No ultimo dia dia 3 de julho, o Supremo Tribunal Federal, julgando o mérito do Tema nº 698, de Repercussão Geral, fixou as teses segundo as quais:
1) A intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos Poderes. 2) A decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à administração pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado. 3) No caso de serviços de saúde, o déficit de profissionais pode ser suprido por concurso público ou, por exemplo, pelo remanejamento de recursos humanos e pela contratação de organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (Oscip).
A decisão exalta o direito social à saúde como direito fundamental, ao tempo em que também enaltece a atribuição de o Poder Judiciário poder intervir positivamente para efetivar dito direito, em atenção ao princípio da proibição à insuficiência.
E o direito social ao trabalho, é direito fundamental e, consequentemente, deve também gozar da mesma proteção estatal, vez que seria cláusula pétrea?
Para responder tal indagação, é preciso recordar que o legislador constituinte originário optou por ofertar o condão da fundamentalidade aos direitos sociais do trabalhador, tanto que dedicou, no Título II, que trata justamente dos direitos e garantias fundamentais, um capítulo inteiro destinado aos direitos fundamentais sociais, tanto os de defesa, quando os prestacionais (em sentido material ou jurídico).
O artigo 60, § 4º, IV do Texto Constitucional, que se constitui em limite material ao exercício do Poder Constituinte reformador, refere-se aos direitos e garantias fundamentais [1], sendo consequência inarredável a conclusão de que o legislador constituinte blindou determinados direitos presentes no Texto Constitucional originário, impedindo que tais pudessem ser tocados, corroídos pelo exercício do Poder Constituinte derivado, de reforma ou revisão. Assim, diante de tal proteção constitucional, não se pode sequer deliberar sobre proposta tendente a abolir ou mesmo modificar para diminuir o âmbito de proteção dos direitos fundamentais. Todos, sem exceção.
As vedações materiais as quais se refere somente preveem literalmente a proteção aos direitos e garantias individuais, estando, segundo interpretação meramente gramatical, alheios à proteção petrificada traçada pela Constituição aos direitos fundamentais sociais e até mesmo aos coletivos.
Como é repetido por todos [2] que tratam de hermenêutica constitucional, a interpretação gramatical é a mais pobre e, em um primeiro momento, refutada, para dar lugar à exegese sistemática e, sobretudo, valorativa, tendo-se que modernamente os direitos fundamentais, de defesa ou prestacionais, são entendidos como um grande sistema de valores e, como tais, vinculam entes públicos e particulares.
A interpretação no sentido de permitir a invasão dos direitos fundamentais sociais pelo legislador constituinte derivado, ou pelo Estado-legislador ordinário, despreza que o grande compromisso assumido já no preâmbulo da Constituição de 1988 foi constituir um Estado Democrático e Social de Direito e tal compromisso passa necessariamente pelo respeito aos direitos sociais dos trabalhadores já presentes no texto constitucional originário.
A própria Constituição já fornece a resposta, quando em seu artigo 1º, IV tenta equilibrar a balança social, atribuindo o mesmo patamar aos fundamentos do valor social do trabalho e da livre iniciativa, sendo certo que esta, tão desejada em um sistema capitalista como o brasileiro, não pode jamais ignorar aquele valor, sob pena da propriedade não cumprir a sua função social.
O raciocínio literal igualmente se desgarra da dignidade da pessoa humana, grande fundamento do Estado Democrático e Social de Direito e valor maior que informa todos os direitos fundamentais, sendo impossível o alcance desejado no texto constitucional, de uma sociedade livre, justa e solidária sem que haja uma plena observância dos direitos fundamentais sociais dos trabalhadores, tendo-se que o trabalhador oprimido, vacilante em seus direitos fundamentais, não se constitui livre, não sendo a relação entre capital e trabalho justa e, muito menos, solidária.
A interpretação literal também não encontra lugar na própria técnica utilizada para confecção da Constituição de 1988, que ora se refere aos direitos humanos, ora aos direitos fundamentais.
Em síntese, afastando a interpretação gramatical do texto constitucional, segundo a qual somente estariam cobertos pelo manto das cláusulas pétreas os Direitos Fundamentais individuais presentes no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, a conclusão inarredável é a de que todo o rol de direitos fundamentais sociais dos trabalhadores se revestem da proteção pétrea [3] em relação ao poder constituinte derivado e ao legislador ordinário. Nesse mesmo sentido, a doutrina de Sarlet, para quem é “virtualmente pacífica na doutrina internacional a noção de que — a despeito da diversa estrutura normativa e de suas consequências jurídicas — ambos os ‘grupos de direitos se encontram revestidos pelo manto da ‘fundamentalidade'” [4].
Raciocínio em contrário e meramente literal impede que todos os direitos coletivos sejam também protegidos pelo manto da petrificidade, levando o exegeta até a conceber que o mandado de segurança individual se constitui em cláusula pétrea, mas o coletivo, não, raciocínio que é um equívoco.
