Na última sexta-feira (22/9), a ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, apresentou seu voto na ADPF 442. Na ação, pugnou-se pela descriminalização do aborto, previsão constante dos artigos 124 a 126 do Código Penal de 1940. A ministra, tomando por base a dignidade humana, a igualdade, a autodeterminação pessoal, a liberdade, a intimidade, os direitos reprodutivos e a justiça social reprodutiva, votou pela procedência parcial da ação, declarando a não recepção dos dispositivos penais supramencionados.
Hoje, 28 de setembro, comemora-se internacionalmente o Dia do Acesso Universal à Informação, celebrando-se igualmente nesta mesma data o Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe. Em um momento tão ímpar, cabe rememorar que o direito ao acesso à informação, além de possuir previsão constitucional no ordenamento jurídico brasileiro, figura em posição de destaque no direito internacional dos direitos humanos. Sua garantia plena e, de fato, universal, depende amplamente da discussão suscitada na ADPF 442.
Para compreender essa relação entre a descriminalização do aborto e o direito ao acesso à informação (e, mais amplamente, à liberdade de expressão), dois aspectos devem ser destacados: a) a criminalização do aborto viola o direito ao acesso à informação de mulheres, meninas e pessoas que gestam, não somente no que diz respeito à interrupção da gravidez, mas também no que tange a outras dimensões dos direitos sexuais e reprodutivos, como a contracepção e o planejamento familiar, resultando na inviabilização da procura, da recepção e do compartilhamento de dados sobre saúde pública; e b) a criminalização do aborto interdita a livre expressão do pensamento e, consequentemente, o debate público sobre os temas relacionados aos direitos sexuais e reprodutivos, o que se manifesta principalmente nos ataques a indivíduos que buscam por essas informações, bem como perseguições à jornalistas e defensoras de direitos humanos que se propõem a divulgar informações de interesse público sobre essa temática.
Nesse sentido, dada a necessidade da livre expressão para a real garantia do acesso à informação, e consequente salvaguarda do direito de organização social e participação política de mulheres e pessoas que gestam em torno de temas tão cruciais, considera-se que a manutenção da criminalização do aborto viola duplamente os referidos direitos fundamentais.
Sobre o primeiro ponto, frisa-se que que a ausência de informações sobre como realizar os procedimentos abortivos de forma segura, que se dá em razão da criminalização da prática, tem impacto direto nas altas taxas de mortalidade materna relacionadas ao aborto. Ou seja, a partir desse vácuo informacional, não somente se fere o direito ao acesso à informação, como, a partir dessa violação, o próprio direito à vida das mulheres, meninas e pessoas que gestam.
Ademais, sob a perspectiva do acesso à informação, é possível perceber que a criminalização do aborto prejudica a garantia desse direito nas situações em que é juridicamente permitido — quando a gestação se der em razão de violência sexual, quando apresentar risco à vida da pessoa gestante, e nos casos de anencefalia do feto, conforme decidido pelo STF na ADPF 54.
É o que apontam as pesquisas a) Uma Análise em Transparência Ativa sobre Direitos Sexuais e Reprodutivos, que integra o relatório dez anos da Lei de Acesso à Informação [1], publicada em 2022; e b) o Mapa Aborto Legal [2], publicado pela primeira vez em 2019, e atualizado desde então. Ambas revelam diferentes níveis de dificuldade de acesso à informação sobre os serviços de saúde que realizam aborto, sobre o próprio procedimento, e, de forma grave, sobre o próprio direito ao aborto nas hipóteses legais.
A divulgação proativa de materiais desinformativos, como a campanha de combate à gravidez precoce lançada em 2022 pelo Ministério da Saúde, é outra dimensão das violações à liberdade de expressão relacionadas à interdição do debate público sobre o aborto [3]. Essa campanha violou o dever decorrente da Convenção sobre os Direitos da Criança de os Estados garantirem que crianças e adolescentes recebam informações adequadas sobre direitos sexuais e reprodutivos, independentemente do seu estado civil e do consentimento dos seus pais ou tutores, para que possam tomar decisões informadas sobre seus corpos [4]. Outro exemplo são as diversas leis municipais e estaduais que desinformam gestantes sobre as hipóteses e exigências para realizar o aborto legal [5], e constrangem essas pessoas e profissionais de saúde a não realizarem o procedimento [6].
No segundo eixo, há que se destacar o impacto da criminalização sobre o exercício do direito à liberdade de expressão. Nesse campo, mais um processo de silenciamento pode ser identificado: a criminalização e perseguição de comunicadoras e jornalistas que fazem reportagens sobre aborto — tanto as hipóteses legais, quanto as criminalizadas — e de defensoras de direitos humanos que procuram incidir sobre a temática. É exemplar o caso da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) convocada pela Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina, visando a investigar alguns casos de aborto legal realizados por meninas, em razão da gravidez fruto de violência sexual.
A CPI, no entanto, não somente passou a ameaçar o próprio acesso ao serviço de saúde dessas meninas, como também serviu de instrumento para constranger o trabalho jornalístico realizado pelo Portal Catarinas e pelo The Intercept Brasil, mencionados pelas reportagens produzidas sobre o caso de uma menina catarinense de 11 anos que foi coagida durante audiência a manter uma gestação decorrente de estupro [7].
A ameaça direta a comunicadoras e defensoras de direitos sexuais e reprodutivos é, de forma evidente, uma violação ao direito à liberdade de expressão, e ao direito ao acesso à informação, ao limitar o debate público a respeito do tema.
Portanto, a criminalização do aborto impacta profundamente no exercício dos direitos à liberdade de expressão e ao acesso à informação, vez que a expressão e a circulação de informações a respeito do tema encontra-se interditada. Dessa forma, torna-se essencial frisar que é obrigação do Estado produzir e compartilhar informações que sejam úteis e necessárias para uma vida digna e para a tomada de decisões com autonomia e consciência, sobretudo em temas relacionados à saúde pública. É também obrigação do Estado que esse direito seja acessado por todas as mulheres, meninas e pessoas com capacidade de gestar.
Nesse sentido, na luta pelo efetivo acesso à informação no Brasil, há que se atentar para a luta pela descriminalização do aborto, pela autonomia decisória de mulheres, meninas e pessoas que gestam sobre seus corpos, sobre a difusão de informações sobre métodos contraceptivos e sobre planejamento familiar, e, nos termos do voto da ministra Rosa Weber, pela justiça social reprodutiva.
[4] UNITED NATIONS. Committee on the Rights of the Child, General Comment nº4: Adolescent Health and Development in the Context of the Convention of the Rights of the Child, U.N. Doc. CRC/GC/2003/4 (2003).
[5] A título de exemplo menciona-se o Projeto de Lei Municipal apresentado na Câmara de Vereadores de Criciúma (SC), o PL 24/2023 do vereador Obadias Benones da Silva (Avante), que busca aprovar a afixação de cartaz, em todas as unidades de saúde públicas e privadas do município de Criciúma, “informando” que aborto é crime, invisibilizando assim as hipóteses legais nas quais o procedimento de abortamento é legalizado no país, anteriormente mencionados.
Taynara Alves Lira é advogada e assessora do Centro de Referência Legal na Artigo 19 Brasil e América do Sul.
Maria Tranjan é antropóloga e coordenadora do programa de Proteção e Participação Democrática na Artigo 19 Brasil e América do Sul.