O debate quanto à forma e eficácia da chamada prova por reconhecimento não é novo e ganhou novos contornos em data recente em face de dissidência que se estabeleceu entre o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça.
O reconhecimento, como salienta Frederico Marques [1], “pode fornecer prova da identidade física da pessoa, ou da individualização da coisa, o que já lhe dá caráter de meio de prova”. Hélio Tornaghi, por sua vez, afirma que ele “é fator de convencimento do juiz” [2].
O procedimento de reconhecimento de pessoa está disciplinado no artigo 226 do CPP, que adota diversas formalidades a serem cumpridas pela autoridade [3], voltadas para evitar os falsos reconhecimentos e o erro judiciário.
Hélio Tornaghi, ao tratar da possibilidade de erro judiciário, admite que uma das formas mais insidiosas disso ocorrer é o reconhecimento equivocado. Enfatiza que “muitas são as causas dos falsos reconhecimentos e é necessário lançar mão das cautelas necessárias para eliminá-las, tanto quanto possível. Tais erros decorrem de fatores externos, ou internos da convergência de uns e outros. Entre os externos figuram as más condições ambientais para uma observação segura: o escuro, a distância, a velocidade etc. Entre os segundos: a desatenção, o estado emocional, a paixão etc. Entre os últimos o mais importante é o tempo transcorrido entre a observação do fato e o reconhecimento”.
Como se disse, o debate sobre esse tema se acentuou com o julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça do HC nº 598.886/SC, 6ª Turma, relator o ministro Rogerio Schietti, realizado em 27/10/2020, no sentido de dar uma nova interpretação ao artigo 226 do CPP e exigir o cumprimento das formalidades previstas nesse dispositivo para a validade do reconhecimento, sob pena de nulidade da prova.
Esse entendimento, consigne-se, divergiu de remansosa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, em diversos precedentes, assentou que o artigo 226 do CPP não exige, mas apenas recomenda, a colocação de outras pessoas junto ao suspeito para a realização desse procedimento (AP 1.032, rel. Edson Fachin, Tribunal Pleno, pub. 24-05-2022; RHC 125.026 AgR, Rel(a). Rosa Weber, 1ª Turma, pub. 13-08-2015; RHC 119.439, rel. min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, pub. 05-09-2014; HC 102603, rel. Ayres Britto, 2ª Turma, pub. 13-06-2011).
Mais recentemente, a 1ª Turma do STF, no julgamento do HC 227.629-AgR (rel. min. Roberto Barroso, j. em 26/6/2023, pub. 28-06-2023), reafirmou que “O entendimento desta Corte é no sentido de que “o art. 226 do Código de Processo Penal não exige, mas recomenda a colocação de outras pessoas junto ao acusado, devendo tal procedimento ser observado sempre que possível” (RHC 125.026-AgR, rel. min. Rosa Weber)“.
A orientação jurisprudencial do STF, a nosso ver, é a que melhor se coaduna com o sistema de apreciação das provas em vigor.
O CPP, em seu artigo 155, dispõe que o juiz formará sua convicção pela livre apreciação das provas. A exposição de motivos do Código, nessa linha, e de forma expressa, consignou que o estatuto processual penal abandonou radicalmente o sistema chamado da certeza legal. Lá está assentado, ainda, que “nem é prefixada uma hierarquia de provas; na livre apreciação destas, o juiz formará honesta e lealmente a sua convicção…”. Todas as provas são relativas: nenhuma delas terá ex vi legis o valor decisivo ou necessariamente maior prestígio que outra. Além disso, se “… é certo que o juiz fica adstrito às provas constantes dos autos, não é menos certo não que fica subordinado a nenhum critério apriorístico no apurar, através delas, a verdade material”.
Desse modo, o reconhecimento de pessoa, embora sem a estrita observância do procedimento ditado pelo CPP, pode ser aceito pelo juiz, de acordo com o sistema da livre apreciação das provas, para a demonstração da autoria do delito.
