Marcos D’Angelo: Liberação de passaporte em execução trabalhista

Um empresário de Salvador cujo passaporte havia sido suspenso para garantir o pagamento de dívidas trabalhistas terá o documento liberado pela Justiça do Trabalho após apresentar Habeas Corpus ao TST (Tribunal Superior do Trabalho).

Segundo a Subseção II Especializada em Dissídios Individuais (SDI-2), é possível a adoção de medidas atípicas para forçar o cumprimento de decisão judicial. Porém, no caso concreto, a medida não recaiu sobre o patrimônio do empresário, mas sobre sua liberdade, uma vez que o documento é necessário à sua atividade profissional.

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Sobre o tema, o STF (Supremo Tribunal Federal), em 9 de fevereiro de 2023, finalizou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5941/DF, que teve por objeto os artigos 139, IV; 297, caput; 380, parágrafo único; 403, parágrafo único, 536, caput e §1º; e 773 do CPC, que envolvem medidas coercitivas, indutivas ou sub-rogatórias, tais como apreensão de carteira nacional de habilitação e/ou suspensão do direito de dirigir, apreensão de passaporte, proibição de participação em concurso público e em licitação pública, voltada contra devedores em ações executivas transitadas em julgado.

Por maioria, o Pleno do STF julgou improcedente o pedido de declaração de inconstitucionalidade, reconhecendo, assim, a constitucionalidade dos dispositivos do CPC que autorizam a adoção de medidas atípicas para cumprimento de ordem judicial, mesmo que relativas à prestação pecuniária. Destacou-se, naquela oportunidade, a necessidade de reverenciar o acesso à Justiça e de assegurar a eficiência do sistema, valores que legitimam a atuação criativa dos magistrados, pautada pelos princípios ali enunciados, como o da menor onerosidade, proporcionalidade e adequação, a serem ponderados no exame de cada caso concreto.

Ocorre, contudo, que ainda que se tenha entendido pela possibilidade de bloqueio, por exemplo, do passaporte do devedor, existem situações que precisam ser consideradas em cada caso para que não se cometa exageros que sacramentarão a impossibilidade de quitação da dívida pelo devedor.

Nessa sistemática, é importante observar que embora o artigo 139, IV, do CPC, autorize a adoção de todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, o direito de ir e vir corroborado pela necessidade de trabalho do devedor, relativiza o poder de bloqueio dos seus documentos (exemplo: passaporte e CNH), não sendo razoável que uma medida judicial, adotada para compelir o cumprimento de uma ordem judicial, possa impactar a vida do devedor, dificultando ou impossibilitando o seu exercício profissional, que permite o seu sustento e o de sua família.

Não se afasta o fato de que a natureza alimentar do crédito trabalhista (artigo 100, §1º, da CRFB/88), quando lida em consonância com o direito fundamental à duração razoável do processo (artigo 5º, LXXVIII, da CRFB/88), revela a importância de o processo do trabalho ser entendido como um instrumento de efetividade de direitos, jamais como um fim em si mesmo.

Porém, a apreensão de passaporte e/ou de CNH, assumem, pelo menos perante o direito do trabalho, uma função de punição do devedor e não de criação de meios que permitam ou facilitem o objetivo principal do processo que é a satisfação da obrigação perseguida pelas partes.

Assim, ao atingir, primariamente, a liberdade de ir, vir ou permanecer, no caso da apreensão do passaporte, e, de forma secundária, no caso da apreensão da CNH, o direito de liberdade do devedor, as referidas medidas acabam por confrontar diretamente o conceito e a natureza real da execução prevista no artigo 789 do CPC/2015.

Ou seja, não havendo comprovação que a suspensão do passaporte ou da CNH contribuirá para a satisfação da obrigação determinada no título executivo — tratando-se este de importante requisito autorizador da imposição dessa medida atípica de execução, ainda que exista crédito a ser satisfeito pelo devedor, não se divisa a proporcionalidade e a relação de efetividade entre a medida de suspensão dos documentos do réu e a satisfação dos créditos trabalhistas.

