Maria Luiza Targa: CDC e as chamadas relações de insumo

Em recente decisão prolatada no julgamento do Recurso Especial 2.001.086/MT, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, decidiu que o Código de Defesa do Consumidor não se aplica à contratação de empréstimos para fomento de atividade empresarial. Pontuaram os julgadores que inexiste relação de consumo entre as partes, e sim relação de insumo, razão pela qual afasta-se a aplicação do CDC.

No caso, uma microempresa que contratou empréstimo para capital de giro perante uma cooperativa de crédito, ajuizou ação revisional com o fim de rever os encargos convencionados. Durante o processo, o magistrado de primeira instância admitiu a aplicação do Código de Defesa do Consumidor e deferiu a inversão do ônus da prova com fulcro no artigo 6º, VIII, do CDC [1]. A cooperativa de crédito recorreu ao Tribunal de Justiça do Mato Grosso e a decisão foi mantida com a ponderação de que, à luz da Teoria Finalista Mitigada, uma vez caracterizada a vulnerabilidade técnica e econômica da contratante, seria possível a aplicação do CDC.

A cooperativa então recorreu ao STJ, defendendo que a finalidade do empréstimo para capital de giro é exclusiva de fomento para aquisição de insumos e para o pagamento de despesas empresariais.

A 3ª Turma, no julgamento, pontuou que a discussão diz respeito a operações bancárias, o que atrai, em tese, a aplicação do CDC diante do enunciado da Súmula 297 do STJ [2] — inclusive, o artigo 3º, §2º, refere que serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo mediante remuneração, inclusive as de natureza financeira. Por outro lado, asseverou que o CDC consagra, no caput do artigo 2º, a Teoria Finalista, pois determina que será consumidor quem adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Não desconhecendo que a Teoria Finalista Mitigada viabiliza uma releitura extensiva do referido conceito por meio da verificação in concreto da vulnerabilidade (técnica, jurídica, fática e/ou informacional) do contratante, referiu que, diante da característica do negócio jurídico celebrado (que se destina ao fomento da atividade empresarial), o CDC seria inaplicável mesmo à luz de uma interpretação extensiva, essencialmente porque não é a pessoa jurídica contratante a destinatária final do serviço contratado. A Turma acrescentou que a mera identificação da contratante enquanto microempresa não permite, por si só, concluir que essa seria vulnerável frente à cooperativa, sendo imprescindível a demonstração concreta da situação de desequilíbrio [3].

A decisão, fundamentadamente, demonstra uma adequada aplicação do direito ao caso concreto. Consoante ensina Marques, quando se fala em proteção do consumidor, parte reconhecidamente vulnerável no mercado de consumo, pensa-se, inicialmente, na proteção do não profissional que se relaciona com um profissional (noção subjetiva de consumidor [4]); ainda que o legislador brasileiro, ao eleger a destinação final do produto ou serviço como critério para determinar quem é consumidor, tenha adotado uma definição objetiva [5] e de caráter econômico [6], o intérprete do direito não pode olvidar a finalidade da norma, qual seja, a de proteger o sujeito vulnerável.

Nas relações contratuais entre uma pessoa física, que adquire um produto ou serviço, e uma outra pessoa física ou jurídica, que coloca no mercado produtos ou serviços de consumo, a vulnerabilidade do adquirente é aferida in abstrato, sendo desnecessária qualquer comprovação da condição de vulnerabilidade. Em outras palavras, quando a pessoa física se enquadrar no conceito de consumidor e a contraparte no conceito de fornecedor, o CDC será automaticamente aplicado diante da assimetria inata desta relação.

É certo que as relações contratuais entre duas pessoas jurídicas também podem ser assimétricas e, inclusive, de consumo (o próprio caput do artigo 2º do CDC faz menção às pessoas jurídicas). Todavia, para que sejam aplicáveis as normas do Código Consumerista — o que alterará em muito a interpretação a ser dada ao contrato e a possibilidade de revisão de seus dispositivos pelo judiciário –, imperioso analisar com cautela tais relações, caso a caso. Em outros termos, a vulnerabilidade da pessoa jurídica adquirente de produtos e serviços de consumo nem sempre será aferível in abstrato, pois pode ser necessária sua aferição in concreto.

Se a pessoa jurídica for a destinatária final fática (retira o produto ou serviço do mercado) e econômica (põe fim à cadeia de produção) [7] do produto ou do serviço, é certo que será consumidora nos termos definidos pelo CDC. Porém, se somente for a destinatária final fática à luz da Teoria Finalista Mitigada, a sua vulnerabilidade (técnica, jurídica, fática e/ou informacional) perante o parceiro contratual terá que ser demonstrada.

No julgamento em questão, o STJ evidenciou que seria possível considerar a cooperativa de crédito fornecedora de serviços financeiros, bem como que seria possível reputar a microempresa adquirente do serviço como consumidora, desde que comprovasse, concretamente, a condição de vulnerabilidade, isto é, a assimetria da relação contratual. Não houve, contudo, realização dessa prova. Assim, se a adquirente não se enquadra nem no conceito stricto sensu de consumidor (porque não é a destinatária final econômica) nem comprova que é vulnerável perante a parceira contratual, inviável aplicar-se o CDC.

Acrescente-se que o ordenamento jurídico brasileiro não ignora o fato de que relações empresariais ou civis podem ser assimétricas. O artigo 421-A do Código Civil, embora estabeleça presunção juris tantum de simetria e paridade destes contratos, autoriza o afastamento desta presunção em vista de elementos concretos, cuja prova recai sobre a parte que se beneficiará da interpretação contratual mais favorável aos seus interesses [8].

Outrossim, no artigo 423, preconiza a interpretação favorável ao aderente em caso de cláusulas ambíguas ou contraditórias em contratos de adesão, e no art. 113, §1º, IV, estabelece que a interpretação dos negócios jurídicos deve lhes atribuir o sentido que for mais benéfico à parte que não redigiu a cláusula.

Assim, não há necessidade de se interpretar extensivamente o conceito de consumidor para abarcar toda e qualquer situação de assimetria, de modo a aplicar o CDC para diversas relações que, em realidade, não são de consumo. Daí a adequação da recente decisão proferida pelo STJ.

Aliás, a “consumerização” [9] das relações de direito civil pode acabar por prejudicar os interesses dos consumidores. Se a aplicação do CDC, norma específica que visa tutelar os interesses de um determinado sujeito de direitos, torna-se a regra, então aqueles que efetivamente dela necessitam ficam menos protegidos.

Como bem leciona Marques, “se a todos considerarmos ‘consumidores’, a nenhum trataremos diferentemente” [10].


[6] O conceito abstrai componentes de natureza sociológica, psicológica, de ordem literária ou filosófica (ODY, Lisiane Feiten Wingert. O conceito de consumidor e noção de vulnerabilidade nos países do Mercosul. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 64, p. 80-108, out./dez. 2007 [versão eletrônica]).

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