Lamy e Canonica: Prevalência do controle concentrado

Tem gerado discussão o recente julgamento em que o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou tese vinculante no sentido de que “as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações” (Temas 881 e 885).

O julgamento em si ainda não finalizou (foram opostos embargos de declaração e também cabem questões de ordem), sendo que sequer é sabido o teor final da decisão para interpretar exatamente a sua aplicação, mas operadores do direito Brasil afora têm debatido amplamente o tema e o alcance da decisão.

Há quem afirme que o STF teria estabelecido a desconstituição “imediata” da coisa julgada (decisão judicial imutável) em casos individuais que discutem obrigações tributárias, gerando cobrança “automática” de tributos que outrora haviam sido declarados inexigíveis em ações individuais de contribuintes.

Mas, para melhor entender a situação, consideremos algumas circunstâncias.

O ano é 2007. Ao julgar a ADI nº 15, o STF definiu ser constitucional a incidência da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Fica a pergunta: desde 2007, os contribuintes que obtiveram decisão judicial favorável (transitada em julgado) no sentido de afastar o tributo deveriam recolher a CSLL? Ou deverão recolher apenas a partir de 2023, dado que o STF não efetuou modulação de efeitos na sua decisão.

Outro caso relevante remete a 2008. O STF entendeu pela constitucionalidade da incidência de Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSNQ) no que toca aos registros cartorários e notariais, quando julgou a ADI nº 3.089-2, proposta pela Associação dos Notários e Registradores do Estado de Santa Catarina (Anoreg-SC). O ISSQN pode ser considerado devido desde 2008, data da constitucionalidade declarada em controle concentrado, a despeito de já existir coisa julgada material constituída em processos individuais? Em caso positivo, desde quando seria devido?

Bom, sim. E não.

Primeiro, é preciso esclarecer questão processual. Quando se fala em coisa julgada, o STF não determinou sua desconstituição automática (posto que isso demandaria ação rescisória), mas apenas afirmou que cessaria a eficácia temporal da decisão transitada em julgado.

E detalhe importante: esse cessar de efeitos somente ocorre em casos de obrigações tributárias de trato continuado, justamente porque estas se renovam periodicamente e podem sofrer efeitos decorrentes de mudanças no ordenamento. A tese do STF não se aplica a obrigações tributarias isoladas, como o pagamento de ITBI, por exemplo, que é pago somente uma vez.

Além disso, a tese se aplica somente em casos onde foi reconhecida a inconstitucionalidade de tributos em sede de controle difuso de constitucionalidade, isto é, em casos individuais onde determinada lei foi interpretada inconstitucional. Isso porque a decisão geral que declarou a constitucionalidade (controle concentrado) repudia a suposta inconstitucionalidade reconhecida pela decisão individual (controle difuso).

Por fim, vale pontuar que, processualmente falando, uma decisão só cessaria a eficácia temporal da coisa julgada quando assim expressamente se declara. Os Temas 881 e 885 podem ser aplicados desde já sob o prisma de condutas materiais. Por iniciativa dos municípios ao cobrar o ISS dos cartórios, por exemplo.

De qualquer forma, é inegável que o recente julgamento organizou — de forma inovadora — os dois tipos de controle de constitucionalidade (concentrado e difuso), estabelecendo hierarquia entre eles no sentido de que o controle concentrado se superpõe ao difuso. Foi privilegiada uma visão macrojurídica pelo STF, em detrimento da microjurídica, por assim dizer. É também esclarecedor o modelo de relativização da eficácia da coisa julgada proferida em controle difuso, que passa a ser aplicado de forma automática, esclarecendo a desnecessidade da interposição de ação rescisória.

Se, por um lado, do ponto de vista técnico processual, certamente cabem críticas à tese, tendo em vista que ela é clara do sentido de que as decisões em ADI “interrompem automaticamente os efeitos temporais” da coisa julgada, por outro, agora, com a organização da prevalência do controle concentrado sobre o difuso, há maior previsibilidade no sistema. Os contribuintes devem se atentar aos julgamentos sobre (in)constitucionalidade proferidos pelo STF, para adequar quais tributos devem ser pagos, tendo em vista os efeitos imediatos dessa decisão concentrada.

Mas somente haverá tais segurança e previsibilidade se a tese do STF for aplicada daqui em diante; nunca retroativamente. Caso contrário, os efeitos poderão ser justamente contrários ao pretendido, pois nenhum contribuinte poderia sequer imaginar que, décadas depois, os efeitos da sua decisão individual cessariam automática e retroativamente, por conta da mudança de entendimento do STF.

Eduardo de Avelar Lamy é sócio do Lamy e Faraco Lamy Advogados, pós doutor pela UFPR com período de pesquisa no Instituto Max Planck em Luxemburgo, doutor e mestre pela PUC-SP e professor dos cursos de doutorado, mestrado e graduação da UFSC.

Consultor Júridico

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