O tema de prescrição, tão caro ao processo penal democrático, muitas vezes é mal interpretado, de forma tal que parece ser instituto a serviço da impunidade. Porque ligada à impossibilidade de exercício da pretensão punitiva em decorrência do transcurso do tempo, a extinção da punibilidade por força da prescrição causa, na prática e na teoria, o efeito contrário àquele esperado num Estado democrático de Direito, no qual deve(ria) vigorar o princípio do “estado de inocência”, da “presunção de inocência” ou “não culpabilidade”, como preferem alguns.
De acordo com a Constituição, ninguém pode ser considerado culpado senão depois do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, isto é, da preclusão maior de decisão de condenação. Em palavras outras, enquanto uma pessoa não é condenada em pronunciamento firme, insusceptível de reforma — ressalvada, evidentemente, a sempre viável revisão criminal —, a ela deve ser conferido o único tratamento possível: o de inocência.
Assim deve ser por uma questão até mesmo de coerência: se só se é culpado depois do trânsito em julgado de decisão penal condenatória, antes dela se é inocente e como tal se deve ser tratado.
O problema surge, sem embargo, justamente nos casos de prescrição, a qual ocorre unicamente em razão da (de)mora estatal na condução e conclusão dos processos-crime. Devido à demora, o Estado perde o “direito-dever de punir”. Essa perda do direito-dever de punir de punir, todavia, deve(ria) ser interpretada de modo muito restrito, haja vista as lacunas legais que possibilitam, em muitos casos, que Estado se beneficie de uma posição que ele mesmo criou.
Para exemplificar a afirmação supra, elencam-se duas situações praticamente incontroversas no direito brasileiro, cuja incoerência salta aos olhos do observador mais atento.
Num primeiro caso, cita-se o artigo 2º, §1º, da Lei Federal 9.613/98, com redação dada pela Lei Federal 12.683/2012. Referido dispositivo cuida da “autonomia” do “parasitário crime de lavagem de dinheiro” e dispõe que “a denúncia será instruída com indícios suficientes da existência da infração penal antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor, ou extinta a punibilidade da infração penal antecedente”.
A autonomia do crime de lavagem de capitais não é, como se sabe, absoluta, motivo por que se houver, por exemplo, absolvição do sujeito em relação ao crime antecedente, resulta inviável a condenação pelo branqueamento, que figura, quer queira ou não, como delito acessório.
O problema, aliás, tem espaço aqui: uma vez extinta a punibilidade da pessoa acusada de ter praticado o crime antecedente, ainda assim se entendem factíveis o processamento e a condenação do sujeito pelo crime de lavagem.
A questão apenas demonstra a incoerência processual que circunda o tema: a prescrição é matéria de ordem pública, e sua análise impede a apreciação do mérito da demanda penal. Assim, se determinada pessoa que se julga injustiçada por um processo penal claramente temerário deseja ser absolvida, deve ela “torcer” para o processo tramitar a tempo e modo, visto que o excesso de prazo na conclusão do feito pode dar espaço à prescrição, que terá apreciação privilegiada em relação ao mérito mesmo da causa.
O cidadão que se sente injustiçado dirá: não quero que o Estado declare a prescrição, pois sou inocente e quero provar isso! O jurista mais apressado, a fim de acalmá-lo, replicará: calma, cidadão! Não precisa clamar por absolvição. Você é presumidamente inocente, status que só se altera com a condenação. No teu caso, dirá o “operador do direito”, como você não foi condenado, permanece inocente.
Tal conclusão, posto que apenas aparentemente correta, camufla situações em que a prescrição, longe de dar causa à impunidade, protrai o constrangimento próprio do processo penal, que é uma pena em si mesmo. Isso porque, mesmo que a pretensão punitiva relativa ao delito gerador antecedente tenha sido extinta pelo decurso do tempo, ainda assim remanesce a possibilidade de o agente responder pelo crime de lavagem.
No processo relativo ao crime gerador antecedente — em que o agente poderia discutir em caráter de cognição exauriente os elementos constitutivos do tipo de injusto, como conduta, resultado e nexo causal, no âmbito da tipicidade, possíveis causas de justificação, na esfera da antijuridicidade, e causas relacionadas ao potencial conhecimento da ilicitude, no marco da culpabilidade —, operada a prescrição, todas as discussões se encerram, e a decisão é somente uma: extinção da punibilidade e “manutenção do estado de inocência”.
