Não é novidade alguma que a maior parte da vida em sociedade é governada pelas leis oriundas do direito civil, destinando-se as leis de natureza penal à uma exceção do comportamento humano, que é o crime e suas consequências.
E é exatamente essa diferença ontológica entre ambas as áreas que culminou com o dever de elaboração de um código de processo civil e outro de processo penal, a fim de dar guarida às garantias em vista dos bens jurídicos a elas pertinentes. Ainda que nalguns pontos as normas sejam intercambiáveis (CPP, artigo 3º), tendo em vista a incompletude natural de colmatação legislativa de todos os casos possíveis, a separação é obrigatória.
Carnelutti, em citação conhecida de Lopes Jr., em sentido figurado, inicia um artigo intitulado “Cenerentola”, publicado em 1946, em alusão ao famoso conto da Cinderela, afirmando que havia três irmãs, chamadas ciência do direito penal, ciência do processo civil e ciência do processo penal. Esta última, pobre e abandonada, dividiu com aquelas, belas e ricas, as roupas e até o quarto de dormir, tendo de se contentar na condição de dependência, que afetava até mesmo sua dignidade. Este é o processo penal [1].
O mestre italiano escreveu o artigo quando já amadurecido nos estudos processuais após deter-se um bom tempo na seara do processo civil e outras matérias. Percebeu, assim, que o processo penal se trajava de maneira imprópria, é dizer, utilizava as vestimentas do processo civil e do direito penal. Lhe faltava a autonomia para adornar-se de acordo com seu próprio corpo, ou, em outras palavras, de acordo com os princípios inerentes que o regem, outorgando-lhe a independência de que tanto precisava.
Nesse ponto, a construção das leis processuais no Brasil ainda revela a disfunção indicada, como se percebe da Lei nº 11.419/16, que dispõe sobre a informatização do processo judicial, que (deveria) abarca(r) tanto o processo civil como o processo penal.
Referida lei, em seu artigo 5º, §1º, trata da forma em que se dará a intimação, afirmando que “considerar-se-á realizada a intimação no dia em que o intimando efetivar a consulta eletrônica ao teor da intimação, certificando-se nos autos a sua realização”. Em seguida, no §3º, afirma que “a consulta referida nos §§1º e 2º deste artigo deverá ser feita em até dez dias corridos contados da data do envio da intimação, sob pena de considerar-se a intimação automaticamente realizada na data do término desse prazo”.
Considerando isto, imagine-se o seguinte caso. O prazo para oferecimento da denúncia, após conclusão do inquérito com réu preso, é de cinco dias, conforme artigo 46 do CPP [2]. Na prática, após a remessa eletrônica dos autos do inquérito ao Ministério Público, estes terão dez dias para abertura automática do início da contagem do prazo processual para realização do ato, que é de cinco dias. Só aqui já teríamos 15 dias.
Considerando que neste ínterim pode haver feriados e finais de semana que estendam o lapso (pois só inicia e termina o prazo em dia útil), o prazo total para o oferecimento da denúncia, ao invés de cinco, pode chegar a 20 dias! Soma-se a isso o fato de que a jurisprudência tem considerado nulidade relativa a não obediência ao prazo para oferecimento da denúncia, tendo em vista que, após o pedido de relaxamento por excesso de prazo, o Ministério Público “acorda”, oferece a denúncia, e o reclamo defensivo perde seu objeto [3].
A razão principiológica do legislador prever o prazo inescapável de 05 (cinco) dias para oferecimento da denúncia, estando o réu preso, é a forma que encontrou de concretizar, por meio do mandamento legal, a garantia constitucional insculpida no artigo 5º, LXXVIII, que diz sobre a duração razoável do processo.
Assim, qual sentido de se permitir, na hipótese trazida, até 20 dias para prática do ato quando a lei vincula ao prazo de cinco e, considerando ainda, que é de somente dez dias o prazo para o réu solto? Era dever da novel legislação diferenciar a forma de intimação para atos processuais destinados a processos que cuidam de bens indisponíveis (processo penal), daqueles que cuidam de bens disponíveis (processo civil).
Percebe-se que o fato de deixar o expediente abrir automaticamente, fazendo uso dos dez dias para iniciação automática do prazo, implica no descumprimento de tratamento prioritário de processos com réu preso. E detalhe, o promotor de Justiça não possui apenas uma forma de abrir o prazo: possui duas, a automática e a outra manual. Ao escolher a primeira, diante de réu preso e com prazo legal correndo para a realização do ato, torce a norma e diz manter hígida a letra da lei, passando a ideia de cumprimento escorreito do dever. Mas é apenas formalismo vazio, já que o mandamento constitucional foi ultrajado pela não formatação do sistema à intenção da carta política.
A prioridade, assim, não é observada, tampouco o é o regramento do CPP, pois inexiste razoabilidade em ver como correto cumprir o ato em vinte dias, sendo que a lei prevê apenas cinco.
Este mesmo problema ocorre na tramitação de Habeas Corpus, quando o MP é intimado a se manifestar em até cinco dias. Ali, o representante ministerial também pode esperar os dez dias de abertura automática, permanecendo 15 dias ou mais da metade de um mês inteiro apenas para entregar o parecer. É flagrante a lesão à natureza da ação de habeas corpus, que exige rapidez na sua tramitação, por se tratar de impugnação diretamente ligada ao direito de ir e vir.
A não adequação do sistema PJe ao Código de Processo Penal tem gerado inúmeras irregularidades e ilegalidades. Esta é uma que se aponta e às quais o legislador deve se deter, aprimorando o arcabouço do sistema de justiça.
Jimmy Deyglisson é especialista em ciências penais, cursando L.L.M em Direito Penal Econômico pelo IDP, presidente da Abracrim-MA, advogado criminalista.