Desde 2020 julgados importantes sobre a matéria do ITBI (Imposto de Transmissão de Bens Imóveis) têm ganhado destaque no universo dos negócios, pois representam a mudança, ou ao menos a possibilidade de mudança, em um cenário que até então era inflexível.
Entre os julgados sobre o tema, chamam a atenção: 1) o julgamento proferido pela Primeira Seção do STJ no REsp nº 1.937.821/SP, afetado à sistemática dos repetitivos [1], que reconheceu a ilegalidade da imposição de base de cálculo para recolhimento do ITBI com base no valor venal dos bens imóveis utilizada para incidência de IPTU e, mais recentemente; 2) a fixação de tese em caráter de repercussão geral pelo STF, Tema 796 [2], que limitou a imunidade em relação ao ITBI (artigo 156, I, §2º da CF) ao capital efetivamente realizado nas sociedades empresárias; 3) o julgamento do incidente de arguição de inconstitucionalidade pelo TJ-DF (acórdão 1684813), que, com apoio da fundamentação constante no voto condutor do RE nº 796.376/SC da tese fixada pelo STF, reconheceu a inconstitucionalidade parcial das normas distritais que afastavam a imunidade das sociedades holding imobiliárias [3].
Esses julgamentos têm em comum a flexibilização da regra de incidência do tributo, que por vezes se revela elevado a ponto de inviabilizar a celebração de negócios.
Na oportunidade do julgamento do REsp nº 1.937.821 – SP, pelo STJ, foram assentadas premissas para respeitar a necessidade de adotar como base de cálculo para tributação o valor de transação declarado pelas partes contratantes: 1) “Os lançamentos por declaração ou por homologação se justificam pelas várias circunstâncias que podem interferir no específico valor de mercado de cada imóvel transacionado, circunstâncias cujo conhecimento integral somente os negociantes têm ou deveriam ter para melhor avaliar o real valor do bem quando da realização do negócio”; e 2) “o fisco não tem como possuir, previamente, o conhecimento de todas as variáveis determinantes para a composição do valor do imóvel transmitido”.
A decisão se apresenta com reverência à liberdade negocial, instituto garantido constitucionalmente, que por diversas vezes é negligenciado, revelando-se importante marco legal, especialmente para o universo dos negócios, destacando-se abaixo cenários de repercussão do decisum.
A controvérsia instaurada sobre a forma de estipulação da base de cálculo para a incidência do imposto de transmissão sobre bens imóveis não é nova, existindo histórico de decisões [4], até então não afetadas por julgados de caráter vinculante como os que resultam de IRDR (976 CPC), inclusive em sentido contrário, validando a utilização da base de cálculo do IPTU para o ITBI.
Na linha de raciocínio para estipulação da base de cálculo sobre o valor venal há amparo do regramento do art. 38 do Código Tributário Nacional (CTN) “Artigo 38. A base de cálculo do imposto é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos”.
No entanto, esse artigo dispõe sobre o arbitramento pela autoridade lançadora, mediante processo regular, enquanto o processo para estipulação da base de cálculo do IPTU se dá por estimativa, sempre que sejam omissas ou não mereçam fé as declarações prestadas pelos contribuintes.
Diante desse dispositivo, tornou-se objeto de discussão a modalidade de lançamento do imposto, por declaração ou por homologação, e o que seria considerado como declaração que merecesse fé.
Por tratar-se de tributo que tem como fato gerador a transmissão da propriedade ou de direitos reais imobiliários ou a cessão de direitos relativos a tais transmissões tem-se como origem à incidência do fato gerador a existência de um negócio jurídico.
Até a fixação da tese constituía parâmetro para a incidência do tributo o valor venal do bem estipulado para cálculo do IPTU ou o valor da transação do negócio jurídico, adotando-se, dentre estes, o maior.
O raciocínio então seguia a ótica de considerar o negócio jurídico que merecesse fé, apenas os que tivessem balizas de negociação em montante superior ao que o fisco atribuía como valor venal para de cálculo do IPTU, com base especulativa, pois estimada, desconsiderando a fé dos demais negócios jurídicos transacionados em montante inferior, mesmo que não contivessem todas as informações do negócio jurídico concreto.
