Letícia da Silva Moura: Concurso universal de credores

A decretação da falência inaugura o concurso universal de credores  instrumento jurídico-processual responsável por assegurar a distribuição isonômica e proporcional dos recursos arrecadados durante o processo de falência , regido, sobretudo, pelo princípio basilar do direito falimentar: par conditio creditorum.

Em suma, o princípio vigente remonta a preocupação histórica do legislador  que remonta às raízes do instituto com o Direito Romano  em assegurar que créditos da mesma natureza sejam tratados de forma uniforme e satisfeitos de modo proporcional.

Nesse ponto, seja no âmbito do Código Civil ou da Lei de Recuperação de Empresas e Falência (LREF) (Lei n° 11.101/2005), declarada a insolvência, cada um dos credores estará sujeito a um rateio, recebendo proporcionalmente ao quantum do seu crédito o que remanescer do patrimônio colocado à venda [1]. À vista disso, a modulação de preferências e prioridades na falência assegura que os pagamentos sejam efetuados na ordem, na forma e no tempo descritos em Lei específica.

Nas palavras do saudoso jurista Rubens Requião [2], “em vista das garantias instituídas por lei e as legitimamente constituídas pela convenção das partes, para assegurarem o cumprimento das obrigações creditícias, a Lei de Falências as classifica num esquema de preferências. Mas, na verdade, a classificação das preferências no processo falimentar resulta do inter-relacionamento do direito falimentar com o direito civil, sede principal da disciplina das preferências creditícias”.

Assim, resgatando os ensinamentos civilistas sobre o assunto, entende-se por preferência o direito conferido ao credor de ordenar seu crédito, de acordo com a categoria deste, estabelecida em Lei ou instrumento contratual [3]. Por sua vez, os privilégios consistem em direito pessoal de preferência de o credor ser pago em primeiro lugar. Tanto o privilégio geral, atinente a todos os bens do devedor (artigo 965 do Código Civil), como o especial alusivo a certos bens do devedor (artigo 964 do Código Civil) decorrem de Lei [4].

Isto posto, trazendo esses ensinamentos à disciplina falimentar atual, antes de propriamente o pagamento dos credores se iniciado, os ativos arrecadados que não pertenciam ao falido devem ser restituídos aos seus proprietários com preferência (artigo 85 da LREF). Feito isso e após a realização do ativo, seguem-se os pagamentos, que devem obedecer à ordem de preferência (artigo 149 da LREF). Essa ordem de preferências prevê a satisfação dos credores extraconcursais (artigo 84 da LREF) e, em seguida, dos credores concorrentes ou concursais (artigo 83 da LREF), na ordem dos seus respectivos incisos.

Instituída essa hierarquia, é importante consignar a existência de duas classes de credores prioritários, cuja precedência sobre as classes supracitadas é absoluta: 1) os créditos trabalhistas de natureza estritamente salarial vencidos nos três meses anteriores à decretação da falência, até o limite de cinco salários-mínimos por trabalhador (artigo 151 da LREF); e 2) as despesas cujo pagamento antecipado seja indispensável à administração da falência (artigo 150 da LREF).

Nesse último rol, por oportuno, verifica-se que despesas à administração da falência são espécies de créditos extraconcursais (artigo 84, III) [5], não obstante, têm sua prioridade assegurada pela legislação justamente por se configurarem como gastos indispensáveis ao bom andamento do procedimento e que exigem o pagamento antecipado (como os custos para a manutenção da segurança nas unidades da massa falida; remoção dos bens para local adequado à sua conservação etc).

Observa-se, ainda, uma crescente evolução do entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido de enquadrar nessa classificação prioritária a remuneração do administrador judicial. Nessa toada, cita-se que o juiz Paulo Furtado de Oliveira Filho, da 2ª Vara de Falências e Recuperação Judicial de São Paulo, nos autos de falência n° 0337347-73.2009.8.26.0100, classificou os honorários do administrador judicial como despesa necessária à administração da falência, nos termos do art. 150 da Lei n° 11.101/2005, destacando que sem esta função não existiria o processo falimentar, motivo pelo qual a remuneração se enquadraria no artigo mencionado.

