No último dia 24 de maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) retirou de pauta o julgamento das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6305, que discutem a constitucionalidade do juiz das garantias, criado pelo “pacote anticrime”, em dezembro de 2019.
O instituto não é novo, tampouco consiste numa invencionice brasileira. Na verdade, o juiz das garantias decorre de um “desejo de imparcialidade” da jurisdição, e tem precedentes históricos remotos.
A maioria dos países democráticos já adotou o instituto com diferentes denominações: “juiz instrutor”, na França, “juiz de instrução”, em Portugal, “juiz da investigação”, na Alemanha, entre outras denominações. Na América Latina, apenas Brasil e Cuba ainda concentram, no mesmo juiz, as funções instrutórias e jurisdicionais.
Na linha da jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, com precedente histórico no caso Piersack VS Bélgica, entende-se, desde 1982, ser contrário ao padrão objetivo da imparcialidade do juiz o fato de ele estar envolvido anteriormente com funções de investigação e persecução e exercer, a posteriori, a função de julgador da causa.
É preciso entender melhor a matéria.
A persecução penal, ato de perseguir o crime para punição do agente, ostenta duas fases: a inquisitória e a judicial. A primeira, de regra, se procede perante a autoridade policial, dentro de um inquérito, com contraditório bastante relativizado. É nessa instância que se reúnem os elementos de informação necessários à formalização de uma acusação em juízo.
Na segunda fase, munido das “provas” amealhadas no inquérito, o órgão de acusação (Ministério Público, preponderantemente) leva ao judiciário o pedido de condenação do acusado (denúncia), dando início à ação penal propriamente dita, com audiência de instrução para oitiva de testemunhas, diligências, acareações, reconhecimento de pessoas e coisas e outras formas de produção de prova que embasarão um juízo absolutório ou condenatório, por parte do magistrado.
Ocorre que, durante a fase inquisitorial, o delegado pode requerer ao magistrado a quebra de sigilo bancário e fiscal, realizar interceptações telefônicas, produzir provas antecipadas, requerer a prisão do investigado, entre outras medidas. Assim, o primeiro contato do juiz com o processo se dá num ambiente marcado pela inquisitoriedade, no qual a defesa pouco interfere.
Concluídas as investigações, em regra, dá-se início ao processo judicial, quando então o réu comparece aos autos para oferecer efetiva defesa, em juízo.
As questões são: o magistrado que atuou na fase inquisitorial teria a necessária e indispensável imparcialidade para julgar o réu? E, não seria o caso de se atribuir a um juiz (juiz das garantias) a prática dos atos anteriores à denúncia e a outro magistrado o julgamento do processo, para evitar a “contaminação” do julgador?
Uma primeira corrente responde sim à primeira indagação, alegando, inclusive, que este juiz é o mais preparado para o julgamento do feito porque está sobejamente informado das circunstâncias do crime. Além do mais, trazem argumentos relativos à impossibilidade de instalação do instituto do juiz das garantias em razão de limitações ligadas à administração judiciária, argumento este que, a rigor, não guarda conteúdo jurídico.
É importante lembrar que, pela regra atual, o artigo 83, do Código de Processo Penal, define que o juiz que atuou no processo, mesmo antes da denúncia, é competente para o julgamento do feito. É o que se chama de “juiz prevento”.
A criação do juiz das garantias, portanto, preconiza alterar essa regra.
Aliás, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos já defende, desde 1982, que juiz prevento é juiz contaminado e, portanto, não pode julgar a causa.
O Brasil, portanto, está na contramão da corrente predominante. O que, para o mundo, é causa de impedimento, para o Brasil, é causa de prevenção.
Os que defendem a alteração da regra argumentam, basicamente, que o juiz, enquanto ser humano, sofre influências da fase inquisitiva que contaminam o seu juízo de valor sobre a matéria, seja pelo fato de ter estado durante algum tempo ouvindo apenas a versão policial, seja por ter deferido medidas gravosas, cuja necessidade e adequabilidade serão confirmadas ou infirmadas no processo penal.
Filio-me à segunda corrente. E o digo por razões jurídicas e metajurídicas. Afinal, não se afigura crível imaginar que um magistrado possa autorizar a interceptação telefônica do acusado, decretar a quebra do sigilo telefônico, telemático, bancário e fiscal, decretar sua prisão preventiva, manter o réu preso, justificando a manutenção da prisão no chamado periculum libertatis (perigo que decorre do estado de liberdade do acusado), para, ao fim do processo, declará-lo inocente.
No mais das vezes, o magistrado cuidará de confirmar suas primeiras impressões, legitimando, por meio da sentença condenatória, a sua atuação na fase pré-processual.
Não se trata de um “desejo de parcialidade”, mas de uma necessidade humana no sentido de demonstrar coerência e evitar uma situação constrangedora sob o prisma da qualidade da jurisdição oferecida às partes.
No entanto, é preciso lembrar que só com o processo penal se inicia, de fato, o contraditório e a ampla defesa. Portanto, a defesa do acusado entra no segundo tempo do jogo, com 4 a 0 para a acusação e um magistrado hiperidratado de informações unilaterais. Não dá pra virar a partida. As chances de absolvição são mínimas.
Acrescente-se a isso o fato de o magistrado, hipoteticamente, ter tido acesso a uma prova ilícita na fase inquisitorial, que, pela sua ilicitude, não foi carreada aos autos do processo. Como imaginar que o juiz não a consideraria ao julgar o acusado? Não parece possível que um julgador, enquanto ser humano, consiga ignorar os elementos e circunstâncias inseridos na sua consciência durante a fase do inquérito.
Por fim, deve-se ter em mente que o instituto do juiz das garantias não cria função nova, mas separa as funções instrutórias das funções jurisdicionais, para entregar ao processo penal um juiz com espírito livre e descontaminado, capaz de lançar um olhar de imparcialidade às partes, a fim de garantir a máxima originalidade da atividade cognitiva.
Luiz Mário Guerra é advogado criminalista, mestre em Direito Penal, procurador do estado de Pernambuco e sócio do Urbano Vitalino Advogados.