Juízes e políticos: STF e a constitucionalidade do uso de drogas

Desde 2015 o Supremo Tribunal decide o RE 635.659, sob o Tema 506: Recurso extraordinário, em que se discute, à luz do art. 5º, X, da Constituição Federal, a compatibilidade, ou não, do art. 28 da Lei 11.343/2006, que tipifica o porte de drogas para consumo pessoal, com os princípios constitucionais da intimidade e da vida privada”.

Passados oito anos, agora que o julgamento retornou à pauta e mais votos foram proferidos, a polêmica e os tabus envolvendo essa questão reacenderam paixões.

A legitimidade do Supremo é questionada com a afirmação de que o Congresso Nacional, representante da vontade da população, é o foro adequado para decidir essa questão. A criminalização de drogas seria uma decisão política e apenas a esfera política deveria poder alterar essa questão. Isso sob uma divisão do campo jurídico, afeto a juízes, do político, afeto a congressistas.

Esse raciocínio é equivocado.

Todas as leis, criminais ou não, são decorrentes do processo legislativo, com discussão política. Caso o Judiciário não pudesse declarar a inconstitucionalidade de leis discutidas e aprovadas pelo Parlamento, não exerceria controle de constitucionalidade.

“A descriminalização de um tipo penal criado a partir de uma discussão no Congresso Nacional” é dever do STF, se essa criminalização ofender a Constituição da República.

Caso o Congresso Nacional editasse pena de morte para situação diversa da guerra externa, pena de açoite, trabalhos forçados ou perpétua, há ofensa ao artigo 5o, XLVII, da CRFB. Permitir tortura como método investigativo para extrair confissão é contrário ao artigo 5o, III, da CRFB. Criminalizar heresia se choca com a liberdade religiosa do artigo 5o, VI, da CRFB. São várias as limitações ao poder político do Estado de criminalizar condutas. Uma passada de olho rápida pelo artigo 5o da CRFB permite averiguar que limitações ao poder punitivo é tema de boa parte de seus incisos. Isso tem sua razão de ser, pois todos os exemplos citados ocorreram historicamente.

Em diversas oportunidades, a Lei de Drogas, de problemática técnica, já teve regras declaradas inconstitucionais.

Seu artigo 44 foi declarado inconstitucional, pois previa a vedação de liberdade provisória, com ofensa ao artigo 5o, LVII, da CRFB, o princípio da presunção de inocência do qual decorre impossibilidade de executar penas antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. O STF declarou a inconstitucionalidade deste dispositivo, de modo que os requisitos atualmente são os usuais das prisões cautelares, tratadas como medida excepcional.

O chamado “tráfico privilegiado”, do p. 4o do artigo 33, não é equiparado a hediondo, ao contrário do tráfico de drogas do caput do mesmo artigo. Em consequência, cabível substituição por penas restritivas de direito. Essas decisões motivaram a edição da Resolução 5 de 2012 do Senado.

O STF também influenciou na aplicação da Lei de Drogas em diversos outros pontos, com decisões sobre aplicação do princípio da insignificância ao tráfico de drogas, inconstitucionalidade do regime integralmente e inicialmente fechado para crimes equiparados a hediondos. Merecem citação decisões sobre a inviolabilidade domiciliar, Avisos de Miranda e buscas pessoais.

O STJ, igualmente, tem por papel constitucional a interpretação da legislação federal e, por isso, esclarece vários pontos obscuros dessa Lei de Drogas, que abrem campo a arbitrariedades e a decisões muito díspares em casos similares. Todo sistema jurídico racional deve se preocupar com sua harmonia e com provimentos semelhantes em casos parecidos.

Não custa lembrar, apenas é possível “pretender legalizar ou descriminalizar, que é uma tese que pode ser sustentada”, por força de decisão do STF. Defender legalizar ou descriminalizar drogas já foi considerado apologia ao crime.

Não há nada de diferente ou especial em analisar a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas por ofensa ao artigo 5o, X, da CRFB. Isso faz parte da competência do STF, de exercer controle de constitucionalidade, prevista nos artigos 102 e seguintes da CRFB.