Dito isso e retornando à reflexão primeira, o STF, ao afirmar que o Poder Judiciário pode, sem ofender o princípio da separação dos poderes, intervir positivamente para estimular políticas públicas de fomento ao direito fundamental e social à saúde, reafirma o compromisso em proibir a insuficiência quando o Estado, legislador ou executivo, tenha que efetivar os direitos fundamentais sociais. Daí volta-se à pergunta inicial: essa mesma lógica pode ser aplicada para o direito fundamental social ao trabalho?
Não deveria haver tratamento diferente para direitos fundamentais sociais, afinal, ou a Corte Suprema tem uma doutrina acerca de tais direitos ou não tem, porque o tratamento diferenciado encontra óbice na própria observância do princípio da não discriminação. Todavia, desde que o STF fixou as teses na ADPF nº 324 e RE nº 958.252, o que se viu foi justamente o oposto da proteção que se destinou recentemente ao direito fundamental e social à saúde.
Analisando as razões de decidir tanto da ação de descumprimento de preceito fundamental, quanto o recurso extraordinário, há um principal argumento, constituído em torno da liberdade dos empregadores, bem assim na ausência de proibição na Constituição da terceirização de serviços, além de terem majoritariamente os senhores ministros chamado a atenção para o fato de que quando o Tribunal Superior do Trabalho proibiu a terceirização da terceirização em atividade-fim, por meio da Súmula nº 331, ofendeu o princípio da separação dos Poderes.
De fato, não há proibição constitucional explícita para se terceirizar serviços de forma ampla, e isso já é um argumento legalista que não se coaduna com a recente decisão do STF no que diz respeito à proteção do direito fundamental e social à saúde.
O TST, ao ter sumulado a temática, proibindo a terceirização em atividade-fim, nada mais fez do que atuar positivamente na ausência de uma política pública normativa ou, em outras palavras, o órgão de cúpula do Poder Judiciário trabalhista forneceu efetividade ao direito fundamental social ao trabalho, na sua vertente de direito prestacional que depende de uma prestação jurídica, não material.
Pode parecer esquisito ou até ofensivo ao princípio da separação dos poderes assim agir, mas o próprio STF, quando deseja dar efetividade a algum direito fundamental elaborando uma prestação jurídica, sobretudo na defesa de direitos de primeira geração, assim o faz, sempre embasado na inércia do Estado-legislador, como o fez na súmula vinculante nº 11, no reconhecimento da injúria racial como crime de racismo (HC 154.248), bem assim em reconhecendo a homofobia e transfobia como crimes (ADO 26 e MI 4.733).
É dizer, não existe lógica alguma para se tratar direitos fundamentais de forma tão diversa. Menos lógica reside no fato de tratar o direito fundamental social à saúde para que seja dada a sua mais alta efetividade, mesmo que isso dependa de uma prestação jurídica do Estado-juiz, e não se tenha a mesma racionalidade no que diz respeito ao direito ao trabalho.
Falou-se acima sobre as decisões de cúpula que liberaram a terceirização em toda e qualquer atividade, mas também recentemente o Supremo Tribunal Federal, julgando o mérito da ADI nº 5.994, manteve texto da reforma trabalhista que permite a pactuação da jornada 12×36 por meio de simples acordo individual, embora isso ofenda a literalidade do artigo 7º, XIII da CRFB/88, que prevê a necessidade de negociação coletiva para tanto.
É o Estado-juiz esvaziando o conteúdo protetivo do direito ao trabalho, materializado em um dos incisos do longo rol dos direitos fundamentais sociais dos trabalhadores.
Oxalá que os bons ventos hermenêuticos que fomentaram os senhores ministros a dar efetividade ao direito fundamental social à saúde estimulem também um melhor amadurecimento sobre os rumos da proteção ao trabalho.
Rosangela Rodrigues Lacerda é procuradora do Trabalho do Ministério Público do Trabalho da 5ª Região, professora-adjunta da Universidade Federal da Bahia, mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia, doutora em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo, professora convidada do curso de pós-graduação lato sensu da Faculdade Baiana de Direito, Cers, Ucsal, Unifacs e das escolas judiciais do TRT da 5ª, 6ª, 7ª e 16ª Regiões.
Silvia Teixeira do Vale é juíza do Trabalho no TRT da 5ª Região, mestra em Direito pela UFBA, doutora pela PUC-SP, pós-doutora pela Universidade de Salamanca, professora convidada do curso de pós-graduação lato sensu da Faculdade Baiana de Direito, Ematra5, Cers, Cejas, Ucsal e da Escola Judicial do TRT da 5ª, 6ª, 10ª, 13º e 16ª Regiões e diretora da Ematra5 (biênio 2019-2021).