Lucas Landim: Liquidez do mercado de capitais na calamidade

O mercado de capitais é um importante propulsor da economia e eficiente canalizador de recursos da poupança da sociedade, muitas vezes represados em aplicações de nenhum ou baixo rendimento. Ele proporciona o direcionamento do capital ocioso para investimentos em empresas de diversos setores, objetivos e com potencial crescimento. Sua relevância é ainda maior para as pessoas físicas, que têm a oportunidade de participar de grandes empreendimentos, seja por meio da compra de ações ou por adquirir títulos de dívida de empresas.

Para que traga os benefícios econômicos pretendidos, é importante que esse mercado seja sólido e provido de robusta liquidez. Dessa forma, proporciona que empresas alavanquem seu modelo de negócios, atinjam melhor seus objetivos sociais e contribuam para a economia do país, além oportunizar um eficiente meio de refinanciamento do passivo e do capital de giro.

A liquidez pode ser seguramente comparada ao coração do mercado de capitais, uma vez que, sem ela, sua engrenagem pode simplesmente parar de funcionar. Exemplos não faltam na história mundial e nacional, a exemplo da Grande Depressão, em 1929, da crise do subprime, em 2007, e, em terras brasileiras, da crise de liquidez que gestou a derrocada da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, em 1989.

O ambiente de incertezas é um tema sensível ao mercado de capitais. Em qualquer crise, seja ela advinda de pandemia ou de evento puramente econômico, os investidores necessitam ter confiança de que o mercado em que estão aplicando seu capital continua sólido, com transações e negócios ocorrendo em pleno vapor.

A recente crise econômica advinda da pandemia evidenciou o quanto é necessário ter um mecanismo que assegure a liquidez do mercado em situações de incertezas extremas. De acordo com o relatório de estabilidade financeira do Banco Central, publicado em outubro de 2020, as principais implicações da crise sanitária da Covid-19 foi o aumento abrupto e disseminado da demanda das famílias e empresas por liquidez, além da maior aversão ao risco por parte dos investidores.

No relatório, o BC reconhece que seria necessária uma coordenação de esforços junto com os poderes Executivo e Legislativo para que se adotasse medidas fundamentais para garantir o bom funcionamento do mercado e salvaguardar a estabilidade do Sistema Financeiro Nacional.

O Banco Central do Brasil ressaltou que a indústria de fundos de investimentos foi a primeira a sentir os efeitos da busca frenética das empresas e famílias por liquidez. Inclusive, parte dos fundos viu-se diante da necessidade de vender repentinamente os seus ativos para fazer frente aos resgastes maciços em meados de março de 2020, o que levou, por exemplo, à perda dos parâmetros de referência dos preços dos títulos negociados no mercado secundário.

Durante a pandemia da Covid-19, o BC foi escalado para ser o comprador de última instância de títulos e valores mobiliários no mercado secundário, medida que, até então, nunca se passara em nossa jurisdição. Essa sistemática foi introduzida pela Emenda Constitucional 106/2020, que instituiu o regime extraordinário fiscal e, no artigo 7º, autorizou o Bacen comprar e vender ativos no mercado secundário nacional, no âmbito do mercado financeiro, de capitais e de pagamentos.

As Casas Legislativas, ao aprovarem a emenda constitucional, tiveram a preocupação de que eventual falta de liquidez no sistema poderia ocasionar vendas rápidas de ativos, culminando em corridas bancárias. Manter a estabilidade e o funcionamento adequado do mercado de capitais seria essencial para evitar crises financeiras que levassem à exacerbação de uma crise já existente.

Após a edição da Emenda Constitucional 106/2020, o BC editou a Circular 4.028/2020 que estabeleceu quais os títulos seriam elegíveis às operações determinadas pelo Congresso. No dia 21 de agosto de 2020, o Banco Central fez um teste de leilão para compra de debêntures no mercado secundário, como medida de injeção de liquidez às negociações desses títulos, de sociedades anônimas como a Natura, Cemig, Usiminas, Petrobrás, Saneamento de Goiás, Cutia Empreendimentos Eólicos, Vix Logística, Guararapes Confecções etc.