No exercício difuso de constitucionalidade, diversos juízes já reconhecem a inconstitucionalidade deste dispositivo. Cortes constitucionais de outros países, como é o exemplo da Colômbia e da Argentina, também já se manifestaram neste sentido.

A outra incompreensão é separar o campo “jurídico”, afeto aos juízes, do campo “político”, de atribuição de congressistas.

Esse equívoco é bastante comum ultimamente e é a maneira usual como esse tema é discutido na imprensa.

Não é, todavia, novidade e tampouco adstrito à realidade brasileira. Na Itália fascista, a exemplo, o ministro Rocco já reclamava:

“a magistratura não deve fazer política de nenhum gênero, não queremos que faça política governamental ou fascista, mas exigimos firmemente que não faça política antigovernamental ou antifascista, e isto é o que ocorre na imensa maioria dos casos” (ZAFFARONI, pp. 159/160)

Ensina Eugênio Raul Zaffaroni, jurista e magistrado argentino:

“Cada sentença é um serviço que se presta aos cidadãos, mas também é um ato de poder e, portanto, um ato de governo, que cumpre a importante função de prover a paz interior mediante a decisão judicial dos conflitos. A participação judicial no governo não é um acinte, mas é da essência da função judiciária: falar de um poder do Estado que não seja político é um contra-senso.

Por conseguinte, não seria possível ‘despolitizar’ o judiciário no sentido amplo da função essencialmente política que ele cumpre” (ZAFFARONI, p. 94)

Todo ato judicial é, por natureza, um ato político.

A confusão, neste tema, guarda relação com a vedação de exercício de atividades partidárias por juízes. Magistrados são proibidos pela Lei de Organização da Magistratura Nacional a se filiarem a partidos políticos e a exercerem atividade partidária. Não podem pedir votos, defender campanhas ou manifestar suas preferências eleitorais, seja em suas decisões ou publicamente, como em redes sociais ou entrevistas. O exercício da magistratura exige discrição.

Isso não é o mesmo que dizer que magistrados sejam pessoas desprovidas de preferências ideológicas. Como toda e qualquer pessoa, é natural e, até certo ponto, desejável, que assim o seja. Também é importante que haja juízes com ideologias diversas. Isso é fundamental para a dialética democrática e para não haver congelamento de critérios de julgamento.

O afastamento de juízes de atividades partidárias é deveras salutar. Inclusive, seria um aprimoramento institucional acentuar essa separação, com a estipulação de quarentenas, de modo a evitar que magistrados se valham do poder de seu cargo para se tornarem conhecidos e viáveis eleitoralmente.

“Somente esclarecendo os termos, distinguindo nitidamente entre ‘politização’ e ‘partidarização’, pode-se entender que ‘despolitizar’ o judiciário implica subtrair-lhe funções próprias, reduzindo seu poder até torná-lo incapaz de executar suas funções; por outro lado, ‘despartidarizar’ o poder judiciário significa democratizá-lo e, enfim, torná-lo idôneo ao exercício de suas funções manifestas” (ZAFFARONI, p. 96).

E são justamente essas funções manifestas do Judiciário a pedra de toque para afastar diversas incompreensões que pairam em atritos entre os poderes da república.

A pergunta que deve ser respondida para elucidar essa questão é sobre a legitimidade democrática de juízes. Ao contrário de parlamentares e chefes de executivo, juízes não são eleitos. Têm garantias de vitaliciedade e inamovibilidade. Prestam contas de seus atos não com a renovação de mandatos através de eleições, mas pela fundamentação de suas decisões.

Afinal, se a legitimidade democrática provém de eleições, o que explicaria, em uma democracia, juízes não serem eleitos? Melhor dizendo, se o Congresso é eleito pela população e tem por função legislar, qual legitimidade democrática dispõe um Poder Judiciário composto por magistrados que não são eleitos, para proferir decisões que afetam toda a sociedade?

Essa confusão decorre da incompreensão de elementos básicos a regimes democráticos. Democracia não é apenas a escolha de governantes por sufrágio universal, tampouco sinônimo da popularidade do governante. Diversos governos autoritários subiram ao poder através de eleições e gozaram de considerável apoio popular.

