Jorgetto e Ribeiro: Reflexos na punibilidade empresarial

“E tornou a perguntar, Em que momento morreu o bicho-da-seda depois de se ter fechado no casulo e posto a tranca à porta, como foi possível ter nascido a vida de uma da morte da outra, a vida da borboleta da morte da lagarta, e serem o mesmo diferentemente, ou não morreu o bicho-da-seda porque está vivo na borboleta. O aprendiz de filósofo respondeu, O bicho-da-seda não morreu, a borboleta é que morrerá, depois de desovar […] [c]hama-se metamorfose, toda a gente sabe de que se trata, disse condescendente o aprendiz de filósofo, Aí está uma palavra que soa bem, cheia de promessas e certezas, dizes metamorfose e segues adiante, parece que não vês que as palavras são rótulos que se pegam às cousas, não são as cousas, nunca saberás como são as cousas, nem sequer que nomes são na realidade os seus, porque os nomes que lhes deste não são mais do que isso, os nomes que lhes deste”.

José Saramago, As intermitências da morte

A comunidade jurídica observa com atenção o julgamento do Recurso Extraordinário 1.451.261 que recentemente aportou na 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF). O recurso foi interposto pelo Ministério Público o do Paraná (MP-PR) contra acórdão proferido pela 3ª Seção (composta pelas 5ª e 6ª Turmas) do Superior Tribunal de Justiça (STJ) nos autos do Recurso Especial nº 1.977.172/PR, no qual esta corte reputou extinta a punibilidade da empresa incorporada por crime ambiental.

Em síntese, não detectando fraude da operação societária, o órgão judicial entendeu que a extinção da pessoa jurídica incorporada equivale à morte e assim extingue a punibilidade na forma do Código Penal (CP), artigo 107, inciso I [1], com base no princípio constitucional da intranscendência da pena [2].

A votação foi acirrada e as divergências suscitaram primeiro a não equiparação da extinção da pessoa jurídica à morte humana para fins de extinção da punibilidade, aduzindo operar aí não o fim da entidade moral, mas a sua transformação, sendo que a favor desta tese milita o fato de inexistir a liquidação da empresa incorporada ou falência. A permanência das instalações da empresa e a continuidade das atividades seriam outros elementos que respaldariam este entendimento.

Contudo, a nosso modesto ver, embora à primeira vista pareçam razoáveis, tais teses não se sustentam após um crivo analítico mais rigoroso ao se analisar a operação — em abstrato  de uma incorporação.

Vejamos.

A incorporação é regida tanto pelo Código Civil (CC), artigo 1.116 e pela Lei nº 6.404/1976  Lei das Sociedades Anônimas (LSA), artigo 227. Em primeiro lugar, convêm destacar desde logo que o CC, artigo 1.118 dispõe expressamente a extinção da pessoa jurídica incorporada como um dos efeitos da operação:

“CC, artigo 1.118. Aprovados os atos da incorporação, a incorporadora declarará extinta a incorporada, e promoverá a respectiva averbação no registro próprio.”

Tamanha a força legal do dispositivo, que a lei civil atribui natureza declaratória ao protocolo da operação.

A mesma inteligência se verifica na LSA, artigo 227, §3º:

“§3º Aprovados pela assembleia-geral da incorporadora o laudo de avaliação e a incorporação, extingue-se a incorporada, competindo à primeira promover o arquivamento e a publicação dos atos da incorporação.”

Nesse sentido, o CC, artigo 1.109, “caput”, que, embora reservado à liquidação da sociedade, também situa a extinção da sociedade quando da averbação da ata da assembleia (que deliberou pela incorporação) no registro próprio.

“Artigo 1.109. Aprovadas as contas, encerra-se a liquidação, e a sociedade se extingue, ao ser averbada no registro próprio a ata da assembleia.”

Dessa forma, resta claro que a averbação da incorporação no registro público tem o condão de extinguir a empresa incorporada.

À parte a disciplina formal/cartorial da incorporação, nela há eventos societários que não podem ser desconsiderados.

Inicialmente cumpre ressaltar que na incorporação, os sócios da empresa incorporada migram para o quadro social da empresa incorporadora. Paralelamente, há cessão do patrimônio (compreendido como uma universalidade de fato e de direito e consequente impacto na distribuição do capital social da incorporadora entre o seu novo quadro social. Por fim, na incorporação, a participação social é alterada significativamente, havendo cancelamento das ações/quotas da sociedade incorporada­ – inclusive, no caso em tela a empresa incorporada era uma sociedade anônima (estruturada em ações) e a empresa incorporadora é uma sociedade limitada (estruturada em quotas) [3].

