O projeto que muda o entendimento do STF: entendamos o imbróglio
Dias atrás a Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei pelo qual em todos os julgamentos “em matéria penal ou processual penal em órgãos colegiados, havendo empate, prevalecerá a decisão mais favorável ao indivíduo imputado“.
Estabelece também que qualquer autoridade judicial poderá expedir de ofício ordem de Habeas Corpus, individual ou coletivo. O HC poderá ser concedido de ofício pelo juiz ou pelo Tribunal em processo de competência originária ou recursal, ainda que não conhecidos a ação ou o recurso em que veicula pedido de cessação de coação ilegal.
De pronto, aqui o que impressiona é ter que colocar na lei a coisa mais sagrada da ordem pública nos ordenamentos do mundo: a liberdade e seu remédio heroico — o HC. Mas sejamos otimistas: melhor colocar na lei que pode do que colocar “que não pode”.
No específico, o projeto vem para espancar qualquer dúvida sobre o empate e institucionalizar os habeas de ofício. Corretíssima a Câmara.
Mientrastanto, no Supremo Tribunal Federal ocorreu julgamento em que se decidiu em direção contrária ao que dispõe o projeto. Para o STF (ver aqui), vale o regimento interno, artigo 150, pelo qual, nos julgamentos das turmas, o empate favorecerá o réu apenas nos Habeas Corpus e recursos em matéria criminal, exceto o recurso extraordinário.
Nas demais ações, se houver empate, a decisão será adiada até se colher o voto do ministro que estava ausente. Caso o julgamento não seja finalizado em até um mês, por ausência, posto vago, impedimento ou licença, será convocado ministro da outra turma, na ordem decrescente de antiguidade.
A questão à luz do Estado Constitucional que privilegia o cidadão frente ao Estado
A questão é antiga. Surgiu bem antes do Estado Constitucional. Aliás, surgiu antes do logos. Nos tempos em que o mito explicava o mundo.
Esclareço. Os gregos já sabiam que o empate deveria beneficiar o réu. Tanto isso é verdade que a juíza Palas Athena, no julgamento de Orestes (que matou a mãe e o amante), — foi o primeiro julgamento da história do ocidente, embora na mitologia — votou para empatar e logo depois proclamou o resultado: o primeiro in dubio pro reo do mundo.
Na peça de Ésquilo (Eumênidas, da trilogia Oresteia), o resultado foi de 6 a 5 (eram 11 jurados). A juíza (Deusa Palas Athena), vendo que o Estado é maior que o indivíduo, vota como em um escabinato (“juntarei meu voto àqueles que vão para Orestes”) e, uma vez empatado o placar, na sequência declara Orestes absolvido.[1]
Quantas lições podemos tirar daí. No Direito, no mínimo cinco grandes temas.
Os gregos sabiam das coisas. Estado gigante x individuo fraco. Todavia, o Brasil parece não entender bem essa relação. Há controvérsia no STF. Agora o parlamento resolve.
Chegamos atrasados (e ainda sequer resolvemos isso no Carf).
Tirante os protestos do deputado Dallagnol (e do ultradireitista J.R. Guzzo, que odiou o projeto da Câmara), veremos se as lições dos gregos são ou não relevantes: entre o Estado e o cidadão, havendo empate, a lei deve ou não proteger o mais fraco?
Falta também acabarmos com o outro adágio, o do “in dubio pro societate”, que não está escrito em lugar nenhum e é usado como se fosse norma.
Por fim, mandou bem também o projeto ao tratar do HC de ofício. Registro apenas que isso não deve ser usado para negar liberdades e, em seguida, usar o poder discricionário para a concessão de ofício.
Atualmente o STF e o STJ fazem algo muito estranho: não conhecem do habeas corpus e, por vezes, conhecem-no de ofício. Em termos de uma epistemologia jurídica, isso é incompreensível.
Aprovado definitivamente o projeto e sancionado (penso que isso tudo ainda vai demorar), esperemos para ver se o jurisprudencialismo não redefine o sentido da norma. Afinal, no Brasil há uma predominância do realismo jurídico. No caso, o STF já vem mostrando que seu entendimento é diferente daquela do Parlamento.
A ver no que vai dar.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor em Direito, autor de Hermenêutica Jurídica E(m) Crise e Verdade e Consenso.