João Rossi: Perdas de energia não devem integrar base do ICMS

É assente no Direito e na jurisprudência pátria que a energia elétrica é considerada mercadoria e está sujeita à incidência do ICMS.

O ICMS-Energia, conforme prevê a Súmula nº 391 do STJ, tem como fato gerador o efetivo consumo (artigo 34, § 9º, do ADCT combinado com o artigo 155, II da CF/88).

Em igual teor, o Supremo fixou no Tema nº 176 a tese de que a potência de energia elétrica, por si só, não é passível de incidência do ICMS, devendo esse ser cobrado sobre as operações nas quais ocorreu o efetivo consumo.

Considerando as particularidades físicas envolvendo a mercadoria energia elétrica, temos que a tradição somente nascerá a partir do momento no qual ela sai da linha de transmissão e entra no estabelecimento do consumidor, passando pelo relógio medidor e sendo efetivamente consumida ou utilizada.

De mais a mais, a Resolução nº 1.000/2021 da Aneel (artigos 25 e 26) é clara em eleger o relógio medidor como o limite da responsabilidade da concessionária, ou seja, a partir dele ocorre a tradição e o efetivo consumo, nascendo, portanto, o fato jurídico gerador do ICMS-Energia.

Não podemos deixar de mencionar que a mesma Resolução nº 1.000/2021, em seu artigo 2º, XLIX, alínea “a”, é cristalina em denominar a Tarifa de Energia (TE) como aquela na qual há o efetivo consumo, portanto, nesse caso, em se tratando de TE, o ICMS deve ser faturado sem maiores dificuldades.

No entanto, uma outra tarifa nos chama a atenção, estamos falando das perdas, que são divididas em técnicas e não técnicas.

Sobre as elas, temos que as mencionadas se referem à energia elétrica que foi adquirida pela distribuidora e que acabou não sendo efetivamente entregue aos consumidores.

A origem dessa discrepância tem fatores distintos, um deles é físico, ou seja, é a energia que se perdeu no processo de distribuição enquanto transitava nos fios da concessionária, essa ocorre por fatores naturais, como por exemplo a energia elétrica que acaba se transformando em energia térmica nos condutores (efeito joule), perdas dielétricas e outras mais de ordem física. A essa damos o nome de técnica.

Já o outro caso não tem relação alguma com as características naturais, mas sim os desvios de conduta dos seres humanos que furtam a corrente elétrica por meio da reprovável prática de “gato”. Aqui nomeamos como não técnicas.

No entanto, nesses dois eventos há uma celeuma jurídica instaurada no campo tributário, ora, se o ICMS-Energia tem como fato gerador o efetivo consumo (ver Súmula nº 391 do STJ), nós estamos agindo corretamente ao tributar pelo ICMS as perdas técnicas e não técnicas?

Pois bem, o STJ, em 2012, já teve a oportunidade de responder a questão acima, na ocasião, a corte entendeu que “a energia elétrica furtada nas operações de transmissão e distribuição não sofre incidência de ICMS por absoluta ‘intributabilidade’ em face da não ocorrência do fato gerador” (STJ, REsp 1.306.356-PA, rel. min. Castro Meira, julgado em 28/8/2012).

A conclusão citada nos parece bastante adequada e satisfatória, afinal as perdas, por mais que sejam cobradas parcialmente por determinação da Aneel, não aparenta englobar o fato gerador do ICMS, visto que o consumo está ausente, porque quem pagou pela perda não utilizou aquela potência que desapareceu do sistema.

De mais a mais, o próprio STJ há anos vem fixando uma jurisprudência no sentido de que somente a potência de energia efetivamente consumida integra o ICMS-Energia.

Parece-nos um contrassenso total a cobrança do ICMS nas perdas, ainda mais se considerarmos que o ICMS não incide sobre a potência de energia contratada e não utilizada (Tema nº 63/STJ e Tema nº 176/STF).

Não é difícil localizarmos decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça invocando o Tema 176/STJ e a Súmula 391/STJ para o fim de afastar a cobrança do ICMS-Energia sobre a potência contratada e não utilizada (STJ, AgInt no RE no AgRg no Ag nº 1.074.598/SP).