 Ora, a migração de um quadro social, extinção da participação societária da incorporada, a cessão do patrimônio e distribuição do capital social  tudo ocorrendo na empresa incorporadora  são elementos que confirmam a extinção da pessoa jurídica incorporada.

Nesse sentido, importante pontuar que, societariamente, é justamente na extinção jurídica da empresa incorporada que reside o desmantelamento da esfera patrimonial (e não o contrário). Isto é, a permanência após a incorporação de uma estrutura física no mundo dos fatos (um parque operacional, por exemplo) até mesmo com a continuação das atividades não justifica por si só a responsabilidade penal da pessoa jurídica incorporada na incorporadora.

Primeiro, porque conforme visto, a incorporação empresarial não foi uma operação “de fachada”, algo que se dá apenas no plano das aparências, mas com efeitos na constituição da própria pessoa jurídica. Segundo, a disciplina jurídica do estabelecimento (compreendido como o conjunto de bens afetados ao exercício da empresa) [4] o toma inicialmente como uma universalidade de fato (Carvalhosa, p. 632) e não necessariamente de direito, isto é, cindida da pessoa do empresário [5].

Portanto, mesmo não tendo ocorrido liquidação (aduzida pelo ministro Joel Ilan Paciornik) ou falência (aduzida pelo ministro Rogério Schietti Cruz) nos termos inaugurados pelas divergências, à luz destes eventos societários todos, o entendimento exarado na tese prevalecente no STJ se mostrou acertado em razão da extinção jurídica da empresa incorporada.

Com base nessas considerações todas, reputamos acertadas as conclusões no plano do direito penal exaradas por Davi Tangerino e Miguel Müssnich na coluna no portal Jota, no sentido de a Constituição não admitir a responsabilização penal da empresa incorporadora/sucessora pela incorporada/sucedida por delito contra o meio ambiente (não havendo, claro, indício de fraude na operação).

Agora, a moldura jurídica da controvérsia no recurso extraordinário segue bem delineada e no campo constitucional deve perpassar os dispositivos que tratam da sanção às pessoas jurídicas por crimes ambientais (Constituição, artigo 225, §3º), a função social da propriedade, a livre concorrência e a defesa do meio ambiente (artigo 5º, inciso XXIII e artigo 170, incisos III, IV e VI) e o princípio da pessoalidade da pena (artigo 5º, inciso XLV).

Além do respeito garantias e direitos fundamentais insculpidos na Constituição, esperamos do STF a consequente leitura constitucional acerca do objeto em discussão, considerando que, quando o legislador optou por positivar a responsabilidade criminal das empresas (ou seja, expandindo o elemento subjetivo do direito criminal também para atividades empresariais), ele o fez estabelecendo a personalidade jurídica como o centro da imputação. Entender diversamente implicaria a criação judicial de um regramento excepcional na seara criminal.

Nessa linha, para fins penais é indiferente a continuidade das operações pela empresa incorporadora, afinal a empresa incorporada não subsiste mais enquanto pessoa jurídica. Reputar a permanência de um parque industrial ou operacional para esta finalidade, acarretaria a substituição de parte em processo penal  o que é anômalo e inexistente para este ramo do direito.

Na hipótese de incorporação fraudulenta da empresa, caberia ao Ministério Público o oferecimento de nova denúncia trazendo todos os elementos de prova, sendo vedado ao Judiciário qualquer atuação de ofício, em obediência aos princípios da imparcialidade e inércia, limitando-se a garantir o devido processo legal, o contraditório e ampla defesa.

À luz de todos estes aspectos, concluímos que a decisão dos ministros vencedores foi a mais acertada porque além de ser coerente com a natureza e efeitos de uma operação de incorporação, o entendimento lá exarado foi consistente com a leitura constitucional do direito processual penal, evitando-se inovações que possam comprometer princípios basilares insculpidos na Constituição.

 

 

Referência

CARVALHOSA, Modesto. Direito de Empresa: Parte especial – Do direito de empresa (artigos 1.052 a 1.195), vol. 13. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

André Jorgetto é advogado, graduado em Direito pelo Largo São Francisco da Universidade de São Paulo (FD/USP), graduando em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da mesma instituição (FFLCH/USP) e membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP.

Fabio Ribeiro é advogado, especialista em Direito Probatório pela Universidade de Salamanca e pós-graduando em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn
plugins premium WordPress

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor