Em diversas oportunidades, tenho abordado o tema das Medidas Provisórias segundo a ordem constitucional e as normas regimentais aplicáveis.
Ao longo dos quase 35 anos de existência desse instituto, a sua evolução constitucional decorreu, precisamente, das falhas e omissões do Constituinte Originário, mas, de forma ainda mais grave, das falhas de governo que levaram à sua banalização e distorção.
Notadamente a partir de 1992 e até 2001, a prática da reedição de Medidas Provisórias, a veiculação de matérias estranhas (verdadeiros “Frankenstein”) numa mesma medida provisória, o uso da vigência de 30 dias e a “renovação” do texto como forma de contornar problemas de constitucionalidade ou de ordem política, e até mesmo para impedir a deliberação do Congresso, e a elevada judicialização das Medidas Provisórias, levaram à reforma do instituto pela EC 32, de 2001.
As Medidas Provisórias passaram a ter, na Constituição, uma melhor definição de seus limites, consolidando a jurisprudência do STF, em grande medida, mas igualmente fixando validade por até 120 dias, a tramitação bicameral, a previsão da necessidade de apreciação por comissão mista e a vedação da reedição na mesma sessão legislativa de medida rejeitada ou que tenha perdido a eficácia.
Isso tudo, porém, não foi suficiente para impedir a esperteza e soluções de contorno. Ora mediante a edição de medidas provisórias sobre créditos extraordinários que nada tinha de extraordinários, ora mediante a “reedição” disfarçada (ou nem tanto), ora o seu uso para além dos limites permitidos pelo artigo 62, ora sem a apreciação prévia pela Comissão Mista prevista no artigo 62, § 9º da CF. Isso, sem falar da reiterada prática da edição de medidas provisórias sem requisitos de urgência ou relevância inequívocos, e da continuada e corriqueira prática de introdução de “jabutis”, condenada pelo STF em várias oportunidades.
Em 12 de junho de 2019, o Senado concluiu a apreciação da PEC 91, resultante da PEC 11/2011, do senador José Sarney, e que tramitou nas duas Casas do Congresso ao longo de oito anos. A nova PEC, resultante da inconformidade do Senado com a prática da votação de medidas pela Câmara às vésperas do exaurimento do prazo de 120 dias, previa prazos de vigência intermediários: não concluída a etapa, a MPV perderia a eficácia.
Essa PEC, até esta data, passados quase três anos, não foi promulgada. Na votação final pelo senado, o relator, senador Antonio Anastasia, propôs — e o Plenário aprovou — emenda de redação que, contudo, alterava o mérito. A PEC foi enviada à promulgação, mas a Câmara dos Deputados apontou a falha regimental, brecando o processo.
A “emenda de redação” suprimiu o inciso I do § 3º do artigo 62 da CF, proposto pela Câmara, remetendo o seu conteúdo ao § 9º, numa evidente mudança de mérito. O texto oriundo da Câmara conferia à comissão mista a tarefa de apreciar a MPV em 40 dias, contados do segundo dia útil de sua publicação, sob pena de perda de eficácia. Em nenhum momento lhe conferiu competência para apreciar conclusivamente, quanto ao mérito ou constitucionalidade, mas atribuiu à sua omissão em cumprir o seu papel de emitir o parecer sobre a MPV um caráter de rejeição tácita.
A solução para o “imbróglio” seria, por certo, a anulação da votação dessa emenda antirregimental, e a promulgação da emenda constitucional. Embora isso tenha sido mais de uma vez cobrado do presidente do Senado, nada foi feito. Uma alternativa seria o reexame, pela Câmara, do texto aprovado pelo Senado, aprovando ou não a modificação.
Em 2020, devido à pandemia Covid-19, foram interrompidos os trabalhos das comissões no Congresso Nacional. A última medida apreciada em comissão antes de ser levada ao Plenário da Câmara foi a Medida Provisória nº 905, de 2019, que institui o Contrato de Trabalho Verde e Amarelo. Mesmo aprovada na Comissão, a MPV não foi aprovada pelo Senado e perdeu eficácia, não sem, antes, haver sido revogada pela MPV 955/2020 às vésperas do encerramento de seu prazo.
Desde então, as MPVs passaram a ser apreciadas diretamente em Plenário, sem a observância da Resolução nº 1, de 2002, do Congresso Nacional. O Ato Conjunto das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal nº 1 de 31/3/2020, passou a disciplinar a sua apreciação, mas o seu art. 1º expressamente vincula a sua aplicação às medidas provisórias editadas durante a vigência da Emergência em Saúde Pública e do estado de calamidade pública decorrente da Covid-19.