Existem diversos fatores que podem ser desconhecidos pelo fisco e podem potencialmente influir no valor do negócio jurídico, como destacado pelo ministro relator: “Importa ressaltar que, embora seja possível dimensionar o valor médio dos imóveis no mercado, segundo critérios, por exemplo, de localização e tamanho (metragem), a avaliação de mercado específica de cada imóvel transacionado pode sofrer oscilações para cima ou para baixo desse valor médio, a depender, por exemplo, da existência de outras circunstâncias igualmente relevantes e legítimas para a determinação do real valor da coisa, como a existência de benfeitorias, o estado de conservação os interesses pessoais do vendedor (necessidade da venda para despesas urgentes, mudança de investimentos, etc.) e do comprador (escassez do imóvel na região, proximidade com o trabalho e/ou com familiares, etc.) no ajuste do preço”.
Diante dos diversos fatores capazes de influir na precificação do bem ou do direito revela-se ilegítima a prática de arbitramento da base de cálculo que despreze os fatores singulares dos negócios jurídicos. Por essa razão o ministro relator concluiu pela impossibilidade de o fisco proceder o lançamento de ofício.
Assim, o paradigma até então empregue pelo fisco inverteu-se, consignando-se que a boa-fé do valor declarado pelos contribuintes é presumida, cabendo ao fisco a instauração de procedimento próprio para arbitramento em base distinta, sendo assegurado o direito ao contraditório para possibilitar a apresentação das peculiaridades do caso concreto que venham a justificar a diferença do valor transacionado para o valor de mercado possível de mensuração.
Além da análise meritória da fé, a definição de valor venal e a distinção entre o valor venal utilizado para cálculo do imposto predial e o valor venal utilizado para transmissão do bem merece destaque, isso porque, acertadamente, foi objeto de observação a distinção dos fatos geradores dos tributos e suas influências na fixação do valor venal.
Resultou da análise dos institutos acima a conclusão de que as operações sujeitas à incidência de ITBI devem, em regra, ser entendidas como transações balizadas na boa-fé para estipulação do preço, cabendo ao fisco comprovar o contrário, sob pena de subversão da ordem do procedimento instituído no artigo 148 do CTN.
Em tais razões, a Corte Superior fixou a tese do tema repetitivo 1.113 no sentido de que: “a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação; b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (artigo 148 do CTN); c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente”.
A decisão tem potencial de impactar os negócios societários que envolvem bens imóveis, eis que é recorrente a integralização de capital social mediante transferência de patrimônio imobiliário em razão do incentivo tributário previsto constitucionalmente.
Incidência de ITBI nos negócios societários
Por força do artigo 156, §2º, I da Constituição, não incide ITBI sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital. Assim, na hipótese de transferência do bem para a pessoa jurídica, mesmo estando presente o requisito para constituição de fato gerador, diante da transferência, não há cobrança em razão da imunidade tributária concedida.
O segundo julgado mencionado inicialmente, que resultou na fixação da tese do Tema 796 pelo STF, limitou a imunidade ao capital social realizado, reconhecendo a incidência do tributo sobre o montante que exceder as quotas integralizadas.
Agora, com o julgamento do STJ e fixação do tema 1113, em que restou estipulada a impossibilidade de o fisco arbitrar previamente base de cálculo para cobrança do ITBI, afastada a base de cálculo formulada para cobrança de IPTU, bem como, a presunção de boa-fé das partes em relação ao valor declarado para transferência do bem, pode-se afirmar que a mesma condição deverá prevalecer na realização dos negócios societários.
Dessa forma, na hipótese de transferência do bem para a pessoa jurídica para realização de capital, cabendo às partes a estipulação de preço, considerando-se as peculiaridades do caso concreto, a imunidade tributária alcançará o montante equivalente ao capital efetivamente integralizado, mas, o que exceder o capital social e estiver sujeito à tributação, via de regra, obedecerá a base de cálculo da precificação convencionada entre as partes, e não mais ao valor venal do bem utilizado para cálculo do IPTU, cabendo ao fisco fazer prova do valor de mercado distinto.
A alteração possibilita às empresas adotar como fator preponderante para as negociações as situações e variáveis dos bens imóveis, que podem conter diversas singularidades determinantes para a composição do valor do imóvel transmitido.