Com tal decisão, finalizado o processo, a solução que se espera não pode(ria) ser outra senão a de inocência. Diga-se mais: como a prescrição subtrai do cidadão processado o direito a um pronunciamento jurisdicional acerca da (im)procedência da pretensão acusatória, ou seja, da efetiva ocorrência ou não do crime, jamais se poderia interpretar o encerramento do feito de forma prejudicial a quem já suportou por longos anos a sua desgastante e, por si só, constrangedora existência.
Ocorrida a prescrição, é como se o Estado dissesse: cidadão, não me importa se você agiu sem dolo, sem culpa; não me importa se o resultado produzido não está ligado causamente à sua conduta; não me importa se você agiu em erro determinado por terceiro; não me importa se você agiu amparado por uma causa de justificação; não me importa, por fim, se você agiu sem o potencial conhecimento da ilicitude. Meu “veredicto”, como não equivalerá a uma condenação, mal nenhum lhe há de causar. Você era e permanecerá sendo inocente. Alegre-se! Agradeça-me pela minha (de)mora!
Essa “solução” processo, sem embargo, não são somente “flores”!
Para o cidadão leigo, a prescrição não passa de um benefício ao “criminoso”, que escapou por pouco da condenação. Para o Estado, por sua vez, a decisão extintiva da punibilidade não impede novos processos, tanto no âmbito criminal, por crime de lavagem de capitais, quanto na esfera do direito administrativo sancionador, por possíveis ações de improbidade administrativa.
A situação é duplamente prejudicial: primeiro, porque todos têm o direito à razoável duração do processo, direito fundamental que muitas vezes é violado nos casos em se opera a prescrição, cujo pressuposto é justamente o excesso de prazo na conclusão do feito. Segundo, porque, extinta a punibilidade do agente em decorrência da demora estatal, nenhuma interpretação contrária à presunção de inocência poderia ser permitida. Não é isso o que acontece na prática.
Ora, se o cidadão tivesse sido julgado no tempo certo, uma vez absolvido, não poderia ser nem mesmo processado pelo crime de lavagem de capitais, devido ao desaparecimento, com a absolvição relativa ao crime gerador antecedente, da elementar “proveniente, direta ou indiretamente, de infração penal” [1].
Na mesma direção, se o cidadão tivesse sido julgado no tempo certo, uma vez absolvido, não poderia ser nem mesmo processado por improbidade administrativa, porquanto a absolvição criminal em ação que discute os mesmos fatos impede o trâmite da ação de improbidade administrativa, havendo comunicação com todos os fundamentos absolutórios previstos no artigo 386 do CPP [2].
Como se nota, para além de não ser um benefício ao cidadão processado, como muitos querem fazer crer, o tratamento conferido à prescrição penal em nada prestigia o princípio da presunção de inocência, na medida em que desconsidera por completo os anos de tramitação do processo em cujo bojo a prescrição se operou e permite que novas persecuções de conteúdo sancionatório se iniciem, seja para apurar o crime de lavagem de capitais, seja ainda para calibrar responsabilidade administrativo-sancionadora por ato de improbidade administrativa.
O modelo atual — refletido nos artigos 2º, §1º, da Lei Federal 9.613/98 e 21, §4º, da Lei Federal 8.429/92 — aponta para a necessidade de rediscussão acerca dos efeitos da extinção da punibilidade no processo penal e no processo administrativo sancionador correlato àquele.
O caminho mais acertado, talvez, seja a adoção da teoria quadripartite de crime, a fim de que somente haja condenação nos casos em que o fato seja típico, antijurídico, culpável e punível, a qual vem inclusive sendo adotada pelo Superior Tribunal de Justiça [3] e cuja incidência nas hipóteses ora tratadas teria, quiçá, mais coerência dogmática do que nos cases apreciados pela Corte Cidadã.
[1] Artigo 1º da Lei Federal 9.613/98: “Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.
Filipe Maia Broeto é advogado criminalista, professor de Direito Penal e Processo Penal, mestrando em Direito Penal Econômico (Unir-ESP) e Direito Penal Econômico e da Empresa (UC3M-Esp), especialista em Direito Penal Econômico (PUC-MG) e autor de livros e artigos jurídicos publicados no Brasil e no exterior.