiosa lição do Superior Tribunal de Justiça sobre contratos de franquia e Direito do Consumidor, a qual deve ser ainda com mais força desenvolvida e aplicada ao ambiente digital: “Extrai-se dos arts. 14 e 18 do CDC a responsabilização solidária de todos que participem da introdução do produto ou serviço no mercado, inclusive daqueles que organizem a cadeia de fornecimento, pelos eventuais defeitos ou vícios apresentados” [14].

Mera intermediação, a depender das funções das plataformas e da ingerência vertical nas relações que viabiliza no caso concreto, é puramente uma falácia cujo intuito é tentar escapar de responsabilidades. O controle que exerce deve ser adequadamente lido como um dever de cuidado, a melhorar a compatibilização de interesses entre os partícipes do mercado de consumo digital.

Novas estruturas das relações de consumo [15] e novos meios de oferta não podem servir de subterfúgio para o enfraquecimento da proteção do consumidor.

Guilherme Mucelin é pós-doutorando em Direito na Universidade Federal Fluminense (UFF), doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), especialista em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais pela UFRGS, em Droit comparé et européen des contrats et de la consommation pela Université de Savoie Mont-Blanc e em Direito do Consumidor pela Universidade de Coimbra, diretor de e-commerce e plataformização das relações humanas do Brasilcon, professor e advogado.

Fabiana Prietos Peres é doutoranda em Direito do Consumidor na Universidade Federal de Pernambuco e em Análise Crítica do Discurso Jurídico na Universidade Católica de Pernambuco, na qual é bolsista Capes/Prosuc/taxa, mestre em Direito do Consumidor e Concorrencial pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pesquisadora na UFRGS, na PUC-RS e na UFF, advogada na Calado & Souza Advocacia, secretária-geral da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-PE e diretora no Brasilcon e na Adeccon.

Consultor Júridico

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