Jandeson Barbosa: Dorian Gray, Direito e Administração Pública

Não. Este texto não foi escrito pelo ChatGPT. E posso provar!

Caro leitor, nesse tempo intermediário  entre um mundo sem inteligência artificial (IA) largamente difundida para a produção de textos e um mundo que há de vir  quero combinar algo contigo: a suspensão das nossas regras de estilo de escrita, padrões e etc. Sim. Preciso provar que fui quem escreveu esse texto, mas também há coisas a serem ditas que devem ser feitas em uma linguagem “natural”.

Reprodução

Primeiro eu preciso recorrer a uma clássica conceituação. Aos pouco familiarizados com o tema, esclareço que o ChatGPT é “uma ferramenta desenvolvida pela OpenAI, uma organização de pesquisa em inteligência artificial com o objetivo de promover e desenvolver IA responsável e segura. Ele é baseado na tecnologia de transformadores pretreinados, que foi inicialmente introduzida com o modelo GPT da OpenAI em 2018” [1].

Em termos práticos: “esta ferramenta oferece a possibilidade de realizar perguntas completas à inteligência artificial em uma linguagem natural, o que a transforma em uma potencial fonte de consulta” [2].

Se o leitor me permite, quero compartilhar contigo trecho de um dos meus romances preferidos: O Retrato de Dorian Gray. Essa obra, como sabemos, único romance escrito pelo aclamado e injustiçado Oscar Wilde, narra a história de um belo rapaz que recebera uma “benção”: a partir de dado momento, todos os malefícios que fossem causados ao jovem Dorian  seja em decorrência do álcool, drogas, doenças, alimentação, sedentarismo e até do envelhecimento — seriam suportados, não pelo seu corpo, mas por um retrato seu escondido em um sótão. Desse modo, Dorian Gray poderia aproveitar todos os riscos da vida sem nunca padecer de suas consequências físicas.

Curiosamente, para além da fascinante história e da envolvente escrita de Wilde, o que mais me chama atenção nessa obra é o seu prefácio. Vou premiá-lo, distinto leitor, com o trecho o qual quero comentar:

“Um artista é um criador de belas coisas. (…)

Para os eleitos é que as belas coisas significam simplesmente a Beleza. (…)

Podemos perdoar a um homem ter feito uma coisa inútil enquanto ele não a admira. A única desculpa de ter feito uma coisa inútil é admirá-la intensamente.

A Arte é completamente inútil.” [3]

Ora, é necessário compreender bem o que nos quis dizer o autor irlandês. Não é que a beleza “não sirva pra nada”. É que ela não está no campo do “útil”, daquilo que existe com a finalidade precípua de servir de instrumento para algo. A beleza está acima da utilidade, na perspectiva do autor. Ela é “inútil” justamente porque, mesmo sem instrumentalizar ou servir de meio para algo, a beleza é por nós desejada, apreciada, ambicionada e todos os “adas” que já conhecemos.

Portanto, a primeira nuance que quero explorar é excluir a “beleza” do escopo do ChatGPT e da produção do texto por inteligência artificial em geral. E por “belo” me refiro à escrita como arte, como lazer, como algo apreciável per si, sem servir de instrumento para nada. O texto pelo texto. O poema, mas também a prosa cativante, aquele conto instigante, o romance genial. Inclua nessa lista as tiras provocativas, as letras de música “com o espírito de um povo”, tudo o que é “inútil” segundo o vocabulário oscarwildeano.

Incluo nessa categoria de belo também os textos técnicos geniais, profundos, inéditos ou qualquer outra forma de texto ímpar. Relega-se, dessa forma, ao ChatGPT os textos “úteis”, os instrumentais, os relatórios, as dissertações (no sentido comum, não no acadêmico), e toda cornucópia (contém ironia) de textos laborais. Não que eu duvide da capacidade da IA de emular textos para se passarem por “arte”, ao parafrasear, repetir ideias, combinar trechos e histórias do que a humanidade já produziu. Mas não passariam disso: emulações. Não vislumbro em um horizonte próximo a IA “escrevendo arte”.

Prosseguindo, faço uma defesa e alguns alertas acerca da utilização do ChatGPT em duas áreas específicas: no Direito e na Administração Pública. Importante salientar que a Administração Pública é um locus peculiar: enquanto na “administração geral” o Direito é coadjuvante, na Administração Pública a ciência jurídica, mais especificamente o direito administrativo, é o veículo que operacionaliza o seu funcionamento.

Um dos ataques mais comuns feitos ao ChatGPT é que a ferramenta elabora textos como uma espécie de mosaico de informações coletadas de diversas fontes. A par disso ser um fato, é inconteste que a escrita humana em grande parte também o faz:

“Foucault, na segunda metade do século 20, desenvolveu uma importante reflexão sobre o estatuto do autor, descolando a ideia de autor, da ideia de uma individualidade que se reforça na sua obra e nela se eterniza. Ao contrário, o que Foucault ([1969] 2006) vai mostrar é que o autor moderno é um ponto organizador de certos textos, atribuídos a um determinado nome, e que ambos, autor e obra, desaparecem no grande arquivo da escrita.” [4]

E é nesse ponto que existe uma das mais coerentes críticas em relação ao uso de IA no campo do Direito: máquina não sente, não tem empatia, produz textos “desumanizados”, esse último obviamente no sentido denotativo mas também no conotativo. É clássica a observação de que a palavra “sentença” provém do vocábulo latino sententia, que significa sentimento, aquilo que se sente de verdade. Portanto, os detratores da ferramenta questionam: como pode escrever uma sentença alguém que não tem sentimento?

