Aproximando-se o fim do período de convivência entre a antiga e a nova Lei de Licitações, segundo o modelo de ultratividade trazido pela Lei nº 14.133/2021, diversas dúvidas seguem exigindo respostas. Dentre estas está uma bastante relevante e que, embora aqui levantada à luz da legislação vigente no Distrito Federal, certamente afeta a todo o país. Ela decorre do comando inscrito no § 4º do artigo 25, combinado com o inciso XXII do artigo 6º e diz respeito à exigibilidade de programas de integridade — também conhecidos como programas de compliance — em determinados contratos administrativos. São estes os textos normativos:
“Art. 6º.
XXII – obras, serviços e fornecimentos de grande vulto: aqueles cujo valor estimado supera R$ 200.000.000,00;”
Art. 25.
§ 4º. Nas contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, o edital deverá prever a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de 6 (seis) meses, contado da celebração do contrato, conforme regulamento que disporá sobre as medidas a serem adotadas, a forma de comprovação e as penalidades pelo seu descumprimento.”
No Distrito Federal, a Lei nº 6.112, de 2 de fevereiro de 2018, impõe às empresas que firmem contratos cujo valor global exceda a R$ 5 milhões a implementação de programas de integridade, nos seguintes termos:
“Art. 1º Fica estabelecida a obrigatoriedade de implementação do Programa de Integridade em todas as pessoas jurídicas que celebrem contrato, consórcio, convênio, concessão, parceria público-privada e qualquer outro instrumento ou forma de avença similar, inclusive decorrente de contratação direta ou emergencial, pregão eletrônico e dispensa ou inexigibilidade de licitação, com a administração pública direta ou indireta do Distrito Federal em todas as esferas de poder, com valor global igual ou superior a R$ 5.000.000,00.”
Em complementação a esta, foram editados o Decreto nº 40.388/2020, ao qual coube definir parâmetros para avaliação dos programas de integridade, e a Portaria CGDF nº 157/2020, onde se encontram procedimentos e diretrizes para aferir sua efetividade.
Este sistema vem funcionando nos últimos anos e tem ajudado a assegurar máxima lisura no trato da coisa pública. Afinal, os programas de compliance já se mostraram altamente eficazes na prevenção de desvios em relações contratuais firmadas em diferentes âmbitos, contribuindo para conferir alto grau de transparência às práticas empresariais e facilitando o trabalho das instâncias fiscalizadoras. Vale ressaltar que, ao lado do Distrito Federal, encontrando-se diversos entes subnacionais que adotaram leis semelhantes, sempre com o objetivo de assegurar maior controle e lisura na execução de contratos administrativos.
Não por acaso a nova Lei de Licitações incorporou este modelo, normatizado no referido artigo 25, § 4º. Ao fazê-lo, determinou que todas as contratações definidas como de grande vulto devem impor ao contratado a adoção de programas de integridade. A definição inscrita no artigo 6º, XXII, acerca do que seja contratação de grande vulto, contudo, trouxe o nó hermenêutico que precisa ser desfeito.
O dito artigo 6º, XXII, coloca o elevado patamar de R$ 200 milhões como piso para que a contratação de obra, serviço ou fornecimento seja considerada como de grande vulto. Ao trazer expresso este valor, colocou para todos a dúvida: agora, os programas de integridade só poderão ser exigidos para contratos que ultrapassem este valor, ou ainda resta margem para que estados, Distrito Federal e municípios definam pisos mais baixos? Afinal, vale destacar, R$ 200 milhões é montante superior ao orçamento anual de muitos municípios brasileiros…
Como a questão foi definida no Distrito Federal
Provocada pela Controladoria-Geral do Distrito Federal, a Procuradoria do DF discutiu o tema, firmando posição acerca de como as normas em aparente conflito deveriam ser conciliadas. Após um confronto de opiniões divergentes, o órgão acabou por adotar entendimento no sentido de que não caberia ao ente subnacional definir valor diverso daquele inscrito na lei federal como requisito para exigência de programas de compliance. Assim se lê na versão final do Parecer nº 323/2022-PGDF/PGCons:
“ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. LEI Nº 14.133/2021. CARÁTER NACIONAL. OBRIGATORIEDADE DE IMPLANTAÇÃO DE PROGRAMA DE INTEGRIDADE PELO LICITANTE VENCEDOR. OBRAS, SERVIÇOS E FORNECIMENTOS DE GRANDE VULTO. VALOR DEFINIDO PELO LEGISLADOR FEDERAL. DESPACHO – PGDF/PGCONS (90630376). ACOLHIMENTO.
1. A Lei nº 14.133/2021 se autoproclama nacional, não cabendo a esse órgão afastar esse caráter em relação ao aspecto concretamente considerado nos autos (questão do valor para grande vulto) sem reputar inconstitucional a norma nacional, o que não pode ser feito na seara administrativa.