Ainda não se tem conhecimento de como ocorreram os desfechos da compra e venda das debêntures anunciadas pelo Bacen. No entanto, é fato que após a adoção dessas medidas pela autoridade monetária, o mercado de capitais, puxado pelas debêntures, foi palco de forte expansão, mesmo num cenário de crise.

Prova disso é que o relatório de estabilidade financeira de novembro de 2022, anunciou que o mercado de capitais brasileiro teve forte expansão como importante fonte de financiamento às empresas, mesmo num cenário pós crise e com aumento de taxa de juros. De acordo com o Banco Central, o maior crescimento em valores nominais foi oriundo das debêntures, cujas principais destinações foram o capital de giro, o investimento em infraestrutura e o refinanciamento do passivo das empresas.

Parece não haver dúvidas do quanto é relevante a atuação racional do legislador e da autoridade monetária na promoção de confiança ao mercado de capitais, sobretudo em situações de calamidade advindas de qualquer crise. Independentemente da escolha do melhor instrumento regulatório que será utilizado, é importante que o mercado e os investidores tenham a confiança de que o Poder Público está disposto a promover mecanismos racionais, eficientes e ágeis para garantir o pleno funcionamento do mercado, dada sua notória relevância social.

No caso concreto observado no Brasil, as medidas de autorização para compra e venda de ativos no mercado secundário deram à sociedade e ao mercado a segurança de que a engrenagem do mercado continuaria funcionando, com a devida liquidez, por mais que a situação fosse de incerteza generalizada.

A Emenda Constitucional 106/2020 teve sua vigência encerrada com o fim do decreto de calamidade pública, em 31 de dezembro de 2020, produzindo louvável efeito positivo para o momento de maior incerteza do mercado das últimas décadas. No entanto, apesar de a autoridade monetária brasileira dispor de diversos instrumentos para influenciar a economia, é preciso considerar um mecanismo de provimento de liquidez prontamente executável em situações de incerteza extrema.

Alguns países já dispõem de mecanismos regulatórios que autorizam a autoridade monetária a agir no mercado secundário de títulos quando da ocorrência de crises com potencial afetação à sua liquidez. O BCE (Banco Central Europeu) possui, desde 2016, o programa de aquisição de títulos de dívida de empresas, que também foi usado durante a crise financeira da pandemia. O Fed, Banco Central dos Estados Unidos, também dispõe de alguns instrumentos de injeção de liquidez no mercado secundário que também foram usados na pandemia.

O Fundo Monetário Internacional (FMI), no relatório de estabilidade financeira mundial divulgado em outubro de 2020 relatou que a experiência de compra de ativos pelos bancos centrais de todo mundo foi positiva. O próprio FMI ponderou que essa experiência positiva seria um indicativo de que as autoridades monetárias voltariam a considerar a possibilidade de compra de ativos em episódios futuros de turbulência econômica.

Considerando esse cenário, o legislador brasileiro e os órgãos reguladores também poderiam fazer uma análise mais aprofundada  juntamente com a sociedade e o mercado  sobre a pertinência de uma regra jurídica que viabilizasse a compra e venda de ativos no mercado secundário  em eventos de crises extremas  como já ocorre nas jurisdições mais modernas.

O advento de uma crise de grandes proporções não é prenunciado e nem possui datas agendadas para se instalar, o que evidencia a necessidade de modernização da legislação. Já que a experiência em todo mundo se mostrou positiva, é salutar pensar na adoção da mesma postura, mesmo que adaptada, em nossa jurisdição. Tal medida, que seria acionada em momentos de crise e calamidade pública, tenderia beneficiar toda sociedade e economia brasileira, que ficariam resguardados de colapsos econômicos causados pela falta de liquidez.

Lucas Felipe Silveira Landim é advogado, especialista em Direito Tributário e em Mercado Financeiro e de Capitais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG).

Consultor Júridico

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