Leandro Cabral e Silva: STF e descriminalização do aborto

O Código de Processo Civil (CPC) [1], de 2015, inaugurou o termo precedente na legislação brasileira, tonificando o sistema de precedentes judiciais por meio de todo um conjunto de regras voltadas à estabilidade da jurisprudência, onde instâncias ordinárias submetem-se aos precedentes dos tribunais superiores, e colegiados vinculam-se a seus próprios precedentes. E, facultou ao julgador deixar de aplicar um precedente, excepcionalmente, mediante distinção ou superação devidamente fundamentada.

Uma das primeiras experiências sob esse novel sistema ocorreu em 11/2016, quando a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que não caracterizaria crime de aborto [2] a interrupção da gravidez realizada dentro dos seus primeiros três meses [3].

Neste artigo, dedicamo-nos a avaliar se, passados quase sete anos, mostra-se cabível e oportuno realizar a superar tal entendimento à luz do CPC.

Superação de precedentes judiciais no CPC

O CPC disciplina a formação e aplicação de precedentes, bem como a sua modificação, ao que exige fundamentação adequada e específica, à luz dos princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia [4], além de sugerir uma ampla discussão previamente à alteração de tese jurídica [5].

É da essência do precedente vinculante a obrigatoriedade da sua observância em prol da uniformidade interpretativa do ordenamento comum a todos os jurisdicionados [6].

Demanda expressa motivação a superação de precedentes ou a existência de distinção no caso em julgamento, quando se deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sob pena de a decisão ser considerada não fundamentada e, pois, carente de elemento essencial, nos termos do artigo 489, §1º, VI, do CPC [7].

Marinoni elege como parâmetros à superação os padrões de congruência social — proposições morais, políticas e de experiência  e de consistência sistêmica  coerência com as proposições que sustentam a jurisprudência da própria Corte. Na falta desses padrões, o precedente sujeita-se à (ou requer) superação [8].

Em adição, Marinoni também aponta a necessidade de superação do precedente quando ocorre alteração da compreensão sobre o direito que lhe é objeto, originada da doutrina ou da própria jurisprudência, ou quando lastreado em um equívoco.

E pontua, ainda, a necessária ponderação entre os valores da estabilidade e os valores que definem o imperativo da superação, fazendo prevalecer estes últimos [9], em razão do dinamismo do precedente.

Identificados critérios objetivos à superação de precedentes de acordo com a legislação em vigor, passamos a analisar o tema da descriminalização do aborto pelo STF.

Descriminalização do aborto na interrupção da gestação até o terceiro mês

No julgamento do HC 124306/RJ, em 2016, a 1ª Turma do STF conferiu interpretação conforme a Constituição de 1988 aos artigos 124 a 126 do Código Penal para excluir da sua subsunção a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre, sob o entendimento de que a criminalização, em tal hipótese, violaria direitos fundamentais da mulher e o princípio da proporcionalidade.

Entre os direitos fundamentais estariam: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, opostos à imposição estatal de se manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher de conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante quanto aos efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher frente ao homem, no sentido de se respeitar a vontade da mulher de interromper a gravidez e da incapacidade do homem à gestação.

O STF também ponderou o impacto da criminalização sobre mulheres pobres, impedindo o acesso a médicos e clínicas privadas, e mesmo ao sistema público de saúde para os procedimentos cabíveis, do que decorre a multiplicação de casos de automutilação, lesões graves e óbitos.

Em relação ao princípio da proporcionalidade, a Suprema Corte elegeu os seguintes motivos: 1) a tipificação penal do aborto constitui medida de duvidosa adequação para proteger a vida do nascituro, por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; 2) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; 3) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios.

Embora uma decisão de Turma do STF em sede de HC não caracterize um precedente na literalidade do CPC (i.e., decisão vinculante), é considerado como tal por sua relevância social e pela profundidade da análise engendrada pela Suprema Corte.

A discussão voltou ao STF sob a ADPF nº 442, distribuída em 15/03/2017 [10], com pleito pela inconstitucionalidade do crime de aborto em caso de interrupção voluntária da gravidez até o terceiro mês de gestação, contando com ampla participação de entidades da sociedade civil, como amicus curiae e no bojo de audiência pública. A ação ainda aguarda apreciação pelo Pretório Excelso.

