Em diversas obras jurídicas pátrias, quando os autores [1] adentram nos assuntos relativos a direito do trabalho e direito constitucional do trabalho é comum que seja feita menção à antiga distinção entre os ramos de direito público e privado e uma reflexão sobre como essa distinção cada vez mais se torna desnecessária e, em casos mais complexos, como os que serão trazidos aqui, insuficientes para tratar dos casos reais com que nos brinda a prática.
Assim, o viés de análise deste artigo propõe a análise dos casos envolvendo prestação de trabalhos e serviços, especialmente aqueles regidos por estatutos, à luz da constitucionalização do direito, entendendo-os como objeto do ordenamento jurídico e não de um só ramo do direito.
Panorama constitucional dos servidores e empregados públicos quanto aos direitos trabalhistas
A Constituição traz entre os direitos sociais, aqui entendidos como espécie de direitos fundamentais [2], um rol extenso, porém exemplificativo, de direitos trabalhistas os quais devem ser garantidos a todo ser humano que empresta sua força de trabalho e, dentre os direitos elencados no artigo 7º, estão: o direito à percepção de horas extras, quando ultrapassada a jornada normal de trabalho, com acréscimo nunca inferior a 50% da hora normal.
Outro direito trazido refere-se ao descanso, o qual possui importantes orientações na prática biomédica, incorporadas às Convenções da Organização Internacional do Trabalho,sendo o Brasil signatário de algumas delas.
Este artigo, que trata dos direitos constitucionalmente assegurados aos trabalhadores, precede, topográfica e logicamente os artigos 37, 38, 39 e seguintes, os quais tratam dos servidores públicos.
Ausente qualquer forma de oposição, quando do estudo do direito administrativo, aprendemos que os servidores públicos são da espécie trabalhador, porém, em lugar de serem regidos pelas normas da Consolidação das Leis do Trabalho, a famosa CLT, são regidos pelo Regime Jurídico Único, de matriz publicista, estatutária, portanto.
Contudo, o regime jurídico único, afora à União, pode ser eleito pelo ente público, entre um regime estatutário puro ou o regime do emprego público, com incidência das regras celetistas, após aprovação em concurso de provas ou provas e títulos.
Aqui verificamos a forte interseção, a qual, não raro, provoca incertezas e dúvidas, entre as regras do direito público stricto sensu e alguns regramentos aplicados às relações privadas, ainda que a doutrina e jurisprudência majoritárias tratem o direito do trabalho como ramo do direito público, inclusive por extração de sua existência da própria Constituição.
Tal interseção, na prática, por vezes acaba sendo objeto de interpretação polissêmica e produz aparentes distorções, as quais, por vezes, chegam ao Supremo Tribunal Federal, em busca de uniformidade e de respeito aos direitos trabalhistas e administrativos assegurados na Constituição.
Embora tenhamos diversos críticos à atuação da Suprema Corte nos casos em que se discutem tais normas, arguindo, entre outras teses, que a Corte não tem o papel de revisor (comumente delegado aos Tribunais), quando observadas as minúcias, difícil não entender que se tratam de bens jurídicos constitucionais, de princípios os quais demandam a intervenção da Corte como intérprete da Constituição, em prol de assegurar o regime democrático e os valores fundantes da República, o que será tratado a partir do próximo tópico.
Neste sentido, o que ocorre e tem sido muito frequente no ordenamento jurídico, é a abstrativização do controle difuso de constitucionalidade, por diversos motivos de origem prática, muito mais do que de ordem teórica, mas, na visão dos jurisdicionados, apesar das críticas já mencionadas, por vezes demonstra-se ser a única forma de obter um provimento adequado.
Jurisprudência do STF
ADI 5.404/DF: caso dos policiais rodoviários federais
O STF decidiu neste caso, com eficácia erga omnes, que o regime de subsídio dos servidores não é compatível com outras parcelas inerentes ao exercício do cargo, o que não afasta o direito à retribuição pelas horas extras que eventualmente ultrapassem a quantidade remunerada pela parcela única. Entendeu, acertadamente, que o pagamento das horas extras não caracteriza multiplicação da compensação ordinária.
Por outro lado, entendeu o ministro Barroso, em voto vencedor, que não seria devido o adicional noturno.
Na tese divulgada, ficamos a par apenas da impossibilidade de recebimento de adicional noturno junto ao subsídio, mas não foi exatamente essa a justificativa para a negativa de cabimento do adicional.
Ao contrário do que pode ser eventualmente entendido da leitura superficial, o motivo pelo qual o adicional foi negado é que, no caso específico dos policiais rodoviários federais, há, no seu estatuto, a discriminação da composição do subsídio, o qual, nos termos da lei federal, incluiu na parcela única as verbas destinadas a compensar o desgaste físico e mental causado pelas atividades próprias do cargo.
Neste sentido, de modo coerente, caso houvesse deferimento de adicional noturno para o exercício de funções inerentes ao cargo, tal ato configuraria aumento de vencimentos pelo Poder Judiciário.
Portanto, não há empecilho constitucional ao deferimento de eventual adicional noturno ou horas extras noturnas em outro caso que não preveja verba semelhante na composição do subsídio.
ADI 7356/PE: caso dos policiais civis de Pernambuco
A situação dos policiais civis de Pernambuco diferiu bastante do caso dos policiais rodoviários, pois o seu estatuto prevê a chamada “jornada extra de segurança”, com uma quantidade delimitada de horas extras a serem prestadas pelos policiais que aderirem ao plano, com pagamento previsto antecipadamente.
Neste caso, o voto vencido da ministra Cármen Lúcia, entendeu que o texto constitucional, do artigo 7º, não exige, para o recebimento do adicional de 50%, que a jornada extra tenha sido imposta pelo empregador, ou seja, que mesmo havendo uma adesão, em tese, por exercício da autonomia privada do servidor, ele teria direito ao adicional.
O voto vencedor foi o do ministro Barroso, no qual realizou a distinção validando a prevalência da autonomia da vontade nas relações de trabalho, ainda que seja no âmbito das relações trabalhistas na administração pública, na esteira das recentes decisões validando outras formas de relação de trabalho, como a jornada 12×36 por acordo individual, a jornada de 60 horas desde que haja compatibilidade.
Aqui surge um questionamento: considerando o caso modelo julgado, seria possível o reconhecimento de horas extras caso ultrapassada a duração prevista nesse acordo entre servidor e administração? Entendo que sim, pois o direito do trabalho tem jurisprudência exatamente neste sentido.
Se considerarmos o histórico de diálogo entre o direito administrativo e o direito trabalhista, é extremamente aceitável a aplicação do regramento trabalhista neste caso. Assim, ao laborar além das horas acordadas inicialmente, surge para esse servidor o direito à percepção das horas extras, com o adicional mínimo constitucionalmente previsto, de 50%.
Conclusão
Ambos os casos tratados aqui trazem a interseção, na prática, de conceitos do direito trabalhista e do direito administrativo sob o prisma constitucional, valendo para todas as esferas da administração, excetuando, apenas o poder legislativo.
Esses casos, além de evidenciarem a importância desses temas no atual cenário jurídico, sinalizam uma tendência de aplicação de algumas normas antes muito mais restritas às relações de trabalho privadas aos trabalhadores regidos pelos regimes estatutários.
Referências bibliográficas
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