Hoje falarei sobre hermenêutica no ludopedismo. Traduzindo: interpretação e aplicação jurídica no futebol. Arbitragem.
O pênalti que não foi marcado a favor do Grêmio no jogo contra o Corinthians no dia 18 de setembro de 2023 foi reconhecido como erro pela Comissão de Arbitragem, a mais alta autoridade da CBF na matéria. Verbis:
— Aos 49 minutos da segunda etapa, o atleta número 9 da equipe de branco e preto, em ação de bloqueio, com o braço em posição antinatural e aumentando seu espaço corporal, intercepta um cruzamento à área. O bloqueio da bola com o braço nessa ação caracteriza a infração de pênalti, portanto uma penalidade deveria ser marcada no campo de jogo. E quando não marcada, o VAR deveria recomendar revisão para tal ação.
Pode-se afirmar, assim, que a informação trazida pela comissão se traduz em assumir de erro de arbitragem, uma vez que deixa de observar a recomendação da International Football Association Board.
Isso é erro de fato ou erro de direito? Erro de fato é, por exemplo, quando o arbitro erra por “questão de interpretação”. Fica na zona da ambiguidade. Zona da penumbra. Em Herbert Hart, que, aliás, faz a análise a partir do jogo de críquete que já adaptei para o futebol (ver aqui), chama-se de “zona da franja”, “cinzenta”. Nesses casos, Hart dirá que o juiz atua de forma discricionária. Sendo mais simples: trata-se de haver dúvida e o arbitro escolher uma de duas soluções. Simples assim.
Já o erro de direito ocorre quando a arbitragem interpreta de forma errada a própria regra do jogo — e isso possibilita sancionar de nulidade a partida. No mínimo. Qual seria a sanção se o pênalti sonegado ocorre no final de um jogo que está empatado? Confesso que não sei.
No caso concreto, o árbitro, intencionalmente (a presunção é contra ele, como mostro mais adiante), deixa de marcar a penalidade, ignorando as regras. Passando por cima. Tinha a sua disposição possibilidade de não errar. Isso se chama objetividade interpretativa. Não há margem de escolha. Se o fizer, errará não sobre o fato — que é incontroverso por causa da imagem — e, sim, sobre o próprio direito. Afinal, é o direito (dever ser) que dá sentido ao ser (fato) — e isso está em outro mestre, Hans Kelsen.
Outro elemento que aponta para erro de direito é de que um dos componentes do VAR disse que fora pênalti. Embora os outros dois tenham errado (e por isso todos foram afastados-punidos), o fato de um deles levantar a questão obrigava o arbitro a verificar o VAR — e isso sacramenta o erro de direito.
Aqui está o busílis: o erro de direito não está em o árbitro não ter marcado aquilo que poderia ter visto de forma superficial, fora de ângulo ou algo assim. O erro está em não consultar a tecnologia — cuja obrigação nas circunstâncias tais está na lei.
A própria comissão diz isso: nessas circunstâncias a consulta ao VAR é obrigatória. Ao não proceder desse modo, o árbitro mostrou intenção de persistir no erro. Foi o erro de direito acerca de não consultar sobre a possibilidade de erro — que seria resolvido pela tecnologia.
Em síntese, o arbitro negou-se a consultar a prova científica — o VAR. Por isso, não se tratou de erro sobre o fato; foi sobre a interpretação da lei que o obriga a consultar o VAR. Eis o erro de direito e sobre o direito.
Uma questão importante: os conceitos de erro de fato e erro de direito já não podem ser interpretados como o eram ao tempo em que não existia tecnologia. Hoje, com o VAR, altera-se o paradigma hermenêutico-interpretativo e a noção de evidência, que já não é testemunhal, passando a ser cientifica-objetiva. Não há como brigar contra a imagem, diz a linguagem popular — e com correção. Mormente se essa imagem é conclusiva.
Ademais, a confissão da comissão é elemento fundante e confirmatório do erro de direito.
Os clubes têm de começar a questionar os erros. Há que se alterar o patamar de compreensão da diferença entre erro de fato e erro de direito. Não pode haver niilismo interpretativo no futebol. Afinal, o VAR veio para diminuir o relativismo interpretativo no futebol, muito embora em termos práticos, principalmente no traçar a linha de impedimento, aumentou-se esse grau de manipulação. Sobre isso também já escrevi. O problema de como e do momento em que se traça a malsinada linha ou as linhas. Muita vigarice rola nesses casos.
Não podemos cair em uma contradição performativa: se a tecnologia veio para diminuir o erro humano, por qual razão o árbitro, tendo a obrigação de consultar a máquina, recusa-se a isso? E aqui está o ponto: essa recusa é presunção de que houve erro de direito. Presunção contra o árbitro. Assim deve ser lido. Simples assim.