Como fartamente sabido, essa condição temporal já se exauriu. Em 22 de abril de 2022, o Ministro da Saúde declarou em Portaria o fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin), causada pela pandemia da Covid-19 no Brasil, a valer a partir de 23 de maio de 2022.
Mesmo assim, as duas Casas continuaram aplicando o Ato Conjunto, em flagrante desrespeito, inclusive, ao decidido pelo STF na ADI 6.751, quando a Corte entendeu ser razoável “em tempos de estado de emergência decretado em face de grave pandemia, a possibilidade de o Congresso Nacional, temporariamente, estabelecer a apresentação de parecer sobre as medidas provisórias diretamente em Plenário, por parlamentar designado na forma regimental, em virtude da impossibilidade momentânea de atuação da comissão mista”.
Esse “temporariamente”, portanto, já se exauriu, e a vigência plena da Carta de 1988, quanto às medidas provisórias, não é questão de conveniência e oportunidade, ao alvedrio dos presidentes da Câmara ou do Senado, que possa ser discricionariamente observada ou não.
Uma ordem constitucional em que o poder político “escolhe” os artigos da Constituição que deseja cumprir é o oposto de “ordem”, mas “desordem”. Ainda que presentes razões políticas, apenas e somente se configurada a extraordinariedade que deu origem ao Ato Conjunto, ou outra similar, que impeça o regular funcionamento das comissões poderia justificar o descumprimento da Constituição e da norma que a regulamenta.
E mesmo essa norma infraconstitucional não é de livre escolha dos presidentes da Câmara ou do Senado. Até que seja alterada, a composição das comissões mistas é paritária entre as Casas, e proporcional entre partidos, assim como a apreciação separada em cada casa do Congresso do parecer aprovado pela comissão mista.
Contudo, circula proposta do presidente da Câmara de alterar a composição da comissão mista, ou mesmo de alterar a Constituição para extinguir essa etapa, ou limitar seu papel ao exame, apenas, da admissibilidade das medidas provisórias.
Que é relevante o exame da admissibilidade, não se questiona. A negligência com que esse exame sempre foi feito, desde 1988, é uma das causas da desmoralização do instituto.
Mas alterar a composição das comissões depende de norma legal em sentido material: resolução do Congresso. E, embora possa parecer razoável alterar essa composição para refletir “proporcionalidade” entre as duas Casas, a proposta é complicada.
Veja-se que a Comissão Mista de Orçamentos, também previstas na Constituição, é composta por 30 deputados federais, dez senadores e igual número de suplentes, conforme a Resolução nº 1 de 2006-CN, Mas a apreciação das leis orçamentárias se dá em sessão unicameral do Congresso.
Já as Medidas Provisórias, desde 1989, são apreciadas por comissão composta de 12 Deputados e 12 Senadores, e, desde a vigência da EC 32, de 2001, não são deliberadas em sessão unicameral do Congresso. Mas, mesmo antes dessa alteração, quando havia deliberação em sessão unicameral, os votos de senadores e deputados eram colhidos separadamente, nos termos do artigo 43 do Regimento Comum, embora, nos termos da Resolução nº 1, de 1989, a discussão da matéria observasse o mínimo de dois senadores e seis deputados.
Com a Resolução nº 1, de 2002, a paridade entre Câmara e Senado foi, portanto, reforçada, em reconhecimento à função de cada Casa no processo legislativo.
Retirar essa paridade, na Comissão Mista, é enfraquecer o Senado, sem mudar o predomínio que a Câmara já detém ao iniciar a discussão e apreciação das matérias, e controlar o calendário de apreciação em detrimento do papel da Casa Revisora.
Mas o mais preocupante é que essa discussão se faça sem observância dos ritos regimentais e constitucionais, usando-se o prazo de validade de medidas provisórias essenciais para o país como instrumento de coação para que uma Casa prevaleça sobre a outra, ou mesmo sobre o Poder Executivo.
Não é, uma vez mais, desconsiderando a Constituição que se fortalecerá a democracia e o funcionamento das instituições.
E, se a PEC aprovada em 2019, e que aguarda promulgação, não mais responde às necessidades do ambiente político, há que se buscar solução no âmbito dessa mesma PEC. Nada impede que a Câmara dos Deputados retome o processo, aprove um novo texto, e o remeta ao Senado.
Aí sim se terá o processo legislativo valorizado e respeitado.
Fora disso, são aventuras autoritárias e comportamentos que ofendem o próprio sentido do decoro e da responsabilidade dos agentes políticos.
Luiz Alberto dos Santos é advogado, consultor legislativo do Senado, mestre em Administração, doutor em Ciências Sociais, professor colaborador da Ebape/FGV e ex-subchefe de análise e acompanhamento de políticas governamentais da Casa Civil-PR (2003-2014)