Recentemente a Justiça do Rio de Janeiro anulou investigação da Polícia Federal contra um dos maiores bicheiros do estado. O contraventor e diversas outras pessoas eram investigadas pelo crime de organização criminosa, sendo que, durante a deflagração da operação policial, foram apreendidos cerca de R$ 1 milhão em espécie. Conforme a decisão, todas as provas produzidas na investigação são nulas, pois essa teria sido presidida por autoridade sem legitimidade para tal.
No caso em comento, o inquérito policial foi instaurado mediante requisição do Ministério Público do Rio de Janeiro à Polícia Federal, para apuração do delito de organização criminosa. Segundo a decisão que anulou a investigação, o caso estaria fora das atribuições legais da PF, já que não havia lesão a bens, serviços ou interesses da União.
Ocorre que a atribuição investigativa da Polícia Federal não se confunde com a competência da Justiça Federal, sendo aquela mais ampla que essa. Aliás, são diversos os casos nos quais há atribuição da Polícia Federal para investigação do delito, mesmo fora do âmbito de competência da Justiça Federal. Assim, devemos ter claro que atribuição investigativa e competência jurisdicional não se confundem, de forma que não necessariamente uma deve seguir a outra. Essa constatação é essencial para compreendermos o real âmbito de atribuição investigativa da PF.
Por exemplo, temos que, segundo o artigo 144, §1º da Constituição é atribuição da Polícia Federal prevenir e reprimir o tráfico de ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência. Este inciso da ampla atribuição investigativa para a PF com relação à investigação de crimes de tráfico de drogas, contrabando e descaminho.
Os crimes de contrabando e descaminho são de competência da Justiça Federal, tendo em vista que tais crimes violam o interesse da União na proteção de suas fronteiras. Por outro lado, o crime de tráfico de drogas, via de regra, não será de competência da Justiça Federal, salvo em caso de transnacionalidade no delito. Desta forma, existe atribuição concorrente das Polícias Civis e da Polícia Federal para a investigação do crime de tráfico de drogas, no âmbito da competência estadual.
Para além da ampla atribuição com relação à investigação ao tráfico de drogas, a PF possui outras atribuições investigativas que não se inserem no âmbito da Justiça Federal. Conforme disposto na segunda parte do artigo 144, §1º, I, a PF destina-se a apurar infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei. Tal atribuição pode, ocasionalmente, também se traduzir na competência da Justiça Federal, porém não necessariamente.
Conforme a norma constitucional são três os requisitos para que tais crimes possam ser apurados pela PF: que haja repercussão interestadual ou internacional, que seu combate exija repressão uniforme e que exista previsão legal. A lei a qual faz referência a constituição é a Lei 10.446/2002, a qual regulamentou o presente inciso, dispondo sobre quais infrações penais pode a Polícia Federal atuar:
“Artigo 1o Na forma do inciso I do §1º do artigo 144 da Constituição, quando houver repercussão interestadual ou internacional que exija repressão uniforme, poderá o Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, sem prejuízo da responsabilidade dos órgãos de segurança pública arrolados no artigo 144 da Constituição Federal, em especial das Polícias Militares e Civis dos Estados, proceder à investigação, dentre outras, das seguintes infrações penais:
(…)“
Inicialmente cabe ressaltar que as atribuições investigativas previstas nesta lei não são exclusivas da Polícia Federal, sendo que a lei deixa claro a possibilidade de investigação pelo órgão federal, sem prejuízo das responsabilidade de outros órgãos de segurança pública, assim, no casos destes crimes há atribuição investigativa concorrente entre a Polícia Federal e as Polícias Civis, salvo se, no caso concreto, o crime for de competência da Justiça Federal. Outro ponto que deve ser destacado é que a lei diz que nestes casos “poderá” a Polícia Federal proceder a investigação. Isto quer dizer que não se trata de obrigação legal, mas de possibilidade que deverá ser avaliada conforme a conveniência e oportunidade do caso concreto, mesmo porque, geralmente, em tais crimes, a atribuição precípua para investigar é da Polícia Civil.
Conforme os incisos do artigo 1º da Lei 10.446/2022, os crimes que podem ser investigados pela Polícia Federal, quando houver repercussão interestadual ou internacional que exija repressão uniforme são:
“I– seqüestro, cárcere privado e extorsão mediante seqüestro (artigos 148 e 159 do Código Penal), se o agente foi impelido por motivação política ou quando praticado em razão da função pública exercida pela vítima;
II – formação de cartel (incisos I, a, II, III e VII do artigo 4º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990); e
III – relativas à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte; e
IV – furto, roubo ou receptação de cargas, inclusive bens e valores, transportadas em operação interestadual ou internacional, quando houver indícios da atuação de quadrilha ou bando em mais de um Estado da Federação.
V – falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais e venda, inclusive pela internet, depósito ou distribuição do produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado (artigo 273 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal). (Incluído pela Lei nº 12.894, de 2013)
VI – furto, roubo ou dano contra instituições financeiras, incluindo agências bancárias ou caixas eletrônicos, quando houver indícios da atuação de associação criminosa em mais de um Estado da Federação. (Incluído pela Lei nº 13.124, de 2015)
VII – quaisquer crimes praticados por meio da rede mundial de computadores que difundam conteúdo misógino, definidos como aqueles que propagam o ódio ou a aversão às mulheres. (Incluído pela Lei nº 13.642, de 2018).”
