Leonardo Corrêa: PL 2.925, poucos acertos e erros cruciais

Uma das funções principais do mercado de capitais é permitir que o cidadão comum participe dos resultados provenientes do capitalismo. Foi isso que ouvi do saudoso professor Michael L. Wachter no curso de corporations na Universidade da Pennsylvania. É um ângulo pouco usual na academia. Wachter era economista de formação, sua percepção do direito, obviamente, tinha a influência da ciência lúgubre (apelido da economia por ela tratar da escassez). Mesmo conhecendo todas as nuances do direito societário americano, ele tinha um olhar diferente.

Por óbvio, o cidadão comum não participa do mercado com a força dos investidores institucionais e dos controladores. Mas, nem por isso, ele pode ser visto como menos relevante. Cumpre lembrar que, no Brasil, a exposição de motivos da Lei 6.404/1976 veio com a seguinte ponderação de Mario Henrique Simonsen:

“O Projeto visa basicamente a criar a estrutura jurídica necessária ao fortalecimento do mercado de capitais de risco no País, imprescindível à sobrevivência da empresa privada na fase atual da economia brasileira. A mobilização da poupança popular e o seu encaminhamento voluntário para o setor empresarial exigem, contudo, o estabelecimento de uma sistemática que assegure ao acionista minoritário o respeito a regras definidas e equitativas, as quais, sem imobilizar o empresário em suas iniciativas, ofereçam atrativos suficientes de segurança e rentabilidade.”

Respeitar o minoritário é primordial, inclusive como instrumento para estímulo à expansão do mercado de capitais. Se se quiser que o cidadão participe do mercado, usando sua poupança, deve-se garantir direitos a ele. Em uma analogia, as corporações podem ser vistas com “pequenos países”, cujo estatuto seria a sua constituição. As regras que regulam o mercado de ações devem ser feitas para mitigar o poder de quem detiver posição dominante. Lord Acton falava que “o poder tende a corromper. E o poder absoluto corrompe absolutamente”. E Adam Smith, o pai da economia, demonstrou a necessidade de um mínimo moral para que a mão invisível do mercado operasse (Teoria dos Sentimentos Morais). Sem isso, o capitalismo não funciona.

Pois bem. Recentemente, foi apresentado o PL n.º 2.925/2023. Tal Projeto de Lei visa alterar dispositivos nas leis 6.385 e 6.404, ambas de 1976, que tratam, respectivamente, do funcionamento da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e da Lei das Sociedades Anônimas. Como sói acontecer, a intervenção legislativa não enfrenta a realidade e, na verdade, terá efeito contrário no respeito aos minoritários e à expansão do mercado de capitais. Infelizmente, a falta de entendimento da realidade tem assombrado o processo legislativo brasileiro. Mira-se em um dever ser abstrato sem considerar as variáveis do dia a dia. Ou, em alguns casos, há captura regulatória e os grupos de interesse buscam otimizar a sua própria posição. O leitor que decida qual seria a hipótese do PL em questão, após ler os comentários que seguem.

O PL não é de todo ruim, ele dá mais poder para a CVM. Isso é positivo, uma vez que, atualmente, a Comissão tem um enforcement bem limitado. Se ela deve proteger o mercado, ela precisa de instrumentos efetivos. Punir cinco ou dez anos depois, não resolve o problema e não otimiza o funcionamento do mercado de capitais. Tirando isso, começam os problemas. O artigo 27-H, por exemplo, é um festival de nonsense:

“Artigo 27-H. Os investidores legitimados poderão propor, em nome próprio e no interesse de todos os titulares de valores mobiliários da mesma espécie e classe, ação civil coletiva de responsabilidade pelos danos decorrentes de infrações à legislação ou à regulamentação do mercado de valores mobiliários.

§1º São legitimados para propositura da ação os investidores titulares de valores mobiliários que atendam a, no mínimo, um dos seguintes requisitos:

I – representar percentual igual ou superior a dois inteiros e cinco décimos por cento dos valores mobiliários da mesma espécie ou classe; ou

II – possuir valor igual ou superior a R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais), atualizados anualmente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

§2º A titularidade dos valores mobiliários será aferida no momento imediatamente anterior àquele em que os danos alegadamente se materializaram.