Também não é difícil encontrarmos nas doutrinas especializadas em Direito de Energia a orientação de que o simples pacto contratual não gera o ICMS, ora esse somente será exigido da potência efetivamente utilizada, cita-se:

“Vê-se que o aspecto material do fato gerador do ICMS é a realização de operações relativas à circulação de mercadorias. E a circulação se pressupõe a entrega da mercadoria, a tradição, consequentemente, no caso da energia elétrica o efetivo consumo. O valor da operação consistente em garantir a potência necessária para o consumidor não pode ser tributado pelo ICMS.

(…)


Segue-se a conclusão inequívoca de que somente incide ICMS sobre a energia elétrica se, de fato, estiverem presentes as circunstâncias materiais, assim entendidas a efetiva circulação da energia elétrica no estabelecimento do consumidor e o efetivo consumo, não apenas o pacto contratual de potência.” (DE MELLO, Fátima I. M.Rogério Vaz. Não incidência de ICMS sobre a demanda contratada de potência e sobre as tarifas de uso dos sistemas de distribuição e de transmissão. Revista Direito de Energia & Áreas Afins, Editora: Synergia, 2020, p.251/252)

Ao nosso ver, as lições e os precedentes acima, são completamente aplicáveis ao caso ora em comento, pois é impossível atribuir a empresa ou a residência o consumo da energia que se perdeu no transporte, afinal tal acontecimento se deu antes da tradição, não havendo fato gerador para o ICMS.

Não podemos tratar as perdas como custo da energia consumida tal qual é tratado o adicional de bandeira tarifária, pois esse último representa um acréscimo real no valor da mercadoria efetivamente entregue.

No entanto, no campo das perdas, essas sequer entregues são, o que ocorre é o repasse de uma cifra determinada pela Aneel que não tem relação alguma com a energia utilizada, afinal quem consumiu a perda? Foi o consumidor que ingressou na Justiça? Evidentemente que não.

Vale argumentar que o doutrinador Roque Carrazza, possui escritos no sentido de que as perdas, sejam elas técnicas ou não técnicas, jamais poderão integrar a base de cálculo do ICMS-Energia, cita-se:

“A contrario sensu, o ICMS deixa de ser devido nos casos em que a energia elétrica se perde, quer por razões físicas (vazamentos no sistema), quer por motivos de ordem criminal (furto).

É que, inexistindo consumo regular, ausente está pelo menos sob a óptica do Direito Tributário qualquer operação relativa ao fornecimento de energia elétrica.


Do exposto, temos que, havendo tais ocorrências, deixa de existir espaço jurídico para que se cogite, seja a que pretexto for, de nascimento de obrigação de recolher ICMS – Energia Elétrica” (CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. Malheiros Editores. São Paulo. 2009. Pág. 273).

No nosso entender, as lições de Carrazza são corretas, inclusive vamos além e defendemos que a partir do momento no qual tributamos o consumidor honesto e isentamos o que fez o gato, o Estado acaba não observando a pessoalidade e a capacidade contributiva, que estão no art. 145, §1º da Carta Magna.

Além do mais, não nos parece condizente com os princípios da razoabilidade, proporcionalidade, isonomia tributária e legalidade o ato de onerar o contribuinte que segue a lei, enquanto o cidadão de má-fé e que faz o gato nada paga, sinceramente, essa decisão fiscal parece distante dos princípios basilares de Justiça.

Diante do exposto, esse artigo se encerra criticando o ato das Fazendas Estaduais consubstanciado em exigir dos contribuintes o ICMS-Energia das perdas técnicas e não técnicas, pois, no nosso entendimento, não havendo o consumo regular da energia, não há o que se falar em exigência do ICMS com fulcro na Súmula nº 391/STJ, no Informativo nº 503/STJ, no Tema Repetitivo nº 63/STJ e no Tema nº 176/STF (Repercussão Geral).

João Vitor Rossi é advogado, pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade de Araraquara, bacharel em Direito pelo Centro Universitário Padre Albino e em Administração pela Universidade de Uberaba.

Consultor Júridico

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