A título de exemplo: Se os sócios da empresa “A” integralizam mediante transferência de um imóvel o capital de 200 mil cotas ao preço de R$ 1 cada, sendo que a municipalidade atribua ao bem o valor de referência de R$ 300 mil, considerando como base de cálculo a Planta Genérica de Valores aprovada pelo Poder Legislativo, não poderá o fisco efetuar a cobrança automática de ITBI sobre o suposto excedente, que em tese seria alocado para a sociedade como reserva de capital, pois o valor atribuído ao bem pelas partes não pode ser desprezado, já que presume-se a boa-fé.
O fisco poderá instaurar procedimento administrativo para apurar a regularidade do valor estipulado, porém, sendo garantido o contraditório à sociedade adquirente, poderá ser objeto de comprovação peculiaridades do caso em concreto que legitimam as razões para redução do valor de mercado.
Aplicação da imunidade tributária para as holdings imobiliárias
A imunidade tributária mencionada acima não se aplicava às empresas que tenham atividade predominantemente imobiliárias, ou seja, sociedades que tenham 50% ou mais da sua receita operacional advindos da compra, venda, locação, ou exploração imobiliária.
Contudo, importante cenário foi inaugurado após a fixação da tese pelo STF (Tema 796), pois no voto condutor do RE nº 796.376, proferido pelo Ministro Alexandre de Moraes, restou consignado que a exceção contida no final do inciso I do artigo 156 da Constituição Federal aplicar-se-ia apenas para as hipóteses de fusão, incorporação, cisão ou extinção da pessoa jurídica, ao considerar que “a exceção prevista na parte final do inciso I, do §2º, do artigo 156 da CF/88 nada tem a ver com a imunidade referida na primeira parte”.
Como o voto foi vencedor, muitos passaram a entender que o posicionamento do STF é de afastamento da imunidade apenas nas hipóteses de fusão, incorporação, cisão ou extinção da pessoa jurídica com atividade preponderantemente imobiliária, mas que para a realização de capital a isenção serviria para qualquer tipo empresarial.
Nessa ordem de ideias, recentemente o TJDFT julgou incidente de arguição de inconstitucionalidade sobre as normas distritais que exigiam o pagamento do imposto da realização de capital nas pessoas jurídicas com atividade imobiliária preponderante, reputando superada a questão diante do pronunciamento do STF.
Por isso, o incidente foi parcialmente acolhido, para declarar a inconstitucionalidade parcial do §1º, do artigo 3º, da Lei 3.830/2006 e do §1º, do artigo 2º, do Decreto Distrital nº 27.576/2006, na parte em que mencionam os incisos I e III, do caput, de forma que a exceção neles previstas restrinja-se ao inciso “II”, ou seja, não deve incidir o ITBI no caso de transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, em realização de capital nela subscrito (inciso I) ou no caso de transmissão aos mesmos alienantes dos bens e direitos adquiridos na forma antes descrita, em decorrência de sua desincorporação do patrimônio da pessoa jurídica a que foram conferidos (inciso III), “ainda que o adquirente tenha como atividade preponderante a compra e venda de bens imóveis e seus direitos reais, a locação de bens imóveis ou o arrendamento mercantil”.
Os Tribunais de São Paulo, Minas Gerais e Bahia também já se posicionaram de forma semelhante, circunstância que conduz a uma tendência de estabilização do tema, que, no entanto, ainda pode ser revisto.
Assim, conclui-se que a decisão do STJ impacta favoravelmente não apenas as transações e negócios celebrados entre pessoas físicas, diante da prerrogativa de afastar a coação do fisco para impor valor como base de cálculo apoiado em critérios que podem não estar condizentes com a realidade, como também as pessoas jurídicas.
O entendimento assegura às partes a preservação da liberdade negocial, garantido respeito às áleas definidoras do preço e formato dos negócios jurídicos, observando-se as especificidades de cada imóvel negociado.
Já a decisão do STF, agora reproduzida por tribunais estaduais, favorecem o ambiente empresarial para a operacionalização das atividades imobiliárias.
É claro que permanece existente a possibilidade de ação fiscal para apurar a veracidade das declarações prestadas, contudo, afasta-se ou ao menos encurta-se os episódios de arbitrariedade do fisco, sendo os julgados mencionados importantes marcos para o ambiente dos negócios.