Luisa Fernandes: Incongruência legal e jurisprudencial

No Direito brasileiro existem diversos institutos jurídicos voltados a enfrentar a problemática do encarceramento em massa — uma realidade latente da justiça criminal. Estes institutos são direitos instituídos com o objetivo de evitar uma prisão a todo custo, e por isso são utilizados como forma de sanção alternativa à aplicação ou manutenção da pena privativa de liberdade.

Dentro deste contexto, a proposta deste artigo é analisar, de forma crítica, os institutos da suspensão condicional do processo, da suspensão condicional da pena e do livramento condicional, enfrentando a incongruência que existe no que diz respeito à revogação destes direitos a partir de uma análise legal e jurisprudencial.

A suspensão condicional do processo, prevista no artigo 89 da Lei 9.099/95, é um instituto despenalizador pré-processual que impõe o cumprimento de condições ao beneficiário, por determinado período, para que o processo criminal não tenha prosseguimento em seu desfavor.

A suspensão condicional da pena, prevista no artigo 77 e seguintes do Código Penal, é um instituto que tem como objetivo fomentar o desencarceramento de pessoas condenadas por crimes com penas reduzidas, ao determinar o cumprimento de condições ao condenado, durante um lapso temporal, mediante o preenchimento de determinados requisitos.

O livramento condicional é um instituto de execução penal, com natureza jurídica de modalidade de cumprimento da pena [1], previsto no artigo 83 e seguintes do Código Penal e no artigo 131 e seguintes da Lei de Execução Penal, que tem como objetivo antecipar a liberdade do condenado quando preenchidos os requisitos e, de igual forma, estabelece o cumprimento de determinadas condições durante um período temporal.

Como visto, nos três institutos é necessário o cumprimento de condições pelo beneficiário, por determinado período temporal. Esse período é chamado de período de prova ou período probatório. Se o beneficiário cumpre integralmente as condições dentro deste lapso temporal, deverá ser declarada a extinção da punibilidade.

Por outro lado, se há o descumprimento das condições durante o período probatório, a lei impõe consequências ao beneficiário descumpridor. A depender da conduta praticada, poderá haver a revogação obrigatória ou a revogação facultativa do instituto aplicado.

A suspensão condicional do processo será revogada se, no curso do prazo, o beneficiário vier a ser processado por outro crime ou não efetuar, sem motivo justificado, a reparação do dano (revogação obrigatória) e poderá ser revogada se o acusado vier a ser processado, no curso do prazo, por contravenção, ou descumprir qualquer outra condição imposta (revogação facultativa).

No que tange à suspensão condicional da pena, haverá a revogação obrigatória se houver, no curso do prazo, condenação irrecorrível pela prática de crime doloso, se houver frustração da pena de multa quando o sentenciado for solvente, se não for efetivada a reparação do dano sem motivo justificado e se houver o descumprimento da obrigação de prestar serviços à comunidade ou submeter-se à limitação de fim de semana. Poderá haver, por outro lado, a revogação facultativa se houver descumprimento das condições do susrsis ou condenação irrecorrível por contravenção penal ou crime culposo.

No livramento condicional, revoga-se o livramento, se o liberado vem a ser condenado a pena privativa de liberdade, em sentença irrecorrível, por crime cometido durante a vigência do benefício ou por crime anterior, observado o disposto no artigo 84 do Código Penal (revogação obrigatória) e poderá ser revogado o livramento se o liberado deixar de cumprir qualquer das obrigações constantes da sentença, ou for irrecorrivelmente condenado, por crime ou contravenção, a pena que não seja privativa de liberdade (revogação facultativa). Sobre este ponto:

“Vale observar, ainda, que viola o princípio da legalidade a revogação imediata do livramento condicional diante da notícia de novo crime, sem condenação definitiva, sob a forma da revogação facultativa, alegando que a mera prática de novo delito significa o descumprimento das condições judiciais. A taxatividade penal não permite selecionar hipótese mais genérica quando há previsão específica que abrange a mesma situação, prevendo outro tipo de consequência.” [2]