Pois bem. À luz dos requisitos elencados por Marinoni [11], não nos parece oportuno, ao menos ainda, a superação do precedente tirado do HC 124306/RJ, seja a favor ou contra a descriminalização do aborto em caso de interrupção voluntária da gravidez até o terceiro mês de gestação, antes sendo imperioso construir um efetivo precedente a respeito nos termos do CPC, o que se espera ocorra no julgamento da ADPF nº 442.

De fato, da leitura atenta do acórdão vazado no HC 124306/RJ, nota-se que o seu resultado foi até inusitado por ocorrer no bojo de um HC julgado por órgão fracionário, contexto que não guarda consonância com a formação de precedentes prescrita no CPC.

Para além disso, a falta de uma evolução no debate produz um sentimento de inalteração dos contornos relevantes daquele julgamento vis-à-vis os requisitos objetivos da superação.

Portanto, em prol da plena realização do sistema de precedentes judiciais, a começar pela etapa da sua formação, somado ao balizamento conferido pelos princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia, somos da opinião de que, para hoje, ainda carecemos de um real precedente acerca da descriminalização do aborto para, talvez após, submetê-lo ao teste de superação.

Considerações finais

O legislador foi bastante cauteloso ao definir condições para que a jurisprudência seja modificada, sobretudo para se evitar a ruptura da segurança jurídica mediante o chamado “efeito-surpresa”, inclusive sugerindo ampla e prévia discussão da alteração pretendida, de modo a legitimar e pavimentar o novo entendimento e situá-lo frente à jurisprudência contemporânea, mas sem ferir a sua estabilidade.

Apesar de o CPC não definir as circunstâncias que justificariam a utilização do instituto da superação, ou seja, um rol de condições ou requisitos ao seu cabimento, depreende-se do CPC que o seu uso há de ser coerente e comprometido com a estabilidade da jurisprudência, em prol da plena realização do sistema de precedentes judiciais.

No tocante ao precedente firmado no HC 124306/RJ, parece-nos não ser oportuna a sua superação, dada a ausência de alteração relevante na percepção de congruência social e consistência sistêmica do entendimento vazado em 2016, bem como a relativa manutenção da compreensão do direito que lhe é objeto.

Por certo, a sensação de que o contexto de 2016 não se alterou no quanto relevante a justificar a superação de tal precedente pode ter como principal razão a própria carência de ampla discussão sobre o tema, inclusive pelo Congresso, mas tal fato não justificaria, a nosso ver, a imposição de um viés à superação na ponderação entre os valores da estabilidade e os valores que definem o imperativo daquela.

Espera-se que o julgamento da ADPF nº 442 venha a produzir um real precedente no tema em análise e oportunizará, tempos após, a aferição da sua congruência social e consistência sistêmica para fins de eventual superação.

 

 

Referências

ABBOUD, Georges. Do genuíno precedente do stare decisis ao precedente brasileiro: os fatores histórico, hermenêutico e democrático que os diferenciam. Revista de Direito Da Faculdade Guanambi, v. 2, nº 01, p. 62-69, 2016.

BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, 1988, 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 28 Abr. 2023.

_______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 25 Abr. 2023.

_____.  Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, 1940. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 28 Abr. 2023

CHUEIRI, Vera Karam de; SAMPAIO, Joanna. Coerência, integridade e decisões judiciais. Revista Nomos e Revista de Estudos Jurídicos Unesp, 2012. Disponível em: https://www.academia.edu/1970929/Coer%C3%AAncia_Integridade_e_Decis%C3%B5es_Judiciais. Acesso em: 25 Abr. 2023.

COMPOSIÇÃO e organização do Superior Tribunal de Justiça para a formação de precedentes eficazes. Revista de Direito Público, Brasília, v. 18, nº 98, p. 778-805, Abr/Jun. 2021. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/3615/pdf. Acesso em: 25 Abr. 2023.

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 6ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters, 2019.

MELLO, Patrícia Perrone Campos; BAQUEIRO, Paula de Andrade. Distinção inconsistente e superação de precedentes no Supremo Tribunal Federal. In: Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 8, nº 1, 2018. Disponível em: https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/RBPP/article/view/4615. Acesso em: 24 Abr. 2023.

ROCHA, Márcio Oliveira, COSTA, Eduardo Henrique, CAMELO, Natália Tenório Fireman. Coerência e Integridade na formação dos precedentes judiciais: a influência de Ronald Dworkin no modelo brasileiro. Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife. Vol. 92, nº 01, 2020, p. 132-148. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/ACADEMICA/article/view/248421. Acesso em: 23 Abr. 2023.

Leandro Cabral e Silva é advogado em Brasília, mestre em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Consultor Júridico

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