Essa observação está longe de se lastrear apenas em uma discussão etimológica, mas encontra amparo em um argumento axiológico, ou seja, de valor. Não podem algoritmos tomar decisões com base em premissas que na maioria das vezes desconhecemos, e sem a irrenunciável análise valorativa de um ser senciente.

No controle externo  que julga, e por isso também pode ser incluído no campo ontológico dos operadores do Direito  é recorrente a crítica de que seus auditores não têm muitas vezes experiência empírica na Administração Pública e que por isso, por vezes, “pesam a mão” em situações que deveriam ser contemporizadas face às dificuldades reais [5]. E o que dizer de um julgador ou instrutor que tem sequer a experiência empírica de existir?

Com esses comentários, quero retirar da “responsabilidade” das ferramentas de IA a entrega de documentos acabados, sem análise humana valorativa posterior. É claro que há atividades instrutórias em que o uso de IA deve ser encorajado, seja porque as ferramentas fazem um trabalho melhor que o dos humanos, seja para poupar-lhes tempo na execução de atividades repetitivas. Exemplo de ambas as situações é o entabulamento e tratamento de dados, ação já largamente realizada por ferramentas de IA.

Outra atividade que segundo alguns poderia ser delegada ao ChatGPT seria o desenvolvimento de relatórios de auditorias, fiscalizações e congêneres a partir dos dados coletados. E nesse ponto cabe uma reflexão: a própria construção do texto não deveria estar impregnada do sentire do auditor? Decerto esse sentimento é ingrediente indispensável de tal análise. Se você, nobre leitor, levantou a voz mentalmente com os dizeres “mas a instrução tem que ser técnica!”, o curto espaço deste artigo me obriga a te remeter a obra em que trabalhamos o tema [6] e demonstramos que não existe (e nem deve) uma análise absolutamente técnica.

Noutro giro, até a realização de pesquisas deve ser feita com cuidados. A ferramenta aparentemente não faz uma triagem entre conteúdos mais ou menos confiáveis. Nesses dias, este escriba estava enaltecendo justamente essa possibilidade de uso do ChatGPT. Um amigo me perguntou sobre determinado tema sob a ótica de certo autor, e eu rapidamente pedi que a ferramenta realizasse tal pesquisa. Com ar de quem acabara de ter uma daquelas vitoriazinhas de ponto de vista, enviei o resultado para esse amigo devidamente acompanhada da fonte: livro, edição e até número da página. Alguns minutos depois, o amigo faz chegar a mim foto da citada página na qual não havia qualquer referência ao assunto. E mais: o autor, ao menos naquele livro, não sustentava o que o Chat afirmava. Portanto, soma-se mais uma precaução: as fontes citadas devem ser rigorosamente checadas.

Em relação à utilização pela Administração Pública, há nesse ponto uma miríade de possibilidades. Não teria como eu deixar de exemplificar com a área de licitações e contratos administrativos. É possível o uso do ChatGPT, por exemplo, para a elaboração de vários dos campos dos estudos técnicos preliminares, solicitando que a ferramenta compare as vantagens e desvantagens entre compra e locação de um bem, requisitos essenciais para a boa prestação de determinado serviço, e até a descrição pormenorizada do objeto em sede do termo de referência.

Contudo, refaz-se o alerta: é necessário que os servidores analisem a exatidão e congruência das informações fornecidas pelo chat, verifique se tais elementos se amoldam ao caso concreto, além da irrenunciável análise escrita do autor com considerações acerca dos textos trazidos pelo ChatGPT. E coloca-se aqui mais uma possibilidade: a necessidade de que seja apontado no texto quais trechos foram elaborados pela ferramenta e quais provêm da livre escrita humana.

Por derradeiro, não poderia encerrar este artigo sem trazer à discussão mais uma alerta: a possibilidade do fortalecimento da retórica e da prolixidade em detrimento da substancialidade e da concisão. Nesse ponto vem à memória de muitos a escola sofista: “os sofistas creditavam a verdade, a moralidade, a religião, a justiça e os conceitos políticos e sociais ao consenso, a uma convenção entre os homens. Era da persuasão que se formava a verdade” [7].

Eis que o uso indiscriminado de uma ferramenta que também pode ser considerada uma máquina de retórica escrita pode causar uma sofistização dos textos ante a facilidade que proporciona: se pretendo defender uma hipótese quase indefensável na qual não me ocorrem sequer argumentos favoráveis, agora eu tenho à minha disposição uma ferramenta que faz isso por mim.

