Limites de congelamento de dados sem decisão desafiam Judiciário

O Marco Civil da Internet autoriza as autoridades policiais e o Ministério Público a pedir, diretamente aos provedores de internet, o congelamento de dados telemáticos. Mas essa previsão, segundo especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico, opõe direitos fundamentais e desafia interpretações no Judiciário.

A Lei 12.965/2014 prevê, em seu artigo 13, parágrafo 2º, a possibilidade de autoridades policiais, administrativas e Ministério Público pedirem cautelarmente que registros de conexão sejam guardados. Em até 60 dias após o requerimento, a autoridade deve ingressar com o pedido de autorização judicial para acesso aos registros, segundo o artigo 15. 

FreepikPedido de congelamento está previsto no Marco Civil da Internet 

Para advogados, a possibilidade de congelamento sem autorização judicial causa riscos à garantia constitucional do direito à comunicação, à liberdade de expressão, à intimidade e à privacidade. Eles defendem que o acesso a dados pessoais deve depender de autorização do Judiciário.

O criminalista Felipe Cassimiro, do escritório Cassimiro Advogados, está entre os que acreditam que a autorização judicial é fundamental. “Isso não pode ser dispensado. Embora a medida em questão não implique acesso ao conteúdo preservado, o caráter invasivo ao direito fundamental à intimidade da pessoa persiste. A relação de confiança estabelecida entre o usuário e o provedor não pode ser explorada indiscriminadamente pelas autoridades persecutórias.”

Para Cassimiro, o Brasil precisa amadurecer o debate sobre o tema, principalmente sob a ótica da cadeia de custódia da prova digital. “Afinal, uma entidade privada (o provedor), isto é, um órgão não oficial, terá a incumbência de armazenar dados (possíveis provas) para fins persecutórios, de modo que, penso, há risco à confiabilidade do próprio conteúdo congelado. Tanto o pedido de congelamento quanto o pedido de acesso devem ser precedidos por autorização judicial devidamente fundamentada e delimitada.”

Dayanara Ascurra, do escritório Ernesto Borges Advogados, compreende que o pedido extrajudicial do congelamento do material telemático retira do seu legítimo proprietário o direito de dispor dele para quaisquer fins. “Pode ferir o direito à comunicação, à liberdade de pensamento e de sua expressão e à privacidade, bem como os limites da legislação de proteção geral de dados pessoais, previstos no Marco Civil da Internet.”

Ela destaca como exemplo de jurisprudência sobre o tema o HC 222.141, no qual o então o ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, hoje aposentado, anulou as provas obtidas a partir do armazenamento sem prévia autorização judicial do conteúdo de contas eletrônicas que extrapolaram o limite da lei.

Nesse processo, em fevereiro de 2022, a 6ª Turma do STJ considerou válido o pedido feito pelo Ministério Público do Paraná (MP-PR), sem autorização judicial, para que provedores de internet congelassem dados telemáticos de usuários, preservando-os para fins de investigação criminal.

A defesa da ré, então, foi ao Supremo. No fim de 2022, Lewandowski anulou as provas colhidas pelo MP-PR junto aos provedores, pois o pedido de congelamento não se referia apenas aos “registros de conexão”, como determina a lei, mas extrapolava a previsão para abarcar todo tipo de informações cadastrais, histórico de localização e pesquisas, conteúdo de e-mails, mensagens, fotos e nomes de contatos.

Um recurso do MP foi apresentado à 2ª Turma e ainda aguarda julgamento, após pedido de vista do ministro André Mendonça.

Dentro dos limites

Por outro lado, Ana Luiza de Sá, também criminalista, lembra que os registros de conexão devem ser mantidos pelos provedores sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de um ano, permitindo-se apenas que o MP apresente requerimento direto para guarda dos registros de conexão, nesse caso sem a necessidade de prévia autorização judicial.

“E, mesmo nessa situação, está estabelecido o prazo de 60 dias, contados a partir do requerimento, para que o MP ingresse com o pedido de autorização judicial de acesso aos registros. Diferente é a situação do Ministério Público solicitar acesso direto ao conteúdo dos registros de conexão em si e demais dados telemáticos existentes nos provedores (históricos de pesquisa, e-mails, dados de localização etc.) sem respeitar a reserva de jurisdição, o que é vedado não apenas pelo próprio Marco Civil da Internet quanto pela Constituição Federal.”

Ela afirma que há o risco de ser viabilizado o acesso irrestrito ao fluxo de comunicação na internet sem que o Poder Judiciário possa analisar a real pertinência da colheita desses dados para uma eventual investigação policial ou ação penal. “Estaria em risco o respeito às garantias constitucionais do direito à comunicação, à liberdade de expressão, à intimidade e à privacidade.”

Omar Kaminski, referência brasileira na área de novas tecnologias, lembra que as autoridades competentes podem requerer os dados cadastrais e a guarda de registros, por parte do provedor, por mais tempo do que o previsto, mas ele diz que qualquer coisa a mais do que isso estaria em desacordo com a lei.

Na avaliação de Kaminski, o congelamento, a princípio, não interfere no trabalho da defesa, desde que os dados sejam mantidos em sigilo e fornecidos só por ordem judicial. “Seria um tipo de ‘reserva cautelar’, levando em conta inclusive a já tradicional morosidade judicial diante dos prazos exíguos de guarda legal (seis meses a um ano). Ou seja, guarda/reserva é uma coisa, fornecimento, outra. Fornecimento, sem ordem judicial, só de dados cadastrais. Entendo que o fornecimento e o acesso aos dados dependem de ordem judicial.”

Consultor Júridico

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