Vejamos que na suspensão condicional do processo, à luz da lei, basta que o indivíduo seja processado por outro crime ou contravenção para que possa ter seu direito revogado, enquanto no livramento condicional e na suspensão condicional da pena é necessário que haja condenação por outro crime ou contravenção transitada em julgado para que seja revogada a manutenção dos institutos. No livramento condicional, enquanto não transitada a sentença condenatória, o direito ficará suspenso. Na suspensão condicional da pena, enquanto não houver o julgamento será prorrogado o período de prova.

Neste contexto, quanto ao livramento condicional e à suspensão condicional da pena, a prorrogação do período probatório ou a suspensão do direito enquanto se aguarda o trânsito em julgado da sentença penal condenatória não é automática, sendo necessária uma decisão judicial determinando a suspensão ou a prorrogação do direito [3], sob pena de escoar o lapso temporal e houver de ser considerada extinta a punibilidade pelo decurso do período probatório sem suspensão ou prorrogação.

Sobre a revogação, há evidente incongruência lógica entre os institutos, e os dispositivos que melhor se adequam aos parâmetros constitucionais são os que determinam a obrigatoriedade de sentença penal condenatória transitada em julgado para a revogação, muito embora tenham sido incluídos ao Código Penal no ano de 1984 (artigo 81, I e artigo 86, I, ambos do CP), anterior à Constituição. A Lei 9.099/95, apesar de ser posterior à Constituição, traz consequências que desvirtuam dos mandamentos da Carta Magna no que diz respeito à presunção de inocência, conforme artigo 89, §4° da referida lei.

Isto porque, no instituto da suspensão condicional do processo, a lei estabelece que a mera ação penal em curso é suficiente para a revogação do direito. A consequência disso é a punição prévia, em outro processo, sem que no processo em que se apura o crime tenha havido nem mesmo condenação pelo juiz da causa. O beneficiário sofrerá a revogação da suspensão condicional do processo mesmo diante da ausência de sentença penal condenatória. Tal preceito é manifestamente contrário ao princípio da presunção de inocência.

A doutrina minoritária entende que, assim como ocorre na suspensão condicional da pena, o correto seria a prorrogação do prazo da suspensão até o julgamento definitivo do processo criminal, à luz do que determina o artigo 81, §2° do Código Penal, aplicável subsidiariamente em razão do que dispõe o artigo 92 da Lei 9.099/95 [4].

Por conseguinte, tanto na suspensão condicional do processo quanto na suspensão condicional da pena e no livramento condicional, a lei estabeleceu a mesma consequência final: se após o término do período de prova o direito não for revogado, será considerada extinta a punibilidade. É o que determina o artigo 89, parágrafo 5°, da Lei 9.099/95, para o caso de suspensão condicional do processo, o artigo 82 do Código Penal, para o instituto da suspensão condicional da pena, e o artigo 90 do Código Penal e artigo 146 da Lei de Execução Penal, para o livramento condicional.

Sobre este aspecto — a revogação dos direitos após o período de prova — é que o entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça diverge radicalmente, mesmo que a consequência prática seja a mesma para todos os institutos.

Para o livramento condicional, o STJ entende que a inércia do órgão fiscalizador e do juízo não pode restringir o direito do réu que cumpriu integralmente as condições impostas, restabelecendo situação já vencida pelo decurso do tempo [5].

Em outro julgado, foi decidido que expirado o período de prova do livramento condicional sem suspensão ou prorrogação do benefício, a pena é automaticamente extinta, nos termos do artigo 90 do Código Penal, sendo inadmissível a sua ocorrência posterior, pela constatação do cometimento de novo delito durante o referido lapso de tempo [6].