(…)
4. A Lei nº 6.112, de 2 de fevereiro de 2018, continua vigente e eficaz, exceto quanto aos dispositivos que tratam do valor mínimo previsto para se exigir a implantação do programa e o prazo para sua instauração a partir da contratação, motivo pelo qual ACOLHO o Despacho – PGDF/PGCONS (90630376), para revisar e alterar o entendimento externado no Parecer º 323/2022-PGDF/PGCONS e sua cota com acréscimos.”
O aspecto central do parecer é a afirmação de que a nova Lei de Licitações é composta, em sua inteireza, por normas de natureza geral, o que tem como consequência subtrair a possibilidade de atuação legislativa por parte de estados, Distrito Federal ou municípios acerca de qualquer dos temas expressamente tratados. E é este ponto que se questiona.
As competências em matéria de licitação e contratos
Uma primeira consideração é necessária. Há entendimento corrente de que o comando constitucional que conferiu competência privativa para a União legislar sobre licitações e contratos (artigo 22, XXVII, C.F.) mais se assemelha a um modelo de competência concorrente (matéria tratada no artigo 24, C.F.). Isto porque, quando o artigo 22, XXVII, concede à União o poder de criar normas gerais, deixa aos entes subnacionais a capacidade de legislar suplementarmente, criando um sistema de complementação normativa. Este entendimento já há tempos encontra respaldo na jurisprudência do STF, como se vê no julgamento da ADI nº 3.735 (relator ministro Teori Zavascki) ou da ADI nº 3.059 (rel. para acórdão min. Luiz Fux), por exemplo.
A discussão que se segue e que ganha relevância especial diz respeito a definir quais normas da legislação federal possuem natureza geral e, portanto, se aplicam irrestritamente a todas as esferas; quais são específicas para a União, deixando espaço para complementação legislativa; e o que pode ser considerado lacuna a ser preenchida pelo Direito local.
Até o advento da Lei nº 14.133/2021, o tema referente à obrigatoriedade da adoção de programas de integridade diante de determinados contratos administrativos não era tratado em nível nacional. Assim, restava aberto aos entes subnacionais legislar livremente, estabelecendo seus critérios quanto a valores ou objeto. Valia, assim, o comando do § 3º do artigo 24 C.F., segundo o qual, na falta de norma geral editada pela União, Estados (e, por óbvio, Distrito Federal) teriam competência legislativa plena para tratar da matéria.
A pergunta que se coloca, então, é: tem razão a Procuradoria do Distrito Federal quando afirma que todos os comandos inscritos na Lei nº 14.133/2021 possuem natureza geral e, portanto, retiram dos demais entes federativos o poder de legislar sobre os mesmos temas?
O que é uma norma geral
O artigo 1º da Lei nº 14.133/2021 diz que: “Esta Lei estabelece normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios …”.
O texto legislativo é bastante claro, mas ainda assim abre espaço a dúvidas. Afinal, a afirmação nele contida, por si só, é suficiente para conferir a todos os dispositivos contidos no diploma a natureza de normas gerais?
Rótulos ajudam a identificar o conteúdo, mas não o definem de forma peremptória nem são capazes de o alterar. Se se coloca água dentro de uma garrafa onde esteja impresso o rótulo de um refrigerante, a água continuará sendo água. Assim também com as leis: “Lei Fundamental da República Federal da Alemanha” foi o nome conferido à Constituição adotada pela então Alemanha Ocidental em 1949. A ausência do termo “Constituição” no nome dado àquele documento nunca fez ninguém duvidar de sua natureza. O mesmo se diga quanto à prerrogativa para legislar sobre licitações e contratos administrativos, inserida no rol de competências privativas da União, mas considerada pelo STF e por boa parte dos autores do Direito Administrativo como competência concorrente.
No caso da Lei de Licitações, para saber se um comando tem natureza de norma geral ou específica deve-se olhar para seu conteúdo e as consequências que dele decorrem, não apenas para o rótulo que o acompanha. Claro que este não deve ser desprezado, mas também certamente não é suficiente para desincumbir o intérprete de sua tarefa.
Diferenciar normas gerais das demais — não gerais — nem sempre é tarefa fácil, afinal, é da essência das normas jurídicas serem gerais e abstratas. Celso Antônio Bandeira de Mello, debruçando-se sobre o exato tema que ora se analisa (normas gerais em matéria de licitações e contratos), identifica dois elementos essenciais a serem considerados. O primeiro referencial de análise é:
“a) preceitos que estabelecem os princípios, os fundamentos, as diretrizes, os critérios básicos, conformadores das leis que necessariamente terão de sucedê-las para completar a regência da matéria. Isto é: daqueloutras que produzirão a ulterior disciplina específica e suficiente, ou seja, indispensável, para regular o assunto que foi objeto de normas apenas ‘gerais’.” [1]
Dada a necessária generalidade que deve acompanhar o comando legislativo, sustenta o autor que “(…) não serão categorizáveis como disposições veiculadoras de normas gerais as que exaurem o assunto nelas versado, dispensando regramento sucessivo” [2]. Isto porque, para ter aquela natureza, os textos precisam conter um grau de abstração maior, deixando margem para que sejam complementados por outros.
