Embora não seja um discurso recente, o argumento das capacidades institucionais vem ganhando cada vez mais força no cenário jurídico brasileiro, especialmente sob a ótica de Cass Sunstein e Adrian Vermeule, no texto “lnterpretation and Institutions”.
Pouco se aborda, porém, o esvaziamento da jurisdição constitucional quando, em um contexto de diálogo institucional e reconhecimento das capacidades institucionais, o poder “provocado” pelo Judiciário possui deliberada vontade de não agir. É o caso, por exemplo, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347 [1], na qual o Supremo Tribunal Federal reconheceu o “estado de coisas inconstitucional” do sistema carcerário brasileiro e, entre outros fatores, a falta de “motivação política do Executivo” para resolver a questão de maneira coordenada com os demais poderes.
Em primeiro lugar, deve-se delimitar o que se entende por “capacidades institucionais”, haja vista que, conforme apontam Arguelhes e Leal [2], ainda falta clareza quanto à estrutura de tal concepção. O argumento em questão apresenta uma certa noção de separação de poderes e de desenho institucional que pressupõe especialização funcional. Isto é, cada instituição possui suas capacidades fixadas e, portanto, suas decisões são adequadas para os problemas cuja solução é de sua competência.
Apontam os autores que a noção de especialização funcional é uma idealização, devido à complexidade da realidade de um sistema constitucional. Ainda que haja um esforço inicial para alocar o poder entre as diversas instituições, essa alocação pode ser ambígua, podendo mais de uma esfera solucionar a questão, ou ocorrendo um movimento das próprias instituições para, desde sua esfera de competência, promover leituras transformadoras dessa separação de poderes e prerrogativas, de forma a alterar o desenho institucional.
Nesse contexto, surge a possibilidade de conflito interinstitucional, dada a necessidade de analisar qual instituição se mostra mais capacitada para enfrentar um problema com roupagem específica. Infere-se, para esta análise, um modelo de “concorrência harmônica” entre as instituições, haja vista perseguirem a realização de objetivos comuns, desde um ideal regulativo de unidade do poder estatal — o que possibilita, assim, uma efetiva coordenação e interação equilibrada em um cenário de tensão interinstitucional.
Assim, cabe destacar que medir as capacidades de diferentes instituições é oportuno justamente quando há incerteza quanto ao grau de confiabilidade das respostas que fornecem — especialmente para questões complexas. Conforme apontam os autores, cada instituição dispõe de uma estrutura normativa e administrativa própria para realizar suas funções constitucionais, possuindo então distintas ferramentas para enfrentar a incerteza, sem nunca eliminá-la completamente. Surge, então, a impossibilidade de se afirmar que certos assuntos deverão ser sempre tratados por determinadas instituições que reuniriam as condições necessárias para formular as respostas apropriadas.
Quando o direito positivo é incapaz de designar uma única resposta quanto à adoção de uma teoria interpretativa ou forma de alocação de poder decisório em um cenário de tensão interinstitucional, torna-se então necessário recorrer ao argumento das capacidades institucionais, o qual aponta que se deve optar pela melhor alternativa relativa. A estratégica básica de raciocínio, apontam Arguelhes e Leal, é a de que não se deve buscar uma solução ideal e recomendar aos órgãos decisores que se aproximem ao máximo dela. Pelo contrário, deve-se comparar os custos associados a cada estado de coisas possível vinculado à implementação de distintas alternativas em um dado cenário, buscando adotar a chamada “segunda melhor” solução (second-best reasoning).
A justificativa para a adoção dessa estratégia é a consideração de uma discrepância intransponível entre o plano ideal e a realidade na qual a teoria deve se concretizar. Nesse sentido, a inovação trazida por Sunstein e Vermeule é a forma como lidam com a inafastável possibilidade de erro na aplicação teórica por atores institucionais com capacidades limitadas. Oferecem, então, outra resposta à assimetria entre as condições de diferentes juízes reais e entre juízes reais e ideais.
Nesse cenário, o argumento das capacidades institucionais, ao considerar as habilidades e limitações de cada instituição para exercer suas funções em um dado contexto, possibilita fixar limites epistêmicos e de legitimidade da instituição avaliada, a partir de uma análise empírica. É considerado, pois, uma premissa, à luz dos limites e capacidades (subjetivas e objetivas) do Poder Judiciário em si e comparado com outras instituições, para a escolha de métodos de decisão mais adequados, capazes de orientar juízes na interpretação de textos e tomada de decisões confiáveis.
Entretanto, o que parece não configurar, ainda, no debate de capacidades institucionais, é como, em um cenário de diálogo institucional, trazido de forma recorrente pelo Supremo Tribunal Federal em suas decisões, o reconhecimento das capacidades institucionais pode, frente à deliberada vontade de não agir do outro poder, esvaziar a jurisdição constitucional.
A Corte Suprema, ao caracterizar o “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário nacional na ADPF 347, reconheceu problemas tanto de formulação e implementação de políticas públicas, quanto de interpretação e aplicação da lei penal, em um cenário de evidente falta de coordenação institucional.
Considerou, assim, que o quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais denunciado não apresenta perspectiva de mudança sem a articulação de medidas de diferentes naturezas e oriundas da União, dos estados e do Distrito Federal — intervenções legislativas, executivas, orçamentárias e interpretativas.
Ainda, pontuou que as declarações formais de direitos, embora contempladas pela Constituição brasileira e pelos tratados ratificados pelo país — e, portanto, dotados de caráter constitucional — são descumpridas pelo Poder Executivo, o qual possui como atribuição viabilizar a implementação do que prescreve e determina a Lei de Execução Penal (LEP), além de outras legislações. Este não vem adotando as medidas necessárias ao adimplemento de suas obrigações legais, apesar de o artigo 203, LEP, prever mecanismos destinados a compelir as unidades federadas a projetarem a adaptação e a construção de estabelecimentos e serviços penais previstos nesta, devendo fornecer também os equipamentos necessários para seu funcionamento regular.
