Lucas Carneiro: Paradoxo no financiamento da educação

Imaginemos que viajar no tempo seja possível. Diante do debate filosófico sobre a possibilidade de influenciar a linha do tempo enquanto se viaja nele, uma forma de se explicar por qual razão a história não é mutável é se valer da premissa de que essas mudanças já estão contidas na linha do tempo passado. Nesse cenário fantástico, uma informação levada ao passado e ali recebida, torna-se naquele passado/presente a própria informação a existir no futuro, ou seja, aquela mesma informação inicialmente levada ao passado. Eis o denominado Paradoxo de Bootstrap, afamado em razão de séries televisivas e muito debatido em artigos científicos.

Como no universo do Direito tudo (ou quase tudo) é possível, parece-nos que dentro das normas de financiamento da educação criou-se um paradoxo ontológico que, ainda, sem muitos questionamentos, tem prejudicado o Direito à Educação de inúmeros entes federados.

A máquina do tempo, no caso, é a Resolução nº 1, de 28 de julho de 2023, da Comissão Intergovernamental de Financiamento da Educação Básica de Qualidade-CIF, publicada no Diário Oficial da União do dia 31/7/2023, que define critérios regulamentadores da condicionalidade prevista no artigo 14, § 1º, inciso III, da Lei do Fundeb, para o repasse da Complementação Vaar.

Eu sei que, à exemplo de viagens no tempo, os temas de direito educacional são por vezes complexos, ainda mais ao se tratar de financiamento da educação. Entretanto, eu garanto, não desista da leitura, a questão e o problema (e a solução) são muito mais simples do que parecem.

A EC 108 inaugurou o novo e permanente Fundeb no sistema jurídico nacional e, assim, consagrou a política de fundos educacionais de natureza contábil para o financiamento da educação básica pública brasileira. O novo conjunto normativo tem por princípios fundantes a equidade, a inclusão e a qualidade da educação. Nessa linha, previu o aumento do patamar da complementação de verbas da União aos entes federados para 23% em 6 (seis) anos, distribuídos em três modalidades distintas de complementação: a) a complementação Vaaf – 10%; b) a complementação Vaat – 10,5%; e, c) a complementação Vaar – 2,5%. Para receber cada complementação o ente federado deverá comprovar o cumprimento de determinadas condições, denominadas pela Lei do Fundeb de “condicionalidades”. Para “facilitar” a aplicação da lei, a própria Lei do Fundeb previu, nos artigos 17 a 19, a criação de uma Comissão que tem por função regulamentar os critérios para análise do cumprimento de referidas condicionalidades. É a denominada Comissão Intergovernamental de Financiamento da Educação Básica de Qualidade-CIF.

O Paradoxo da Viagem no Tempo (outro nome para o Paradoxo de Bootstrap) está na terceira modalidade de complementação, a Vaar, disciplinada no artigo 14 da Lei do Fundeb, especialmente na condicionalidade prevista no § 1º, incisos III, do referido artigo 14 (ou carinhosamente chamada de Condicionalidade III Vaar). A lei é perfeita, e a condicionalidade, de fato, importantíssima para os propósitos fundantes da lei (equidade, inclusão e qualidade da educação). A confusão intertemporal se deu em razão de regulamentação feita pela referida Comissão Intergovernamental de Financiamento da Educação Básica de Qualidade-CIF, ao pretender definir os critérios de aferição de cumprimento, pelos entes federados, da condicionalidade III Vaar.

A Resolução nº 1, de 28 de julho de 2023, publicada no Diário Oficial da União do dia 31/7/2023 (em anexo), expedida pela referida Comissão definiu, como critério de cumprimento da Condicionalidade III Vaar, dados fáticos de 2017 e 2019, portanto, referentes a períodos anteriores à própria criação da condicionalidade (inserida no sistema em 25/12/2020, data de entrada em vigor da Lei do Fundeb).

Transcrevo a norma prevista na Resolução nº 1, de 28 de julho de 2023:

“Art. 3º Aprovar a metodologia referente à condicionalidade prevista no inciso III do § 1º do art. 14 da Lei nº 14.113/2020, a ser aferida pelo Inep, com fundamento na Nota Técnica Conjunta nº 24/2023-Inep e na Nota Técnica nº 12/2023/CGEE/Dired/Inep.”

O artigo 3º supracitado faz remissão ao item 5 da Nota Técnica Conjunta nº 24/2023. Segue, portanto, o teor normativo respectivo:

“5. PROPOSTA METODOLÓGICA PARA AVERIGUAÇÃO DA CONDICIONALIDADE III 5.1. A averiguação da diminuição das desigualdades educacionais entre os diferentes grupos raciais e entre diferentes níveis socioeconômicos, para cada rede de ensino, se dará por meio do seguinte método: 5.1.1. Uso de dados coletados na aplicação do tipo censitário do Saeb 2017 e 2019, uma vez que o plano amostral da pesquisa não foi concebido para gerar resultados por raça e nível socioeconômico. (…)”

Em outros palavras, seria como se a Lei do Fundeb tivesse falado: “- Gestor, cumpra essa missão que eu lhe garanto milhares ou milhões de reais para sua educação local“. Os gestores do país, então, passaram a trabalhar, e de fato assim o fizeram, para o atingimento da condicionalidade, quando, nesse trilhar, foram surpreendidos com a negativa de repasse da complementação Vaar. A justificativa dada pela Comissão Intergovernamental de Financiamento da Educação Básica de Qualidade-CIF, também em outros dizeres, teria sido: “— Gestor, você deveria ter cumprido a condição criada em 2020, em 2017 e 2019.”

O parlamento nacional, ao incluir o novo e pretenso permanente Fundeb no sistema, o fez, sabiamente, criando um aparelho de financiamento calcado no incentivo de uma educação de qualidade e universal, como quis o constituinte originário ao expor os princípios fundantes do direito educacional no artigo 206 da Constituição da República. As condições de repasse de valores da União prevista na Lei do Fundeb, nessa esteira de raciocínio, têm por objetivo primeiro incentivar a boa gestão, criando caminhos premiais e meritórios para a melhoria da educação local e brasileira. Incentivar, induzir a melhoria, a alteração do status quo, repito: esse é o espírito das condicionalidades para repasse das três modalidades de complementação da União.

A tradução literal de bootstrap é alça de bota, aquele pedaço de couro ou tecido que fica atrás da bota e acima do calcanhar. A denominação “Paradoxo do Bootstrap” faz direta referência à expressão “puxando-se pela alça de seu próprio calçado” ou, do original, “pulling yourself up by your bootstraps“. Ora, é certo que ao criar metodologia de aferição baseada em fatos anteriores a própria lei/condicionalidade, portanto impassíveis de modificação, a Comissão-CIF se esqueceu por completo, data venia, de referido objetivo, passando a criar apenas um método de punição por fatos passados e inalteráveis, perpetuando para os dias atuais as falhas que a lei pretendeu superar [1].

 


[1] Muitos, senão a grande maioria dos entes federados do país estão nesse paradoxo temporal, perdendo a chance de investir milhares ou milhões de reais e melhorar a educação local. Ainda é tempo de mudar, afinal, o pagamento da complementação Vaar do ano seguinte ainda não fora feito.

Lucas Sachsida Junqueira Carneiro é promotor de Justiça e coordenador do Núcleo de Defesa da Educação do Ministério Público do Estado
de Alagoas, membro da Comissão Permanente de Educação e do Grupo Nacional de Trabalho
Interinstitucional Fundef/Fundeb da 1ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (1ª CCR).

Consultor Júridico

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