O Código de Processo Penal relaciona determinados meios de prova, que não encerram em hipóteses de numerus clausus. Em outros termos, se o ato for praticado sem as formalidades do artigo 226 do CPP, tecnicamente não existirá com o nomen juris “reconhecimento”, mas nada obstará sua influência na convicção do juiz como qualquer meio de prova.
Nesse sentido, é a lição de Hélio Tornaghi [4]:
“2º) Colocação do reconhecendo. Em seguida, aquele que tiver de ser reconhecido será colocado ao lado de outras pessoas que com ele tiverem semelhança. Jamais, portanto, poderia aceitar-se como reconhecimento a identificação de uma pessoa insulada, sozinha. Isso, porém não significa que o juiz não pudesse vir a convencer-se mercê desse ato. Por não praticado pela forma prescrita em lei, ele não apenas seria irrito, mas inexistiria como reconhecimento. Em outras palavras: não teria havido o reconhecimento de que a lei fala, o reconhecimento que ela desejaria. Mas teria havido outro ato e se, apesar de tudo, o juiz se convencesse de sua valia, não haveria por que decidir contra sua convicção. A forma se exige para a existência do reconhecimento, a inobservância da forma acarreta a inexistência desse ato, mas não a inexistência de todo e qualquer ato. E se outro ato praticado convence o juiz, não é possível dizer que ele não está convencido. A lei prevê determinados meios de prova, mas não impede outros; ao contrário, diz expressamente: ‘No juízo penal, somente quanto ao estado das pessoas serão observadas as restrição à prova estabelecidas na lei civil’ (art. 155). (V. o que digo no Cap. I deste mesmo Título sobre o princípio da liberdade da prova.)”.
Frederico Marques [5], da mesma forma, destaca que “… se de outra forma efetuar-se o reconhecimento de pessoa ou coisa, nem por isso deve o juiz a priori recusar-lhe qualquer valor probatório. Tal orientação não condiz com os princípios aceitos em nossa legislação sobre o livre convencimento”.
Não se pode ignorar as preocupações esposadas pela doutrina e pela jurisprudência acerca da necessidade de se observar as formalidades do artigo 226 do CPP, para dar maior credibilidade ao reconhecimento de pessoas. Todavia, o critério objetivo e inflexível adotado pelo STJ em diversos julgados também não pode prevalecer. A colocação do suspeito junto a outras pessoas muitas vezes não pode ser realizada por diversos motivos e, em alguns casos, pode apresentar dificuldades de se arregimentar quem possa auxiliar a autoridade nesse procedimento, colocando-se ao lado do suspeito, em razão das circunstâncias fáticas (horário da prisão, por exemplo). Pode ocorrer, também, que o investigado ou o acusado tenha algum sinal característico (como, v.g., uma tatuagem no rosto ou uma característica física própria) que impeça a estrita observância do disposto no artigo 226, do CPP.
Consequentemente, o valor probante do reconhecimento de pessoas efetivado sem a observância estrita do disposto no artigo 226 do CPP deve ser analisado caso-a-caso, inclusive em confronto com as demais provas amealhadas.
O processo penal não pode ser tomado de forma fenomênica, dissociada da realizada. Portanto, o reconhecimento de pessoas não pode, a priori e comodamente, ser considerado uma evidência irrefutável da autoria do delito ou, ao reverso, uma prova ilícita, por um critério rígido e automático do julgador. Ao prestar jurisdição o magistrado não pode ser alijado do seu relevante poder de avaliar livremente a prova, sem critérios formais e apriorísticos, até porque, como sabe, ele terá o ônus de fundamentar e possibilitar às partes o direito de impugnar pontualmente o caminho mental percorrido para se chegar ao resultado.
De resto, não é demasiado relembrar que o nosso Código de Processo Penal é infenso ao formalismo. Não é por outra razão que não se decreta nulidade que não tenha causado prejuízo ou influído concretamente na apuração da verdade material.
Jorge Assaf Maluly é procurador de Justiça de Habeas Corpus e Mandados de Segurança Criminais (MP-SP).
Pedro Henrique Demercian é doutor e mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), professor nos programas de graduação e pós-graduação estrito sensu da PUC-SP e procurador de Justiça de Habeas Corpus e Mandados de Segurança em São Paulo.