Para além de tais crimes, de acordo com o parágrafo único do artigo 1º da lei sob estudo, a PF ainda pode proceder a investigação de qualquer outra infração penal, que tenha repercussão interestadual ou internacional que exija repressão uniforme, caso tal providência seja autorizada ou determinada pelo ministro de Estado e Justiça.
Para o presente artigo importa o quanto previsto no inciso III do artigo 1º da Lei 10.446/2002, o qual dá à Polícia Federal a possibilidade de investigar infrações penais relativas à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte, desde que haja repercussão interestadual ou internacional que exija repressão uniforme.
Entre os tratados internacionais firmados pelo Brasil por meio dos quais o país se comprometeu a reprimir a violação de direitos humanos encontram-se a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção de 2003 (Convenção de Mérida), bem como a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional de 2004 (Convenção de Palermo).
Mesmo que prima facie não pensemos nos crimes de corrupção e organização criminosa como violadores de direitos humanos, não é necessário grande esforço argumentativo para se concluir que tais crimes representam gravíssimas violações de direitos humanos, já que afetam diretamente direitos básicos da pessoa humana como a liberdade, igualdade ou mesmo o direito à vida.
O fato de que o crime de corrupção é uma grave violação de direitos humanos já é tema assentado no âmbito das Nações Unidas. Nas palavras de Ban Ki-Moon, secretário geral da ONU entre os anos de 2007 a 2017:
A corrupção enfraquece a democracia e o Estado de Direito, levando a violações de direitos humanos. Causa erosão da confiança pública no governo. Ela pode até matar, por exemplo, quando servidores públicos corruptos permitem alterações em medicamentos, ou quando aceitam propinas que permitem que atentados terroristas ocorram (tradução nossa) [1].
Com relação ao crime de organização criminosa, sua face violadora de direitos humanos é ainda mais clara já que tal infração penal representa a estruturação e organização da criminalidade, potencializado a lesividade de todo crime a ela associado, inclusive crimes de corrupção ou crimes violentos. Neste sentido, a existência de organizações criminosas, que muitas vezes, desafiam o poder estatal, atuando como verdadeiro poder paralelo ao Estado, viola frontalmente os direitos humanos, colocando em risco direitos básicos como a vida, a liberdade, a segurança etc.
Visto que os crimes de organização criminosa e corrupção são crimes violadores de direitos humanos e que estão estre os quais o Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte, se faz necessária a análise dos outros requisitos previstos na Constituição e na Lei nº 10.446/2002 para que haja atribuição investigativa da Polícia Federal, a necessidade que o crime tenha repercussão interestadual ou internacional que exija repressão uniforme.
Me parece bastante claro que todo (ou quase todo) crime de corrupção e organização criminosa terá repercussão interestadual ou internacional a exigir repressão uniforme em todo território nacional. Aliás, mesmo um ato de corrupção local ou estadual, tem efeitos reflexos que abrangem todo território nacional, tendo em vista sua capacidade de erosão do sistema político e democrático, bem como aptidão para impedir o desenvolvimento econômico e social.
De mesma forma, organizações criminosas, via de regra, tem impacto interestadual ou internacional, pois os crimes praticados em seu seio raramente se restringem a um único Estado da Federação, principalmente devido ao transporte de mercadorias ilícitas através das fronteiras dos Estados ou do país, bem como devido a utilização do sistema financeiro para lavagem de valores oriundos da atividade criminosa. Além disso, como já citado, algumas organizações criminosas se transformam em verdadeiro poder paralelo ao poder estatal, colocando em risco a própria soberania do Estado. Nestes casos, somente uma atuação repressiva uniforme nos diversos locais, e com relação as diversas formas de atuação da organização criminosa, se mostrará eficiente em seu combate.
Assim, temos que os crimes de corrupção e organização criminosa, para além de serem crimes relativos à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte, via de regra, também terão repercussão interestadual ou internacional, a exigir repressão uniforme em todo território nacional. Neste sentido tem a Polícia Federal ampla atribuição para investigar crimes de corrupção e organização criminosa Brasil, mesmo que tais crimes não sejam de competência da Justiça Federal, não envolvam recursos federais ou servidores públicos federais.
Por fim, cabe apontar que a lei traz uma possibilidade que a Polícia Federal investigue tais crimes de corrupção e organização criminosa, e não uma obrigatoriedade, sendo que, em casos de competência da Justiça Estadual a atribuição precípua ainda será da Polícia Civil. Porém é certo que a Polícia Federal tem se destacado nos últimos anos no combate à corrupção e a criminalidade organizada no Brasil, realizando importantes investigações que desvelaram grandes esquemas de desvios de recursos públicos e desarticularam relevantes organizações criminosas. Podemos dizer que hoje, a Polícia Federal é uma instituição vocacionada no combate a esse tipo de criminalidade, tendo expertise bem como estrutura para realizar tal trabalho. Além disso, a Polícia Federal, devido a sua estrutura organizacional, sofre menos com pressões políticas locais do que as Polícias Civis, o que também facilita na condução de investigações sensíveis que costumam envolver matérias de corrupção e organização criminosa.
Neste cenário, a Polícia Federal deve ser vista como um importante instrumento do Estado brasileiro no combate à corrupção e aos crimes de organização criminosa, como ações violadoras de direitos humanos, podendo atuar principalmente de forma suplementar/complementar à Polícia Civil.
Lucas Ferreira Dutra é bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, pós-graduado em Direito Penal Econômico pelo IBCCrim e pela Faculdade de Direito de Coimbra e
delegado de Polícia Federal.