Na maioria dos países desenvolvidos, o arrendamento mercantil é uma ferramenta eficaz e flexível de financiamento da indústria de bens e serviços. No Brasil, isso não deveria ser diferente. Todavia, os riscos associados ao arrendamento mercantil no país, além daqueles relativos à análise de crédito, tornam o arrendamento mercantil tão custoso para o cliente quanto outras formas de financiamento. Esses riscos, lamentavelmente, estão associados a decisões do poder judiciário, as quais, em sua grande maioria, têm origem na inadequada regulamentação do arrendamento mercantil.
Com efeito, a Lei 6.099/74, que supostamente tem como foco o arcabouço tributário do arrendamento mercantil, é incipiente tanto no particular (vide as numerosas batalhas travadas ou em curso com as receitas federal, estaduais e dos municípios), quanto na definição das próprias características dessa operação de crédito, delegando ao Conselho Monetário Nacional (CMN) e ao Banco Central (BC) a tarefa de estruturar as modalidades financeira e operacional do arrendamento mercantil.
Essa delegação, embora motivada por uma bem-intencionada tentativa de flexibilizar essa forma de financiamento, permitindo, em teoria, uma constante atualização diante das evoluções do mercado de crédito, teve como efeito colateral vulnerar um contrato que, por si só, é complexo, reunindo características de outras formas contratuais típicas e melhor compreendidas no Brasil.
Enquanto o arrendamento mercantil era uma operação essencialmente focada em pessoas jurídicas como arrendatários, as disputas entre estes e os arrendadores eram relativamente previsíveis e limitadas. Todavia, na segunda metade da década de 1990, com o Plano Real e a perspectiva de estabilização da economia, houve um movimento em prol da “democratização” do arrendamento mercantil junto ao CMN/BC, que acabaram incluindo as pessoas físicas como possíveis clientes. Em curtíssimo lapso de tempo, as carteiras, sobretudo dos bancos, cresceram exponencialmente com arrendamentos mercantis de automóveis.
O benefício dessa diversificação na base de clientes trouxe consigo um malefício, uma miríade de litígios, sobretudo em momentos difíceis da economia do país. Foi assim com a crise cambial no fim dos anos 1990: durante os anos anteriores, impulsionada por uma cotação do dólar artificialmente contida, proliferaram os arrendamentos mercantis atrelados à variação cambial. Com a falência do sistema de bandas, os arrendatários, sobretudo as pessoas físicas, incapacitados de arcar com o aumento das prestações, buscaram apoio nas mais variadas teses buscando transferir o risco para as arrendadoras.
Nos anos que se seguiram, novos embates nesse segmento da clientela sacudiram o setor, como a pendenga do Valor Residual Garantido (VRG) e a possibilidade de sua antecipação (na verdade, um benefício para os arrendatários, pois era uma parcela do principal, portanto não sujeita ao ISS).
Pior: essas teses passaram a ser usadas pelos arrendatários pessoas jurídicas, causando impacto ainda mais significativo ao mercado, pois as operações com empresas na esmagadora maioria das vezes envolviam valores muito maiores. A tempestade do VRG perdeu força, mas causou muitos danos e, junto com outras controvérsias que eclodiram a partir dos anos 1990, encareceram significativamente as operações de arrendamento mercantil para os arrendatários. É certo que a questão dos juros no país é conjuntural; todavia, a instabilidade que o arrendamento mercantil enfrentou e vem enfrentando aguça ainda mais o problema.
Nesse contexto, embora — como já se disse — o Judiciário tenha sua parcela de responsabilidade, fato é que o BC, na sua missão de preservar a liquidez do sistema financeiro, deveria ser mais proativo, sobretudo ao constatar a fragilidade do conjunto de normas que dispõem sobre o arrendamento mercantil, buscando reforçá-lo, seja mediante o aperfeiçoamento dessas normas, seja propondo ao legislativo mudanças na Lei 6.099/74 ou a edição de novas leis sepultando controvérsias que assombram o arrendamento mercantil, assegurando às empresas de arrendamento mercantil um ambiente menos adverso para operarem.
Situações como a limitação de responsabilidade do arrendador por danos causados pelo uso inadequado dos bens arrendados ou a possibilidade de o arrendador, após recuperar a posse do bem, continuar a cobrar o restante das parcelas, permitindo que o arrendador venda ou celebre novo arrendamento mercantil do bem, destinando o que sobejar o capital empregado (juntamente com custos de captação ou de alocação do capital, encargos moratórios e remuneração e outras perdas liquidas comprovadas pelo arrendador, resultantes da inadimplência do cliente), ao arrendatário, se devidamente contempladas em uma lei específica, que considere as peculiaridades do arrendamento mercantil, certamente reduziriam muito os problemas enfrentados pelos arrendadores e, por consequência, o custo para o arrendatário.
Outro exemplo dessas cunhas legais: com a evolução da tecnologia, ativos intangíveis como softwares atingiram preços cada vez mais altos, por vezes ultrapassando, em muito, o valor do hardware. Ora, atualmente, as normas que regem o arrendamento mercantil impõem ao arrendador deter a propriedade do bem e, considerando que legislação aplicável ao software nada fala sobre limitações de responsabilidade do licenciado (no caso, o arrendador) que adquire a licença de uso por conta e ordem do arrendatário no contexto de um arrendamento mercantil, o arrendador deveria ser isento de responsabilidade por violações à licença de uso pelo arrendatário.
Hoje, são necessárias extensas negociações para mitigar as responsabilidades do arrendador em um leasing de software, sendo certo que essas negociações muitas vezes esbarram no fato de o fornecedor do software não dispor de poderes para restringir as responsabilidades ou polarizá-las no arrendatário. Isso dificulta o acesso dos arrendatários a uma alternativa de financiamento, prejudicando, ainda, os próprios desenvolvedores/distribuidores de softwares.
É certo que há entidades organizadas para proteger os interesses das empresas que atuam no setor de arrendamento mercantil, mas atores como o Banco Central têm indubitavelmente capacidade, autoridade e isenção para contribuir, e muito, no processo de aperfeiçoamento das normas legais que amparam o arrendamento mercantil.
Há aqueles que entendem que a regulamentar é limitar. Nós não somos dessa opinião, sobretudo, na condição de cidadãos de um país que adota o direito escrito. É plenamente possível tipificar, positivar, sem engessar, sem banir ou prejudicar a criatividade.
José Augusto Leal é sócio senior e head da área de litígio do Castro Barros e Arbitragem do Castro Barros Advogados.