Em verdadeiro contrassenso, no que tange ao instituto da suspensão condicional do processo, em 25 de novembro de 2015 o Superior Tribunal de Justiça firmou a tese, em sede de recursos repetitivos, no Tema 920, de que “se descumpridas as condições impostas durante o período de prova da suspensão condicional do processo, o benefício poderá ser revogado, mesmo se já ultrapassado o prazo legal, desde que referente a fato ocorrido durante sua vigência”.

Em contrapartida, quanto ao instituto do livramento condicional, em 26 de setembro de 2018, quase três anos depois, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 617, que prevê que “a ausência de suspensão ou revogação do livramento condicional antes do término do período de prova enseja a extinção da punibilidade pelo integral cumprimento da pena”.

Quanto à suspensão condicional da pena o STJ (Superior Tribunal de Justiça) adota posicionamento semelhante ao adotado no instituto do livramento condicional, no sentido de que inexistindo revogação ou prorrogação do período de prova, correta a decisão que extinguiu a pena, nos termos do artigo 82 do Código Penal, segundo o qual, ‘expirado o prazo sem que tenha havido revogação, considera-se extinta a pena privativa de liberdade” [7].

Explica-se a incongruência lógico-jurídica: para o instituto da suspensão condicional do processo o STJ entende que pode haver revogação mesmo após expirado o período de prova, desde que o fato que deu causa à revogação tenha sido praticado durante o período probatório. Para o livramento condicional e para a suspensão condicional da pena, o STJ entende que se não houve a suspensão ou revogação do benefício dentro do período de prova, não pode ocorrer após, devendo ser declarada extinta a punibilidade.

Pela análise constata-se que o STJ adota entendimentos diversos para os institutos, muito embora todos tenham a mesma consequência prática, ainda que sejam direitos diversos: obter a extinção da punibilidade após cumpridas determinadas condições dentro de um lapso temporal. Não há razão para entender que na suspensão condicional do processo a revogação possa ocorrer a qualquer tempo, mesmo após expirado o período de prova, enquanto no livramento condicional e na suspensão condicional da pena a revogação só possa ocorrer dentro do lapso do período probatório.

É bem verdade que estamos tratando de institutos diferentes, porém, nos três há a determinação de condições a serem cumpridas dentro de um determinado tempo, nos três deve ocorrer a fiscalização efetiva do cumprimento pelo órgão competente. A falha na fiscalização não pode conceder ao Estado o direito de revogar a qualquer tempo a suspensão condicional do processo, mas impedir a revogação quando a falha ocorre no livramento condicional e na suspensão condicional da pena.

Entendemos e defendemos que, à luz dos princípios da presunção de inocência, da individualização da pena, da isonomia e da dignidade da pessoa humana, o correto é que possa haver a revogação de todos os três direitos somente dentro do período de prova, desde que o fato que deu causa à revogação tenha sido corretamente averiguado em um processo criminal, com respeito ao devido processo legal, cuja consequência tenha sido a condenação já transitada em julgado.

Esse é o entendimento que se amolda aos parâmetros constitucionais, muito embora só seja aplicado ao instituto do livramento condicional e da suspensão condicional da pena, enquanto na suspensão condicional do processo pode haver revogação a qualquer tempo, mesmo que a causa seja um processo criminal em trâmite, sem que precise haver nem mesmo sentença penal condenatória.

Conclui-se, portanto, que a problemática abordada constitui um equívoco legislativo e jurisprudencial, pois trata situações semelhantes de maneiras diversas, em evidente contrariedade aos anseios de justiça que devem reger as relações jurídico-penais.

 


[6] STJ, HC n° 182.490/RJ, relator ministro Adilson Vieira Macabu, Quinta Turma, j. em 17/05/2012.

Luisa Fernandes é advogada criminalista, sócia proprietária do escritório Soares & Fernandes Advogados Associados e pós-graduada em Tribunal do Júri e Execução Penal.

Consultor Júridico

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