Dessa forma, o posicionamento do tribunal foi de considerar, no referente à separação de Poderes, as capacidades institucionais superiores do Legislativo e do Executivo comparadas às do Judiciário nesta problemática, chamando atenção para as falhas estruturais decorrentes do vazio de políticas públicas eficientes. Na decisão, foi reiterada a necessidade de o Supremo agir através de um diálogo com os outros Poderes e a sociedade, cabendo-lhe catalisar ações e políticas públicas, coordenar a atuação dos órgãos do Estado na adoção dessas medidas e monitorar a eficiência das soluções. Não está no escopo de suas atribuições, porém, conforme considerado na ADPF, definir o conteúdo dessas políticas e os meios a serem empregados de maneira detalhada.
A decisão reforçou, assim, o argumento das capacidades institucionais, na medida em que o Poder Judiciário, em sua Corte Suprema, observou os limites de suas atribuições constitucionais. Ao invés de desconsiderar as capacidades institucionais de outros Poderes, delimitou sua função de coordenação destas, no intuito de afastar o estado de inércia estatal configurado.
No entanto, essa “intervenção judicial equilibrada”, ao passo que respeita as competências de cada poder, também pode esvaziar a jurisdição constitucional. Apesar de o STF haver deferido em setembro de 2015, por maioria dos votos, a medida cautelar determinando à União a liberação do saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) para utilização concernente à finalidade para a qual foi criado, abstendo-se à época de realizar novos contingenciamentos, o cenário parece não ter se modificado.
Desde a data da publicação do acórdão da referida ADPF, em 2016, até 2020, a dotação orçamentária do Funpen foi reduzida em quase 90%. A Defensoria Pública da União (DPU), então, ajuizou reclamação constitucional [3] ao STF em outubro de 2020, por descumprimento da decisão do Plenário de 2015. De acordo com a DPU, apesar de o saldo haver sido liberado, ao invés de um aumento do investimento no sistema prisional, a União “manejou diversos instrumentos legais que provocaram a progressiva diminuição da arrecadação do Funpen”.
Neste sentido, destacam-se diversas medidas provisórias pelo presidente à época, dentre elas a Medida Provisória nº 55, que alterou aspectos significativos das fontes de custeio e destinação de recursos ao Funpen. Conforme notas técnicas do Departamento Penitenciário Nacional juntadas ao processo, a dotação final do Funpen foi de apenas R$308 milhões em 2020, o que representa queda de quase 67% em relação a 2019, conforme apontado na reclamação. Este é um cenário de evidente falta de vontade política do Poder Executivo, que torna inerte o entendimento vinculante firmado na medida cautelar da ADPF nº347.
Logo, ainda que epistemicamente o Supremo tenha atuado de maneira correta sob a ótica das capacidades institucionais, na prática, apesar de declarado o “estado de coisas inconstitucional” no sistema prisional brasileiro, foram poucos os avanços para resolver a problemática.
É evidente que não cabe ao STF, não somente devido ao desenho institucional, mas também por falta de expertise e legitimidade, definir como será utilizada a verba do Funpen, ou deliberar sobre a construção de unidades prisionais. Portanto, em um cenário ideal de possível cooperação política, a lógica do diálogo e das capacidades institucionais funciona como viabilizadora da atuação do Supremo enquanto guardião de minorias cujos direitos são sistematicamente violados. Como se nota da decisão trazida, porém, em um cenário em que um dos poderes se mostra contrário à deliberação da Corte Suprema, este pode simplesmente optar por ser omisso — e é nesse cenário em que o argumento das capacidades institucionais não funciona.
Cabe mencionar que, apesar das medidas cautelares determinas pelo Supremo, em sua maioria não cumpridas em virtude da omissão do Poder Executivo, espera-se ainda pelo julgamento no mérito, em breve, da questão trazida. Nesse aspecto, mostra-se decisão importante o julgamento da ADPF n°347, assumindo a Corte Suprema seu compromisso com os direitos humanos e atuando dentro do seu escopo de atuação, cabendo igualmente aguardar a postura do Poder Executivo frente à decisão futura — finalmente haverá vontade política para, dentro dos limites das capacidades institucionais, reverter o quadro de violações massivas e persistentes dos direitos fundamentais no sistema prisional do país?
Em síntese, apesar de o poder ser monopolizado no Estado, a sua divisão horizontal impõe custos inafastáveis de negociação, gerando a necessidade de uma cooperação permanente entre as distintas esferas, com vistas a alcançar os objetivos perseguidos por este. Conforme apontado na ADPF 347, “a vontade política de um único órgão ou poder não servirá para resolver o quadro de inconstitucionalidades”, cenário que esperamos ser modificado através do diálogo institucional vislumbrado.
[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347. Relator: ministro Marco Aurélio, 9 de setembro de 2015. Disponível em: Acesso em 14/04/2023.
[2] ARGUELHES, Diego W.; LEAL, Fernando. “O argumento das” capacidades institucionais “entre a banalidade, a redundância e o absurdo”. Revista Direito, Estado e Sociedade. Rio de Janeiro, nº38, 6-50, 2011.
[iii] VALENTE, Fernanda. “União provoca diminuição progressiva no Fundo Penitenciário, diz DPU no STF”. Conjur. 30 de outubro de 2020. Disponivel em: . Acesso em 14/04/2023.
Luiza da Rocha Guedes é graduanda em Direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio), integrante da Liga Acadêmica de Ciências Criminais da FGV (Laccrim-FGV) e diretora de comunicação do projeto Absorvidas.