Igual perspectiva se encontra em voto proferido pelo ministro Carlos Velloso, na ADI nº 933. Valendo-se de um dos estudos de referência sobre o tema (o artigo Normas Gerais nas Licitações e Contratos Administrativos, de Alice Gonzalez Borges, Revista de Direito Público n. 96/81), Carlos Velloso reitera a noção de que normas gerais precisam ser dotadas de maior grau de generalidade, funcionando como diretrizes. Assim, perdem tal natureza as normas “(…) que ocupem de detalhamentos, pormenores, minúcias, de modo que nada deixam à criação própria do legislador a quem se destinam, exaurindo o assunto de que tratam”. Donde conclui que a natureza de norma geral somente se faz presente quando o texto legislativo deixa espaço para que haja algum tipo de complementação, voltada a pormenorizar a forma de incidência e aplicação daquele comando.
O segundo requisito identificado por Bandeira de Mello como essencial à caracterização de uma norma jurídica como de natureza geral é ainda mais relevante para a situação em tela. Diz o autor que o texto legislativo deve conter:
“b) preceitos que podem ser aplicados uniformemente em todo o país, por se adscreverem a aspectos nacionalmente indiferençados, de tal sorte que repercutem com neutralidade, indiferentemente, em quaisquer de suas regiões ou localidades.”
Esta necessidade de os comandos jurídicos serem aplicáveis de modo uniforme tem como efeito que “(…) não serão normas gerais aquelas que produzem consequências díspares nas diversas áreas sobre as quais se aplicam (…)” [3].
Olhando para os comandos inscritos na Lei nº 14.133/2021, vê-se que as condições para exigência de programa de compliance não trazem o grau de abstração esperado de normas gerais. Em verdade, mais se assemelham a comandos que definem deveres de agir específicos para a Administração federal. Mais ainda: quando definiu o piso de R$ 200 milhões para caracterizar contratos de grande vulto, o fez tendo em vista o orçamento trilionário da União, colocando um valor claramente incompatível com o orçamento da grande maioria dos entes federativos e os contratos que usualmente firmam.
Como compreender e aplicar os textos normativos da Lei nº 14.133/2021: uma proposta
A se observar o balizamento hermenêutico proposto por Bandeira de Mello, fica evidente a impossibilidade de se entender que as normas extraídas dos artigos 6º, XXII, e 25, § 4º, da Lei nº 14.133/2021, possuem natureza geral, capazes, portanto, de impedir que os entes subnacionais definam patamares de valores mais consentâneos com a própria realidade.
Mais adequado e coerente com a base conceitual apresentada é reconhecer que os dispositivos da nova lei constituem um padrão mínimo a ser observado com o objetivo de salvaguardar o interesse público. Reconhece-se, assim, que é da essência das normas gerais estabelecer “(…) padrões mínimos de defesa do interesse público concernente àquelas matérias em que tais padrões deveriam estar assegurados em todo o País, sob pena de ditos interesses ficarem à míngua de proteção (…)” [4].
Em termos concretos, sustenta-se que a obrigatoriedade de adoção de programas de integridade diante de contratos de grande vulto tem natureza geral e deve ser observada por todos. A exigência do compliance decorre do comando inscrito no artigo 25, § 4º, norma geral de observância compulsória em todas as esferas administrativas. Já a definição do valor a caracterizar o grande vulto, inscrita no artigo 6º, XXII, é norma específica aplicável à União e funciona como padrão mínimo, assegurando que pelo menos tais contratos merecerão um tratamento mais cuidadoso, sem obstar que os entes federativos subnacionais adotem valores mais adequados à própria realidade e proporcionais a seus orçamentos e médias de valores de contratos.
Consequentemente, resta aberta a esfera de discricionariedade legislativa local para editar normas específicas que, sem afrontar a lei geral, complementem o tratamento normativo conferido ao tema. Há espaço, portanto, para que os entes federativos definam patamares de valores mais adequados à sua realidade a fim de tornar exequível a salvaguarda ao interesse público trazida pelo artigo 25, § 4º, da Lei nº 14.133/2021.
Marcus Firmino Santiago é pós-doutor em Direito, Estado e Sociedade (UnB), doutor em Direito do Estado (UGF), mestre em Direito Público (Unesa), professor de Direito Constitucional, Direitos Humanos e Teoria do Estado e advogado.