Este tem sido o entendimento do TST sobre o tema:

“RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA . ARTIGO 139, IV, DO CPC. MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS. SUSPENSÃO DE CNH E PASSAPORTE. INEXISTÊNCIA DE ELEMENTOS, NO CASO CONCRETO, QUE COMPROVEM A ADEQUAÇÃO E A PROPORCIONALIDADE DA MEDIDA IMPOSTA. CONCESSÃO DA SEGURANÇA. 1. Mandado de segurança impetrado contra ato de Juízo da execução em que determinada a suspensão da CNH e do passaporte do sócio executado, com fundamento no artigo 139, IV, do CPC. 2. Embora a regra seja a inadmissão do mandado de segurança contra decisão passível de recurso (OJ 92 da SBDI-2 do TST), deve ser permitida a utilização da via da ação mandamental na hipótese examinada, excepcionalmente, diante da natureza do gravame supostamente imposto no ato judicial censurado, concernente à suspensão da CNH do executado. 3. O artigo 139, IV, do CPC de 2015 consagra a possibilidade de adoção de medidas coercitivas atípicas, voltadas à satisfação de obrigações de conteúdo pecuniário inscritas em títulos executivos judiciais. No entanto, a utilização das referidas medidas pelo magistrado deve assumir caráter excepcional ou subsidiário, apenas sendo lícita quando as vias típicas não viabilizarem a satisfação da coisa julgada. A adoção de medidas executivas atípicas será oportuna, adequada e proporcional, especialmente, nas situações em que indícios apurados nos autos revelem que os devedores possuem condições favoráveis à quitação do débito, diante da existência de sinais exteriores de riqueza, dos quais se pode extrair a conclusão de ocultação patrimonial. 4. Ocorre, todavia, que da decisão censurada não constam quaisquer indicações de que o devedor venha ocultando bens ou de que o padrão de vida por ele experimentado revele a existência de patrimônio que lhe permita satisfazer a execução, em ordem a justificar a drástica determinação imposta. Portanto, não observada, pela autoridade judicial, a indispensável adequação e a proporcionalidade na adoção da medida executiva atípica, que não deve ser empregada como mera punição dos devedores, desafia direito líquido e certo do Impetrante a determinação de suspensão da CNH e do passaporte, ensejando a concessão da segurança. Recurso ordinário conhecido e provido”. (RO-172-15.2019.5.05.0000, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, relator ministro Douglas Alencar Rodrigues, DEJT 02/12/2022).

Percebe-se, portanto, que embora o STF tenha validado a possibilidade de execução de atos atípicos para a busca pela satisfação da dívida perseguida pelo credor, as circunstâncias do caso concreto deverão ser consideradas pelo magistrado para que se garanta a aplicação judicial do princípio da menor onerosidade, proporcionalidade e razoabilidade, conforme defendido por grande parte da doutrina brasileira:

“A apreensão da Carteira Nacional de Habilitação e/ou do passaporte do devedor pode ser excepcional  e subsidiariamente determinada  desde que: a) haja fortes indícios de que o devedor possui patrimônio expropriável (somente o patrimônio responde: CC 391); b) o devedor, podendo pagar, se recusa a fazê-lo; c) a medida seja decretada observando-se o contraditório substancial; d) seja atendida a proporcionalidade da medida; e e) seja observada a medida executiva atípica como sendo a forma de execução menos gravosa para o devedor”. (Código de Processo Civil Comentado. SR: Revista dos Tribunais, versão eletrônica, 2020, p. 548).   

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Fontes

https://www.tst.jus.br/web/guest/-/empres%C3%A1rio-consegue-libera%C3%A7%C3%A3o-de-passaporte-suspenso-em-execu%C3%A7%C3%A3o-de-d%C3%ADvida

https://pje.tst.jus.br/consultaprocessual/detalhe-processo/100031605.2022.5.00.0000/3#fac8e3a

Código de Processo Civil Comentado. SR: Revista dos Tribunais, versão eletrônica, 2020, p. 548.

Marcos D’Angelo Faria é advogado sênior no escritório Leite, Roston, Chaves & Saciotto Advogados e mestre em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Consultor Júridico

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