Nessa mesma toada, o TJ-GO (Tribunal de Justiça de Goiás) consignou que a remuneração devida ao administrador judicial e aos seus auxiliares pelo seu labor “é medida necessária, uma vez que, para garantir o processamento da falência e o pagamento dos credores, desempenha seu trabalho visando um resultado favorável aos demais credores da massa falida”. Ademais, frente as “inúmeras previsões constitucionais, é possível depreender que ninguém é obrigado a trabalhar sem remuneração, especialmente o auxiliar da justiça que desempenha relevante múnus público para o processamento da falência”, razão pela qual deferiu o enquadramento da remuneração do profissional como despesa essencial [6].

Estruturada a ordem legal de preferências e prioridades no feito falimentar, é salutar que os referidos créditos devem ser satisfeitos nos termos propostos, de modo que o pagamento da classe inferior iniciar-se-á somente quando a classe prioritária já tiver seus créditos integralmente satisfeitos. Da mesma forma, a concessão de reserva também deve observar se recursos na universalidade de credores são suficientes à satisfação de todos os credores mais privilegiados do que o credor requerente, sob risco de violação do direito da preferência e do próprio princípio da paridade.

Em acréscimo, têm-se ainda a peculiar situação dos entes fazendários, que possuem a prerrogativa legal de optar acerca da forma de perseguição dos seus créditos: se pelo 1) prosseguimento das execuções fiscais ou 2) habilitação do crédito perante o procedimento concursal. Assim, muito embora não estejam sujeitos à verificação processual de crédito obrigatória, as pessoas jurídicas de direito público sujeitam-se materialmente aos rateios do produto da liquidação dos bens, conforme a ordem legal estabelecida pelos artigos 83 e 84 da Lei n° 11.101/2005.

Por fim, compreende-se que a classificação dos credores da falida é uma ordem dirigida ao administrador judicial, responsável pela verificação dos créditos (artigo 22, I, “e” e “f” da LREF) e organização do plano de rateio (artigo 148 da LREF). Todavia, frente a aplicação prática dessas diretrizes, é notório que o expert, por vezes, defronta-se com um quadro altamente complexo de hierarquias e preferências, resultante da conjugação de normas de origem e finalidades variadas e da evolução jurisprudencial, nem sempre harmônica [7] e observá-las pode não ser uma tarefa simples.

Nesse contexto, a atenção irrestrita de todos os agentes envolvidos no processo às normas específicas falimentares, bem como seus respectivos privilégios especiais e gerais, é um passo essencial para garantir a higidez processual e bom andamento da falência, priorizando, acima de tudo, a aplicação plena das normas jurídicas que regem a matéria e do princípio da paridade entre os credores submetidos ao concurso.

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Referências:

[1] Ver artigos 957, 962 do Código Civil (Lei n° 10.406/2002), bem como os artigos 16, 83, 84, 91 e 149 da Lei de Recuperação de Empresas e Falência (Lei n° 11.101/2005).

[2] REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 8ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1983.

[3] Vide AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria Geral das Obrigações  8ª Ed.  São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

[4] Nesse sentido é a elucidação de Maria Helena Diniz (DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: teoria geral das obrigações 37ª Ed.  São Paulo: SaraivaJur, 2022).

[5] Definição ofertada por Marcelo Barbosa Sacramone (SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência  4ª Ed.  São Paulo: SaraivaJur, 2023).

[6] Nos termos da decisão proferida nos autos sob n° 0260621-77.2012.8.09.0051.

[7] Ver os esclarecimentos sobre o tema ofertados por Fábio Ulhoa Coelho (Coelho, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de falências e de recuperação de empresas — 5ª Ed.  São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

Letícia Marina da Silva Moura é jornalista, advogada especializada em Recuperação de Empresas e Falências e Direito Empresarial e membro pesquisadora do Grupo de Grupo de Estudos Avançados em Processo Recuperacional e Falimentar da Fundação Arcadas/Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Consultor Júridico

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