§3º O investidor não perderá sua legitimidade para a causa na hipótese de alienar a sua participação posteriormente.

§4º A Comissão de Valores Mobiliários poderá modificar os critérios de legitimação dos investidores previstos no §1º, mediante a fixação de escala em função do valor do capital social ou o uso de outros parâmetros que vierem a ser estabelecidos em regulamentação.

§5º Proposta a ação, os autores deverão comunicar o emissor para que este divulgue o fato ao mercado, na forma estabelecida na regulamentação editada pela Comissão de Valores Mobiliários.

§6º O investidor prejudicado que atenda aos requisitos de legitimidade previstos no §1º poderá intervir no processo como litisconsorte, desde que o faça no prazo de trinta dias, contado da data de divulgação da propositura da ação ao mercado, nos termos do disposto no §5º.

§7º A Comissão de Valores Mobiliários poderá prestar esclarecimentos e acompanhar o processo, nos termos do disposto no artigo 31 desta Lei, sem prejuízo de sua legitimidade, na forma prevista na Lei nº 7.913, de 7 de dezembro de 1989.

§8º A propositura da ação coletiva não impede os demais interessados de propor ação de indenização a título individual, desde que não tenham intervindo no processo como litisconsortes.

§9º É lícita a transação nas ações de que trata o caput, desde que homologada pelo juiz, mas seus efeitos não prejudicarão os investidores que dela não forem parte.

§10. Na hipótese de improcedência do pedido, os autores serão condenados ao pagamento de honorários de sucumbência, estabelecidos sobre o valor do prêmio pleiteado, na forma prevista no inciso III do §11.

§11. Em caso de procedência do pedido formulado na demanda judicial:

I – a condenação poderá ser genérica, com o reconhecimento da responsabilidade dos réus pelos danos e o estabelecimento de parâmetros claros e precisos para o cálculo das indenizações individuais;

II – a sentença fará coisa julgada erga omnes, exceto quanto aos investidores que tiverem optado pela propositura de ações individuais; e

III – os réus deverão pagar aos autores da ação prêmio de vinte por cento sobre o valor da indenização, do qual serão descontados os honorários de sucumbência.

§12. Na hipótese de haver mais de um autor ou litisconsorte, o juiz repartirá o prêmio entre eles, conforme a sua contribuição para o resultado do processo.

§13. Na hipótese de a condenação ser ilíquida, sua liquidação e execução serão promovidas individualmente pelos investidores prejudicados.

§14. Decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, a liquidação e a execução da sentença poderão ser promovidas pelos autores da ação, pelo Ministério Público ou pela Comissão de Valores Mobiliários, hipótese em que a indenização será revertida para o fundo de que trata o artigo 13 da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985.”

Cria-se, com esse dispositivo, mais uma class action à brasileira. Para variar, ignora-se o princípio democrático que deveria reger uma class action. Aliás, não se sabe a razão pela qual isso sempre foi categoricamente negligenciado no Brasil. As class actions americanas são um instrumento para concentração de litígios semelhantes. Mas elas são fundadas em dois princípios fundamentais: 1) a definição do lead plaintif; e, 2) a deliberação assemblear dos membros da classe representados pelo lead plaintif. O dispositivo acima ignora a questão. Sendo assim, se for uma ação coletiva, como se dará a representação de todos os lesados? Eles terão voz, ou serão apenas instrumentos?

Por essa razão, já seria melhor riscar o dispositivo em questão da proposta. Vai gerar confusão e será pouco efetivo. Mas a coisa piora. Essa ação pode tramitar em conjunto com as ações dos artigos 159 e 246 da Lei 6.404/1976, criando uma superposição de demandas que pode levar a julgamentos contraditórios. Ao invés de concentrar — como se fez nos EUA com as class actions  estaríamos criando dispersão de demanda. Vai ser uma barafunda, e dificílimo desatar os nós processuais que essa ação poderá gerar.

Além disso, o dispositivo em questão traz para o ordenamento brasileiro a famigerada regra da contemporaneidade. Para ser legitimado, o acionista teria de ser titular da ação no momento do dado. A questão já foi objeto de debate e foi tratada com maestria pelo doutor João Accioly, Diretor da CVM, em artigo para a revista Capital Aberto. Lá, ele refuta categoricamente os argumentos dos que defendem a tese da contemporaneidade. Esse dispositivo pode contaminar as ações dos artigos 159 e 246 da Lei 6.404/1976.