Para regime ser considerado democrático é fundamental reconhecer a dignidade intrínseca ao ser humano, titular de direitos fundamentais e inalienáveis, como sua vida e liberdade. Fundamentais e inalienáveis, mas limitados pela própria Constituição, que não reconhece nem a vida como direito absoluto, ao permitir pena de morte em determinados casos, além de diversas limitações à liberdade, como as penas de prisão.

Esses direitos fundamentais foram desenhados em pedra pela Constituição, são cláusulas pétreas e não podem ser suprimidos ou desconsiderados pelos poderes constituídos. Todas as pessoas são titulares desses direitos e seu destinatário é, em especial, o seu maior ofensor historicamente: o próprio Estado.

Regimes que negam a dignidade inerente ao ser humano e, com isso, abrem espaço para desrespeitar direitos de minorias, assim entendidos grupos vulnerabilizados por questões religiosas, políticas, raciais ou outras formas de discriminação, se afastam do ideal democrático. Há diversos exemplos de triste lembrança.

A democracia estabelece diversos mecanismos de divisão de poder justamente para evitar que as maiorias — já sairão vencedoras das eleições majoritárias para o executivo e terão o maior número de cadeiras no legislativo — massacrem as minorias. A estipulação de limites ao poder punitivo e a divisão de poderes parte da constatação histórica de que a concentração demasiada de poder leva ao abuso. Democracia é o oposto da ditadura da maioria.

A ideia de a função jurisdicional configurar poder em países democráticos, não meramente uma agência subalterna ao executivo ou ao legislativo, é justamente a de permitir aos juízes impor barreiras às vontades das maiorias, no que ofendam os direitos fundamentais das minorais. Essa função contramajoritária, que tanto irrita, é a principal razão de ser do Judiciário enquanto poder e o motivo mesmo de se tripartir o governo.

Disso decorre a legitimidade democrática dos juízes, por isso não são eleitos e por isso gozam de tantas garantias, necessárias a assegurar sua independência judicial. Por isso o Judiciário é referido como guardião da Constituição.

Essa função contramajoritária, de necessidade de respeito aos direitos de todos os cidadãos, permeia todo o texto da Constituição. Está inscrita no artigo 1º, III, da CRFB, que estabelece o princípio basilar da dignidade da pessoa humana. Também em seu artigo 3º, que estabelece ser objetivo fundamental da República Federativa do Brasil estabelecer uma sociedade livre, justa, solidária, sem pobreza, sem desigualdades regionais e sociais, além de promover o bem-estar de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. No artigo 5º, de direitos fundamentais, no 6º, de direitos sociais e em toda a concepção de tripartição de poderes, organização econômica e por aí vai.

Muito ensimesmados, importante reconhecer que a centralidade dessa necessidade de respeito ao outro, tanto do ponto de vista social quanto do pessoal, não provém de iluminação especial de estudiosos do Direito. Paira pelas artes, outras ciências e religião, pela cultura e também na simplicidade, para todos que desejarem vê-la.

A própria ideia do salutar instrumento democrático e contramajoritário, o controle de constitucionalidade, é fruto de decisão judicial, o sempre lembrado caso Madison v. Marbury, proferido pela Suprema Corte dos EUA em 1803. Já no período de 1953 a 1969, há muito assentadas as raízes desse controle, a Corte Warren (1) o utilizou para promover a chamada “Revolução Constitucional” nos EUA. Construções judiciais que estabeleceram parâmetros dentre os mais importantes para assegurar os direitos da população:

“é surpreendente, mas real, que muitos dos princípios da liberdade constitucional mais prezados pelos americanos tenham sido criados não pelos fundadores*, mas pela Suprema Corte durante este século (XX).” (SUSSTEIN, p. 122). * Nos EUA se chamam de ‘fundadores’ os constituintes de 1783.

Não se afirma, por outro lado, que em todas as situações de conflito entre cortes constitucionais e outros poderes, assista sempre razão ao Judiciário. É emblemático o embate ocorrido entre o presidente Franklin Roosevelt e a Suprema Corte dos EUA na década de 1930 (2). Utilizado o critério funcional explicitado, forçoso reconhecer a agressividade e equívoco dos posicionamentos da Suprema Corte.