E aqui lanço uma provocação ao meu nobre leitor: sugiro solicitar ao ChatGPT um comando para que este escreva um texto defendendo a condenação de Sócrates face às acusações justamente dos sofistas. Este escriba o fez, e o resultado me causou ainda mais apreensão em relação a esse ponto.

Outro aspecto menos danoso mas nem por isso menos problemático é a analiticidade dos textos técnicos e despachos em geral da Administração Pública. Se antes, a concisão tinha a seu favor a necessidade de menos tempo e esforço do autor face à confecção de textos mais analíticos, agora não tem mais: basta pedir ao ChatGPT. Ronda, portanto, o perigo da prolixidade fácil.

Decerto a utilização da IA é uma realidade fática incontornável. Até por isso, quanto mais rápido surgirem regulamentações e orientações dos órgãos de controle do Judiciário (Conselho Nacional de Justiça), do Ministério Público (Conselho Nacional do Ministério Público), e da Administração Pública (tribunais de contas em especial, mas também no âmbito da própria administração), mas segura será essa trilha, ainda que tais regramentos necessitem ser constantemente atualizados.

Não podemos transformar a ferramenta de IA no retrato de Dorian Gray: simplesmente transferir aos algoritmos as nossas responsabilidades, dificuldades de análises ou mesmo utilizá-la como escudo para arroubos retóricos perigosos. Precisamos encontrar uma senda, um caminho seguro na descoberta desse novo “ecossistema”, para não sofrermos metaforicamente enquanto comunidade o destino do jovem Dorian ao se deparar muitos anos mais tarde com o seu retrato. E, se o nobre leitor ficou curioso com o destino de Dorian Gray, sugiro não perguntar ao ChatGPT: leia a obra.

 

________________

[1] VELÁSQUEZ, Fidel Rodríguez. O ChatGPT na pesquisa em Humanidades Digitais: oportunidades, críticas e desafios. TEKOA (ISSN: 2764-8893) – vol. 2, ano 2023.

[2] Tradução do autor. No original: “Esta herramienta ofrece la posibilidad de realizar preguntas complejas a la inteligencia artificial en lenguaje natural, lo que la convierte en una fuente de consulta potencial”. In: OSORIO, Jimmy Alexander Cortes. Editorial: Explorando el potencial de ChatGPT en la escritura científica: ventajas, desafios y precauciones. Scientia et Technica, Año XXVIII, Vol. 28, No. 01, enero-marzo de 2023. Universidad Tecnológica de Pereira. ISSN 0122-1701 y ISSN-e: 2344-7214. DOI: https://doi.org/ 10.22517/23447214.25303.

[3] WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Tradução: João do Rio. Jandira-SP: Principis, 2020, p. 5-6.

[4] GALLO, Solange M. Leda. ChatGPT: hiperautor ou não autor? Traços de Linguagem – Revista de Estudos Linguísticos, [S. l.], v. 7, n. 1, 2023. DOI: 10.30681/2594.9063.2023v7n1id11199. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/tracos/article/view/11199. Acesso em: 2 jun. 2023.

[5] A crítica, de tão repetida, acabou por se consolidar em diversas alterações à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro por meio da Lei 13.655/2018.

[6] Ver: BARBOSA, Jandeson da Costa. O interesse público constitucional: numa formulação à luz de pressupostos teóricos, contextos e fatos no âmbito dos direitos fundamentais. Prefácio: Luiz Edson Fachin. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022.

[7] MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 38.

 

Referências Bibliográficas

BARBOSA, Jandeson da Costa. O interesse público constitucional: numa formulação à luz de pressupostos teóricos, contextos e fatos no âmbito dos direitos fundamentais. Prefácio: Luiz Edson Fachin. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022.

GALLO, Solange M. Leda. ChatGPT: hiperautor ou não autor? Traços de Linguagem – Revista de Estudos Linguísticos, [S. l.], v. 7, n. 1, 2023. DOI: 10.30681/2594.9063.2023v7n1id11199. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/tracos/article/view/11199. Acesso em: 2 jun. 2023.

MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.

OSORIO, Jimmy Alexander Cortes. Editorial: Explorando el potencial de ChatGPT en la escritura científica: ventajas, desafios y precauciones. Scientia et Technica, Año XXVIII, Vol. 28, No. 01, enero-marzo de 2023. Universidad Tecnológica de Pereira. ISSN 0122-1701 y ISSN-e: 2344-7214. DOI: https://doi.org/10.22517/23447214.25303.

VELÁSQUEZ, Fidel Rodríguez. O ChatGPT na pesquisa em Humanidades Digitais: oportunidades, críticas e desafios. TEKOA (ISSN: 2764-8893) – vol. 2, ano 2023.

WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Tradução: João do Rio. Jandira-SP: Principis, 2020.

Jandeson da Costa Barbosa é mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Ceub, especialista em Direito Público pela Unifacs, servidor, ex-especialista sênior e ex-diretor da área de licitações e contratos do TCU, membro do Grupo de Pesquisa Hermenêutica do Direito Administrativo e Políticas Públicas (Ceub), professor e advogado.

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