E essa preocupação é legítima em um país onde o próprio Superior Tribunal de Justiça fez uma confusão danada com as ações dos mencionados artigos, criando uma exigência não prevista em lei. Se isso acontecer, o que impede o STJ de entender que a questão da contemporaneidade poderá ser estendida para os mencionados dispositivos. Todo cuidado é pouco.

Já que adentramos aos artigos 159 e 246 da Lei 6.404/1976, vale tecer comentários sobre as propostas de alteração. Elas não são de todo ruins. A representatividade foi mais bem delineada, saindo da rigidez dos 5% que já havia sido mitigada pela CVM. Criou-se um prêmio para incentivar à propositura de ação contra os administradores, o texto anterior não contém isso. Mas os dispositivos sobre o prêmio, tanto na 159 quanto na 246, ficaram confusos:

“Artigo 159.

§5º-A O administrador, se condenado, além de reparar o dano e arcar com as custas e as despesas do processo, pagará prêmio de vinte por cento ao autor da ação, calculado sobre o valor total da indenização devida, do qual serão descontados os honorários de sucumbência”.

“Artigo 246.

§2º O acionista controlador, se condenado, além de reparar o dano e arcar com as custas e as despesas do processo, pagará prêmio de vinte por cento ao autor da ação, calculado sobre o valor total da indenização devida à companhia, do qual serão descontados os honorários de sucumbência”.

Na lei anterior, o prêmio total  que existia apenas na ação do 246  era de 25%. Curiosamente, nos termos da lei de 1976, o advogado ficaria com 20% e o acionista com 5%. A falta de racionalidade econômica era gritante. Quem tem mais risco recebe menos. O mercado resolveu a questão, e os 25% acabavam sendo divididos entre o acionista e os advogados. A redação nova, entretanto, implica em uma redução do prêmio total de 25% para 20%, acrescidos dos honorários de advogado em cima dos 20%. O racional dessa redução não foi explicado. E a palavra ‘descontados’ tem sentido equívoco. Seria melhor dizer: “os honorários de sucumbência serão calculados sobre o montante do prêmio de 20%.”

É importante lembrar que essas demandas de responsabilização são a última fronteira para garantir o respeito aos minoritários. Eles se desdobram, normalmente, após todos os gatekepers falharem. Falha a governança, falham os advogados, falham as auditorias, falha o regulador, e, como decorrência de todas essas falhas, o acionista minoritário poderá atuar como último recurso para defender o respeito à lei e à boa governança.

Nesse contexto, é melhor manter o sistema dos artigos 159 e 246 da Lei 6.404/1976  com as alterações propostas  e riscar do Projeto de Lei o malsinado artigo 27-H que cria mais um monstrengo processual, sem qualquer necessidade. Seria prudente, também, rever a razão pela qual o prêmio de 25% foi reduzido para 20%. Isso, definitivamente, não está alinhado à análise econômica do direito, no que tange ao desincentivo para práticas de ilícitos.

A rigor, o legislador deveria agir para que as ações não existissem, criando incentivos para que os administradores e controladores atuem no limite da Lei. Isso, sim, pode representar mais respeito aos minoritários. Por fim, uma medida de prevenção aos litígios seria manter o conflito formal, que recentemente foi abandonado pela CVM. Todos fazem análise de custo-benefício ao tomar decisões (Gary Becker, Crime and Punishment).

Há um incentivo econômico para se votar conflitado e conseguir o que se almeja no curto prazo, pois a punição só vem muito tempo depois, por vezes em multas irrisórias nos processos sancionadores da CVM. Na conta, muitas vezes vale a pena agir de forma desleal e ilegal e deixar que o problema “se resolva” com o passar do tempo. O conflito formal impede que esse incentivo perverso se opere, e, portanto, deveria ser positivado no ordenamento jurídico. O Brasil anda mal na governança corporativa, principalmente pela grande condescendência com conflitos de interesses.

Leonardo Corrêa é sócio de 3C LAW | Corrêa, Camps & Conforti, graduado pela PUC-Rio, com LL.M pela University of Pennsylvania (EUA).

Consultor Júridico

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