Não é objetivo entrar no mérito do julgamento, apenas esclarecer que decidir sobre a constitucionalidade do uso de drogas faz parte da atribuição do STF.

Não obstante, como os resultados da decisão podem causar perplexidade, encerra-se o texto com o comentário sobre possíveis consequências jurídicas do julgamento.

O STF não analisará a constitucionalidade do tráfico de drogas, que continuará sendo crime, conforme inclusive o mandamento do artigo 5o, XLIII, da CRFB.

É possível que o STF reduza o alcance da lei, apenas para descriminalizar o uso da maconha. É plenamente possível determinar retirar alguma droga do campo da ilicitude, até por questão de coerência, pois o critério legal para tornar drogas ilícitas é causar dependência. Diversos estudos afirmam que algumas drogas lícitas, como o álcool, causam mais dependência e danos à saúde que a maconha.

Lado outro, caso o STF estabeleça critérios objetivos de quantidade de drogas que a população poderia portar, há situação de aparente contrassenso. Parece incoerente permitir posse de drogas ao tempo que os fornecedores dessas substâncias cometem crime de tráfico, equiparado a hediondo. Portugal adota exatamente essa linha de corte, ao permitir que a população porte determinada quantidade de drogas que, não obstante, continuam proibidas. Sua política de drogas é considerada uma das melhores e mais avançadas do mundo.

* Este texto representa a visão do grupo Repensando a Guerra às Drogas, composto por 48 integrantes oriundos da magistratura, Ministério Público, diplomacia, Defensoria Pública, do magistério e da advocacia.


Nota.

1 Diz-se corte Warren porque o presidente da Suprema Corte dos EUA se chamava Earl Warren.

2 A ideia de ativismo judicial é igualmente falaciosa e de certa maneira se assenta nessa divisão entre o campo político e outro jurisdicional. Basicamente, uma ideologia se apresenta como neutra e apolítica e acusa seus opositores de estarem agindo politicamente. Na verdade, os dois lados são igualmente políticos. Para explicá-la de maneira adequada, todavia, seria necessário escrever mais algumas páginas. Em suma, a ideia de “ativismo judicial” nasceu na época dos conflitos da Suprema Corte dos EUA com o executivo e o legislativo, de 1905 a 1937. Esse período de decisões costuma ser chamado de Era Lochner. Nessa época, o governo progressista de Franklin Roosevelt criticava as decisões liberais e conservadoras da Suprema Corte, com a afirmação de que seria um governo dos juízes e ativismo judicial. A Suprema Corte se valia de seu controle de constitucionalidade para invalidar leis trabalhistas e diversas medidas do New Deal, o programa econômico de Roosevelt que se mostrou acertado para reduzir o desemprego, por fim à crise de 1929, além de crescer a economia e reduzir desigualdade social. Essa época se encerrou com o julgamento do caso West Coast Hotel v. Parish. A partir, contudo, da Corte Warren, período de 1953 a 1969, houve a situação contrária, uma corte progressista, que reconheceu por exemplo a inconstitucionalidade da segregação racial, no caso Brown v. Board of Education e estabeleceu diversos direitos dentre os mais prezados pelos americanos e, por isso, é citada como a era de “Revolução Constitucional”, como lembrado no corpo do texto. Essa corte progressista passou a ser criticada por políticos e juristas conservadores insatisfeitos com o fim da segregação racial, como o presidente Richard Nixon e o juiz da Suprema Corte por ele nomeado, Antonin Scalia. Como explicado, concorde com a linha de Scalia ou de Warren, as decisões de ambos são políticas e refletem ideologias opostas. O conceito de ativismo judicial é critério imprestável em ambos os períodos citados. Para analisar qual dessas posições estavam corretas nesses conflitos de Roosevelt contra Suprema Corte da Era Lochner; Nixon e Scalia contra a Suprema Corte de Warren, repita-se, é também utilizável o critério funcional citado, de defesa de direitos de minorias e implementação de direitos fundamentais.


Referências bibliográficas:

SUSSTEIN, Cass (trad. José Adércio Leite Sampaio). A Constituição Parcial. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.

ZAFFARONI, Eugênio Raul (trad. Juarez Tavares. Poder Judiciário: Crises, acertos e desacertos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn
plugins premium WordPress

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor